Último dia do ano. Caminhava sem pressa pelo parque. Parecia calmo e relaxado. Espiava a multidão que passava, rápida, afogueada, no afã de preparar a festa. Aqui e ali fragmentos de conversas.

Não esqueceu a alface, né?

Quero mostarda. Tem de ser de Dijon.

Olha, champanhe Dom Pérignon eu não pude comprar.

Vai ter lentilha com arroz? E romã?

– Roupa branca? Sério? Você acredita mesmo nessas coisas?

Olhou para o lado e a viu. Seu coração sempre disparava quando a avistava ou pensava nela. Um bater meio descompassado, meio perdido. Uma falha no ritmo.

Durante alguns minutos contemplou a boca sorridente e se perdeu espiando como os cabelos esvoaçavam. Ela lutava para domá-los – em vão.

Não soube quanto tempo ficou assim, a olhar para ela em seu vestido claro, com flores miudinhas e um bordado na barra. Foi despertado por um ruído estranho, incômodo. Um casal brigava. As vozes se erguiam cada vez mais alto. Eram como rosnados de lobo. Depois ficavam baixas, como ganidos de cão machucado. Iam e voltavam, traduzindo tensão e raiva, desgosto e impaciência.

Espichou os ouvidos.

Você gasta demais!

– É apenas um quilo de carne de porco. Nem é carne de boi, que é muito mais cara!

– Estou desempregado há seis meses! O seguro-desemprego já era! Devolve! E o bolo também!

É um bolo de padaria! Não custa nem 20 reais!

Se queria bolo, era mais barato fazer você mesma!

O Caio não me deixa. A toda hora quer colo, você sabe! Aliás, não sabe. Se estivesse em casa, talvez soubesse.

Estar em casa? Pra quê? Pra ouvir gritaria sua e das crianças? Cala a boca! Eu ando o dia inteiro atrás de emprego. As distâncias acabam comigo. Vou a pé entregar os currículos. Outro dia passaram dois médicos e pararam o carro. Perguntaram se eu tava bem. Disseram que eu tava cinza. Eu só tava tonto. Eles até compraram comida e me deram um trocado para o ônibus. Foram muito educados, mas eu me senti humilhado. Um mendigo!

As vozes baixaram. De longe ele podia ouvir a saliva descendo pela garganta da moça. Não precisou dos olhos para ver o pomo de Adão do rapaz subindo e descendo.

Desviou os olhos do casal e os pousou nela. Havia um frescor, como da brisa num fim de tarde abafada. Ela sorriu para ele, compreensiva. Então, aproximou-se devagar. Retirou do dedo a aliança pequena, com dois brilhantes. Tirou a dele também. Juntou as duas e as depositou na palma da mão. Sorriu enquanto apontava com a cabeça o casal que se afastava.

Ele sentiu o hálito familiar quando ela aproximou os lábios e o beijou com delicadeza. Abriu os olhos e o encarou de novo, com uma expressão risonha e encorajadora.

Em silêncio, ele a viu caminhar com graça e sentar-se no banco da praça. Fechara os olhos, com o rosto voltado na direção do sol, enquanto a brisa lhe agitava de novo os cabelos.

Apressado, deu uma ligeira corridinha até o casal. Alcançou-os. Notou a gravata torta do rapaz, as marcas de suor nas axilas, os chinelos gastos da moça. Tão jovens. Apalpou os bolsos e achou uma bala Dadinho. Estava meio amassada. Deu-a ao garotinho com o dedo na boca.

Quem olhasse de longe veria o rapaz sacudindo a cabeça, a moça de olhos arregalados, mal respirando enquanto a esperança a enlaçava com seus braços verdes. Finalmente, o rapaz pegou as alianças, confuso, entre a vergonha e a necessidade, moendo o orgulho.

A moça o abraçou timidamente. O rapaz, um pouco mais forte. Seus ombros ainda caídos.

A mãe limpou o nariz da criança e ajeitou-lhe as roupinhas, tirando poeiras imaginárias. Deu a mão ao rapaz, que olhava o cartão de visitas.

Vou pagar tudo, você vai ver.

A moça sacudiu a cabeça, escorregou os olhos para o embrulho com o bolo e a carne de porco, e deu a mão ao marido.

O homem os viu se afastarem, de vez em quando olhando para trás. Acenou duas vezes antes de dar meia volta.

Na floricultura da esquina, comprou um buquê de rosas. Vermelhas, amarelas, rosadas, brancas. Pediu para as rodearem com um punhado de flores, miudinhas como no vestido dela.

Cruzou o parque e viu o muro alto. Atravessou o grande portão, deliciado pela luz do sol poente que dava tonalidades novas ao gramado impecável. Depositou na relva as rosas, deitadas em sua cama de florezinhas. Tirou do bolso um lenço, sentou-se sobre ele. Estava velho. E velhos não sujam as roupas quando se sentam no chão.

Coçou a marca funda no dedo anular onde estiveram as duas alianças. Sabia que ficaria ali por muito tempo, até acenderem as estrelas. Olhou para a fotografia na pequena laje branca e balançou a cabeça, divertido.

Francamente, você me induz a fazer cada coisa!

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Imagem: Nuit étoilée sur le Rhône (Noite Estrelada sobre o Ródano). Vincent van Gogh.