Há momentos em que o mundo me parece hospício construído em sublime cenário.
Leio que, no Brasil, uma granada explodiu no bolso de um homem. No meio da rua, na linda Niterói.
E que petróleo venezuelano mancha as estonteantes praias de nove Estados do Nordeste.
As queimadas na Amazônia (nada espontâneas, repita-se) dobraram em 2019 e a serra do Cipó arde sem controle.
Além de tudo, há a violência nossa de cada dia. Para mim, a mais emblemática de hoje foi saber que a mãe de uma criança assassinada foi agredida e ameaçada por traficantes do Morro dos Prazeres, pois os criminosos julgaram que a mãe foi negligente. Ironia suprema: um tio, sob efeito de drogas, matou a criança dentro de casa. Mas acho que é exigir demais dos traficantes (tão ciosos do bem-estar das crianças) somarem dois mais dois.
Moro na California, região de beleza indescritível, onde se vive sob a expectativa de sermos vitimados por fenômenos naturais: um terremoto devastador a qualquer instante ou um pavoroso incêndio como o que varre hoje os arredores de Los Angeles. Neste momento, não há uma pilha, lanterna ou cooler nos supermercados, pois fomos advertidos que pode ocorrer um apagão que se estenderá por vários dias. Estamos sob alerta máximo, com mensagens chegando a toda hora nos celulares, por e-mail ou em avisos colados na academia do prédio.
Para além da natureza que nos ameaça há também aqui a violência humana. Os loucos que, munidos de armas, podem irromper a qualquer instante num teatro, num cinema, num festival gastronômico e nos fuzilar a todos. Cairemos, então, como pedras de dominó.
Olho para tudo isso e penso que essa mesma humanidade insana já produziu gênios que nos embalaram com música grandiosa, fizeram nossos olhos brilharem por causa de telas magníficas, arrancaram lágrimas de emoção ao grafar textos de tirar o fôlego.
A mesma humanidade que, com o avanço científico, nos permite viver mais tempo, desvendar as leis da Física, não sentir dor, caminhar no espaço, visitar berçários de estrelas.
Por isso hoje fixo meus olhos na grandeza que garimpo, faminta, pelos sites de notícias. E a encontro nos cientistas da USP-Fapesp, que criaram um método 100% brasileiro para aplicar a técnica norte-americana CART-Cell e hoje deram alta a um paciente que estava com câncer terminal. A terapia genética pioneira no tratamento do câncer obteve sucesso pela 1ª vez na América Latina.
E meu coração se enche de esperança.
A ciência me emociona.
Da mesma forma, sorrio ao saber que o vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2019 é o primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed, responsável por um acordo de paz da Etiópia com a Eritreia. O acordo encerrou um impasse militar de 20 anos.
Aqui, conheci vários etíopes motoristas de Uber. O último, Michael, falava em amárico com a esposa, pelo celular. Fiquei curiosa. Conversamos um pouco.
Conversa de expatriados é, quase sempre, um diálogo melancólico. Michael (nome adotado na América) me disse que sente muita falta de seu país, mas não voltará à Etiópia. Ele e os demais etíopes que conheci já não conseguem lidar com a violência bruta, com a fome, com a falta de oportunidades.
Apenas comentei – olhando as colinas pela janela do carro – que é triste sermos praticamente expulsos das nossas pátrias somente por desejar uma vida menos agoniada, regada a sangue, poluída pela insanidade cotidiana. Somos expulsos pela política corrompida, amasiada com a baixeza, que tudo nos rouba, inclusive serviços básicos, segurança mínima e os sonhos mais pueris.
Sorri, meio desconcertada, pensando que estávamos, eu e Michael, fugidos da violência num país onde podemos ser mortos a qualquer instante – por fogo, terremoto ou um desequilibrado com um fuzil nas mãos. E em meio a este cenário espetacular.
Minha alegria pequenina, digo a Michael, é saber que no seu país, a Etiópia, o primeiro-ministro, hoje premiado com o Nobel da Paz, é filho de pai muçulmano e mãe cristã.
Um indício de que os diálogos são possíveis e dão frutos inspiradores.
Já diriam os Beatles: no final, o amor que você recebe é o amor que oferece.
****
Foto: Simone Santos/Projeto Praia Limpa
A época atual é tão perigosa quanto fascinante.
Na década de setenta, as pessoas que se detinham em refletir sobre as tendências temiam o holocausto nuclear; nos anos oitenta, se antevia o colapso do país, que caminhava para uma convulsão social generalizada. Numa e outra época, havia dificuldade em se vislumbrar saídas – isso o que era mais desesperador.
Agora é diferente. Estamos atravessando uma fase problemática mas já se têm delineadas as soluções. Elas já estão bem à vista, tudo é uma questão de aguentar a travessia. O problema material mais grave é o sumiço das ocupações, colateral inevitável da extrema eficiência – mas é algo para que já se buscam soluções.
O desafio maior, porém, será como ficará a cabeça das pessoas nesse mundo que se aproxima.
CurtirCurtir
Sonia querida,
Estou lendo o segundo livro da Ayaan Hirsi, etíope, “Nomade”, onde ela conta como é estar fora do seu país e conflitos entre a herança de pensar como um clã e a mente se abrindo ao ocidente.
O primeiro livro que li dela foi “Infiel”. Recomendo. Atual. Bom para entrarmos na alma do refugiados e seus conflitos.
Fiquei muito feliz com o Nobel da paz ter ido para um Etiope.
Um beijo enorme para você. ________________________________
CurtirCurtir
Irene querida. Comprarei o livro. Recomendação sua é para levar a sério! Um beijo!
CurtirCurtir