O que se sente ao criar algo que pode extinguir a vida humana e destruir o planeta? A resposta está nos olhos cheios de lágrimas e na expressão reflexiva de Robert Oppenheimer, o “pai”da bomba atômica, ao lembrar do dia 16 de julho de 1945, quando um grupo de cientistas americanos detonou a primeira bomba atômica em Los Álamos, New Mexico. Era a experiência Trinity, que mudou para sempre o nosso mundo.
“Nós sabíamos que o mundo não seria o mesmo. Algumas pessoas riram, algumas choraram, a maioria ficou em silêncio. Eu me lembrei de um verso da escritura hindu, o Bhagavad-Gita. Vishnu está tentando persuadir o príncipe a cumprir seu dever e, para impressioná-lo, assume sua forma multi-armada e diz: “Agora eu me tornei a Morte, a destruidora de mundos“. Acho que todos pensamos nisso, de um jeito ou de outro”, disse Oppenheimer, diretor do laboratório em Los Alamos e diretor científico do Projeto Manhattan, em uma entrevista duas décadas depois.
Oppenheimer – que estudou sânscrito e leu o texto original – estava se referindo ao verso 32 do Bhagavad-Gita (श्रीभगवानुवाच | कालोऽस्मि लोकक्षयकृत्प्रवृद्धो लोकान्समाहर्तुमिह प्रवृत्त) e usou algumas licenças poéticas. Kala, a palavra que o cientista traduziu como morte também pode ser traduzida como “tempo” e Krishna (avatar de Vishnu) não diz que se tornou, mas que é a morte/o tempo que destrói mundos. O verso inteiro é muito impactante: “Eu sou Kala, destruidor do mundo, manifestado em minha plenitude para o extermínio da linhagem humana. Nenhum sequer dos guerreiros dos dois exércitos inimigos escapará da morte”.
O Bhagavad Gita (Canção do Senhor) integra a grande epopeia indiana Mahabharata. No texto, em meio à batalha de Kurukshetra, Krishna (avatar de Vishnu) ensina o príncipe Arjuna a conhecer a si mesmo e a enfrentar suas lutas.
O capítulo 11 do Gita é impressionante. Nele, Arjuna vê Krishna em seu aspecto divino, que em sânscrito é chamado de forma universal (vishvarupa darshana). Inicialmente é uma extraordinária beleza mas logo se revela um poder tão avassalador que deixa aterrorizado o príncipe.
Na hora do teste, Oppenheimer apenas disse: “Deu certo”, embora tenha se lembrado dos versos do Bhagavad-Gita, mas revelou muito no documentário feito vinte anos após o fim da II Guerra, quando os horrores de Hiroshima e Nagasaki já eram bem conhecidos: aquele instante em Trinity o enchia de sentimentos que só a dor em seus olhos pôde traduzir. Talvez porque tivesse consciência da dura realidade da frase de Krishna: nenhum dos exércitos sobreviverá àquele poder destruidor.
O que Oppenheimer experienciou no projeto Manhattan é a grandiosidade esmagadora de um humano cujo poder decide a vida, a morte e o destino de bilhões de seres. Agonia, delírio, triunfo e angústia se entrelaçam. À época, a ameaça nazista era a justificativa para os testes nucleares, mas o tributo era alto e a morte um espectro presente. Como cientista e homem de grande sensibilidade artística, Oppenheimer escolheu a palavra Trinity por causa de dois poemas de John Donne.
O primeiro, Hymn to God, My God, in My Sickness (Hino a Deus, meu Deus, na minha doença), fala de um homem que se prepara para deixar a vida e descreve os médicos ao seu redor mapeando seu corpo como se fossem “cosmógrafos”. Eles buscam suas respostas enquanto o moribundo se volta para outro mundo, em que seu corpo será música celeste. Ele não teme a morte, pois a vê como parte integrante da vida, assim como a crucificação de Jesus Cristo seria parte da ressurreição.
Em 1962, as palavras de Oppenheimer sobre a escolha do nome Trinity foram: “Por que escolhi o nome não está claro, mas sei quais pensamentos estavam em minha mente. Há um poema de John Donne, escrito pouco antes de sua morte, que eu conheço e amo. Dele tiro uma citação: “Assim como o Ocidente e o Oriente em todos os mapas são um só, assim a Morte toca a Ressurreição”. Isso ainda não constitui uma Trindade (Trinity), mas em outro poema devocional mais conhecido, Donne começa assim: “Batter my heart, three-person’d God”.
Esse segundo poema de Donne é revelador do drama de Oppenheimer. Nele, o poeta suplica à Trindade Divina que bata com força no seu coração, pois até agora tudo foi suave e amoroso quando a divindade o consertava, respirando suavemente. Implora para que a força divina o quebre, exploda, queime e o faça um homem novo. O poema fala de alguém que se sente como uma cidade usurpada por um exército inimigo, alguém que, embora ame muito a divindade e sonhe ser amado por ela, é fraco e o seu pensamento é mantido cativo pelas forças adversárias. Há um amargor ao dizer “estou casado com o seu inimigo; divorcie-me, desate esse nó; leve-me até você, aprisione-me. Pois eu, a menos que você me encante, nunca serei livre; e nem sempre sou puro, exceto quando você me arrebata”.
As escolhas literárias de Oppenheimer bem traduzem a magnitude de seus dilemas.
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A entrevista de Oppenheimer sobre a explosão da Trinity, integra o documentário de TV “The Decision to Drop the Bomb (1965)”, produzido por Fred Freed. Você pode assisti-lo dizendo a frase aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=lb13ynu3Iac
Biografia de Oppenheimer na Wikipedia
Imagens:



Hymn to God, My God, in My Sickness
JOHN DONNE
Since I am coming to that holy room,
Where, with thy choir of saints for evermore,
I shall be made thy music; as I come
I tune the instrument here at the door,
And what I must do then, think here before.
Whilst my physicians by their love are grown
Cosmographers, and I their map, who lie
Flat on this bed, that by them may be shown
That this is my south-west discovery,
Per fretum febris, by these straits to die,
I joy, that in these straits I see my west;
For, though their currents yield return to none,
What shall my west hurt me? As west and east
In all flat maps (and I am one) are one,
So death doth touch the resurrection.
Is the Pacific Sea my home? Or are
The eastern riches? Is Jerusalem?
Anyan, and Magellan, and Gibraltar,
All straits, and none but straits, are ways to them,
Whether where Japhet dwelt, or Cham, or Shem.
We think that Paradise and Calvary,
Christ’s cross, and Adam’s tree, stood in one place;
Look, Lord, and find both Adams met in me;
As the first Adam’s sweat surrounds my face,
May the last Adam’s blood my soul embrace.
So, in his purple wrapp’d, receive me, Lord;
By these his thorns, give me his other crown;
And as to others’ souls I preach’d thy word,
Be this my text, my sermon to mine own:
“Therefore that he may raise, the Lord throws down.”
Holy Sonnets: Batter my heart, three-person’d God
BY JOHN DONNE
Batter my heart, three-person’d God, for you
As yet but knock, breathe, shine, and seek to mend;
That I may rise and stand, o’erthrow me, and bend
Your force to break, blow, burn, and make me new.
I, like an usurp’d town to another due,
Labor to admit you, but oh, to no end;
Reason, your viceroy in me, me should defend,
But is captiv’d, and proves weak or untrue.
Yet dearly I love you, and would be lov’d fain,
But am betroth’d unto your enemy;
Divorce me, untie or break that knot again,
Take me to you, imprison me, for I,
Except you enthrall me, never shall be free,
Nor ever chaste, except you ravish me.