Quanto a você, da aristocracia, que tem dinheiro mas não compra

alegria, há de viver eternamente sendo escrava dessa gente que cultiva hipocrisia“.

(Noel Rosa. Filosofia)

Quando ela nasceu, a lua andava alta no céu. Entediada, olhou cá para baixo e notou a pequenina a espiar o mundo. Os grandes olhos escuros piscavam calmos. A lua passou os olhos pelas paredes sem pintura, pelas ruas sem calçamento. Notou as roupas simples que se agitavam no varal e a mãezinha que, exausta do parto, dormia sentada na cama, com a pequena aconchegada ao peito. Decidiu dar algo à criança. Pela janela aberta, entrou em silêncio no quarto e depositou sobre ela um beijo prateado. Estava enluarada a menina Elizeth.

Ser abençoada pela lua muda a sina. Tem gente que não se importa de usar coleira. Não os enluarados. Há algo neles que pulsa livre. Como vento ou o som do violão nas noites quentes.

Os primeiros a tentar prendê-la foram o pai e os irmãos. Deu certo por dezesseis anos, até ela pôr os olhos sobre um Diamante Negro. Leônidas era uma potência a dar bicicletas nos gramados e hipnotizar multidões. Elizeth passou a chegar em casa de manhãzinha. Não havia gritos ou ameaças que a intimidassem. Poucas semanas depois, mudou-se para a casa do Diamante.

Não durou muito. Mesmo a dureza dos diamantes não resiste à liberdade dos filhos da lua. O ciúme dele a cansava. Logo ele, infiel tantas vezes perdoado.

De repente, ela deu de sonhar com a maternidade. Já se via a carregar um filho no ventre, os seios a transbordar leite, os olhos a se derreter perante um sorriso banguela. O Diamante não quis.

Chandra sorriu lá do alto e iluminou a porta da moça enluarada para que alguém ali depositasse a cesta onde dormia uma recém-nascida. O diamante deu um ultimato: ela ou eu! Ela abraçou a menina.

Os tocados pela lua pouco se importam com as convenções dos homens: registrou a menina sozinha. Era agora mãe solteira de Tereza Carmela.

Nas noites em que cantava, deixava a menina com a avó. Lá da curva do céu, Jaci velava o sono da criança e a voz da mãe. Sobre o Rio de Janeiro se ouvia, então, canções de luar.

A seda naquela voz seduziu outro artista, Ari. Ele quis dar seu nome à menina Tereza, a mãe recusou: aquele era um compromisso só seu. Poucos meses depois, um filho germinava no silêncio do útero de Elizeth. Casaram-se o poeta e a moça abençoada pela lua.

A vida é dada a surpresas e repetições. O poeta também era ciumento, infiel e dado a pôr coleiras. Ela juntou os filhos e se foi. Sozinha, cumpriu o destino comum a tantas mulheres: carregar o mundo nas costas – sem vergar. Nas madrugadas, quando não cantava nas apresentações, transportava os bêbados e os sem-carro que se esbaldavam nas boates do Rio. A lua a seguiu por dez anos de lida como taxi-girl.

Depois do divórcio, não quis mais casar. Bastava-lhe amar. Sem amarras, algemas, correias. Houve o Dedé, o Evaldo Rui e o Paulo Rosa. Evaldo se desesperou de saudade e fugiu da vida. Pela primeira vez, a voz se fez em lua minguante.

Veio mais um fabricante de sonhos cantados, Cyro. Durante muitos anos ela se perguntaria por que a gente deixa que orgulho, vaidade e disputas miúdas corroam o amor.

Amava e cantava a Elizeth. Quando o raio de luar lhe escapava da boca, pisava em chão de estrelas, subia o morro e descia de braços dados com Villa-Lobos. Barracão de zinco pobretão se tornava a mais nobre morada e todo mundo tinha roupa para ir ao samba do Noel.

Uma voz celestial, tão brasileira, tão carioca. Ouvi-la era pôr os pés em um terreno divino, onde anjos chamados Jacob tocavam bandolim, acompanhados do Zimbo Trio, do violão de João Gilberto, do piano de Tom Jobim, das bênçãos de Cartola, Nelson Cavaquinho, Ataulfo, Pixinguinha. No coro, Paulinho, Caetano, Betânia, Clara e Baden.

No dia 7 de maio de 1990, calou-se a voz da noiva do samba-canção, madrinha da Bossa Nova, Oxum encantada. Foi velada em teatro e sepultada ao som de um surdo da Portela.

À noite, no silêncio do cemitério do Caju, a lua veio se despedir. Pousou suavemente uma flor de prata sobre o túmulo recente. No outro dia, disseram que chovera na madrugada ou que um orvalho imenso encharcara as lápides. Nunca souberam que era o luar, desfeito em lágrimas, em cerimônia de adeus.

Acorda, vem ver a lua

Que dorme na noite escura

Que fulge tão bela e branca

Derramando doçura

Clara chama silente

Ardendo meu sonhar

As asas da noite que surgem

E correm no espaço profundo

Oh, doce amada, desperta

Vem dar teu calor ao luar


Este é um texto ficcional sobre a cantora Elizeth Cardoso (1920-1990), cujo centenário de nascimento ocorreu esta semana. Elizeth nasceu em 16 de julho de 1920.

Elizeth Cardoso canta Melodia Sentimental (Heitor Villa-Lobos / Dora Vasconcelos)

Barracão de Zinco (Com Jacob do Bandolim)

Todo Sentimento (com o violonista Raphael Rabello)

Elizeth Cardoso e Raphael Rabello (show completo). Parte 1, Parte 2 e Parte 3

Samba em Prelúdio (com Baden Powell)

Canção do Amor Demais.

Para ler a biografia de Elizeth Cardoso clique aqui

Globo Repórter homenageia Elizeth.