Lá longe, na escadaria do tempo, meu mundo se dividia em dois. Um deles era feito de sol, família, um rio que corria manso e infinitas brincadeiras. O outro existia dentro de mim. Território imaginado, nele habitavam bichos mitológicos, rodopiavam cataventos, cantavam sereias, corria Tom Sawyer e a Emília tagarelava com o Visconde num sítio mágico.

Bastava meus dedos de criança correrem pelas páginas e lá estava eu flutuando entre nuvens, pilotando máquinas do tempo, dançando na Rússia e vendo um rouxinol dar a própria vida para fazer nascer na neve uma rosa cor de sangue.

– Desliga essa luz, menina! É hora de dormir!

– Já vou, mãe.

– E desliga a lanterna também. Estou vendo!

Livros tinham portões dourados para um lugar onde se podia criar outros tempos, outros lugares. Só podiam abri-los e pisar seu chão de sonhos os deuses da letras, donos de dons que eu jamais teria.  As bibliotecas, meu universo, abrigavam paisagens com areia escaldante ou montanhas de gelo, mortes dramáticas, amores impossíveis. Que tipo de seres divinos conceberiam tais belezas? Certamente não eu.

Veio o tempo e me espichou. Duas coisas jamais mudaram: o amor pelos livros e aquela voz interna, sufocada, que dizia: “Você, menininha, nasceu para escrever”. Sufocada porque, todas as vezes que surgia, eu a enterrava na camada mais funda do peito e dizia: “Fique aí, quieta, sua voz enganadora. Escrever livros é algo muito sério. Eu não sei abrir portões dourados para outros mundos”. Ela esbravejava e se aquietava, mas eu sabia que era uma fingida. Voltaria à carga, por certo.

Até hoje acredito que a Irmã Carmen, do colégio de freiras em que eu estudava na infância, era uma agente infiltrada. Estava a serviço daquela voz insistente. Um dia, como quem não quer nada, me abordou no corredor: “Olha, teremos o dia da Bíblia aqui na escola. Vai ter concurso de redação e de cartaz. Por que você não escreve algo?”.

No quintal da casa, com lápis, uma folha de papel almaço e a tal voz berrando nos meus ouvidos, comecei a escrever. A Bíblia era interessante. Eu a havia lido diversas vezes, encantada com as narrativas. A arca cheia de bichos, Judite decapitando Holofernes, o drama de Jacó a trabalhar 14 anos pela mulher amada, Dalila cortando a cabeleira de Sansão, Tobias caminhando em companhia de um anjo disfarçado. Irresistíveis histórias de reis, escravos, sonhos mirabolantes, mulheres transformadas em estátuas de sal e até um gigante derrotado por um moleque. Eu comemorava suas vitórias ou morria de pena daquelas pessoas. Os cenários, eu os via todos. Padre Tommaso Maisto havia me dado um livro repleto de fotos. Naquele exemplar do Novo Testamento estavam Jerusalém, Jericó, Cafarnaum e Kineret, o mar da Galileia. Ficava fácil colocar os personagens nos lugares e vê-los ganhar vida de novo.

Não lembro do que escrevi – eu tinha apenas onze anos de idade – mas sei que eram muitas páginas. Ganhei o prêmio. Adivinha? Uma Bíblia, que guardo até hoje, toda carcomida e manchada, mas ainda com a dedicatória do bispo que já morreu há muitos anos. Meu primeiro prêmio literário. Primeiro e único.

Mal cheguei em casa, peguei a voz – que a essa altura estava comemorando loucamente e instigando a minha vaidade – e a tranquei num baú com dois cadeados. “Nâo me tente, dona voz! Isso foi apenas brincadeira. Não sei abrir os portões de ouro, já lhe disse!”.

Mas a voz tinha amigos infiltrados na minha vida. E fez lá suas mandingas, mesmo trancada no baú. O certo é que, quando dei por mim, agnóstica e adulta, estava escrevendo em jornais. Ei, não é que me pagam para escrever? Em vez de portais dourados, havia coisas prosaicas, mas que os homens levam muito a sério: política, meio ambiente, economia, arte e cultura. Eu pulava de galho em galho nas redações, inquieta, querendo saber de tudo, adorando escrever sobre muitas coisas. Lead, deadline, pirâmide invertida, nariz de cera eram minha rotina e minha paixão. Nada de adjetivos e advérbios, mocinha! Só verbo e substantivo. Jornalista deve perseguir a neutralidade possível, a técnica apurada e a máxima objetividade!

Os anos escoaram e, um dia, quando a guarda estava baixa e a voz cada vez mais inquieta, abri os arquivos de meu avô Rocque. Deixara um livro inacabado sobre a fronteira do Brasil com a França. A voz me suplicou: “Escreva, querida. Conclua o trabalho de seu avô”. E havia tanta doçura nela que cedi, meio apavorada.

Três anos se passaram. A neve soprava flocos na rua enquanto eu lia os documentos. Veio a primavera e floriu minha janela enquanto eu pesquisava. Escrevi na sacada durante todo o verão, olhando o vento cabriolar entre as folhas da árvore de bordo. O outono me encontrou ainda escrevendo e quando a terra se cobriu de branco de novo, em 2018, eu havia concluído o livro.

Com as mãos geladas, bati à porta do editor. O Professor Campelo – lenda viva de 85 anos, co-autor do Dicionário Aurélio e amigo de Otto Maria Carpeaux – estava do outro lado da porta.  Engoli em seco. Fechei os olhos por alguns segundos e imaginei que meus avós, meus pais e toda aquela gente da fronteira franco-brasileira estavam comigo. Enfileiravam-se atrás de mim, com suas histórias não contadas, seus sonhos amazônicos e seus heroísmos cotidianos.

Respirei profundamente e entrei. Enquanto eu apresentava o projeto à lenda viva, meu coração, que batia em descompasso e alegria, viu o avô juntar suas mãos às minhas para abrirmos os portões dourados.

Nós, mortais, ainda estávamos de mãos dadas quando pisamos, juntos e pela primeira vez, o território dos deuses.

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Escrevi este texto no dia do lançamento de meu livro História de Oiapoque, publicado pela Editora do Senado Federal em março de 2019. Para ler sobre o livro na Wikipedia, clique aqui.

Livraria do Senado Federal – História de Oiapoque.