As cortinas balançavam suavemente na janela da cozinha, como numa pintura de Andrew Wyeth. A brisa quente se esgueirava entre a renda branca e soprava a chama do fogão.
O homem movia-se na semipenumbra. Cozinhava. Das pontas de seus dedos, microscópicas pedrinhas de sal e gotas de limão deslizavam sobre o abacaxi recém-cortado. Pegou um pedaço e levou à boca. Uma expressão de prazer tomou-lhe o rosto. Emitiu alguns ruídos de satisfação e engoliu o fruto, evitando que o sumo escapasse.
“Tudo para vocês. É a entrada que preparei. Quando não tenho visitas, como esse abacaxi sozinho”.
Do lado de fora, os amigos estendiam-se nas redes ou sentavam-se nas cadeiras em torno da longa mesa de madeira. Uma conversa que se erguia sozinha, por vezes gargalhava ou se tornava muito séria, mas jamais deixava de colar lembranças nos espíritos.
“Hoje não vou colocar toalha na mesa. Acho que fica mais chique, uma coisa meio medieval”.
Os amigos se entreolharam, compartilhando cumplicidades.
Logo ele estava à cabeceira, com seu riso largo, sua voz de ator a contar piadas, histórias ricas, episódios de floresta e asfalto. Um homem não pode simplesmente passar pela vida sem colecionar anedotas que parecem coisa de Jorge Amado. Memórias grossas como cascas de árvore, transbordantes de vida, retidas e ressignificadas sob um olhar de poeta. Ele ria. Muito, cada vez mais alto. Ria gostosamente, à farta, deliciado com façanhas, aventuras, longas noites de amor. A vida era uma colcha de retalhos nas quais se usou seda, brim, linho e filó. Texturas diferentes, costurando lado a lado a finura e a aspereza.
Vez por outra seu olhar se perdia no muro branco. Calava-se e um brilho de ternura e mel lhe dominava os olhos. Tinha visto um passarinho a alimentar o filhote no ninho. Havia feito a casa entre os espinhos pontiagudos de um cactus e agora esgueirava-se com habilidade para ali alimentar os recém-nascidos. Que predador encararia o espinheiro por causa de um ou dois passaritos magros?
Reclamou da longa seca. Não caíra uma gota de chuva nos últimos meses. A terra estava ressecada, cheia de rachaduras e punha poeira sobre todas as coisas. Os sapos cochilavam no subterrâneo do chão. Ele aguardava.
Tão logo os amigos chegaram, o ar tornou-se ainda mais abafado, gotas porejaram nas testas, as mãos ficaram úmidas. Um vento ardido e incômodo soprou entre as árvores pouco antes das gotas voluptuosas desabarem sobre o chão. Ela chegara – junto com os amigos.
A chuva lavava o telhado, enchia o tanque de pedra, fazia grasnar o gansinho do quintal e dançarem as galinhas e galos do terreiro.
Apenas os cães se mexeram inquietos. Apolo caminhou até uma cama e se enroscou como uma bola. Eva respirou mais rápido. Tinha medo de trovão, desde que alguém lhe dera um tiro. A bala ainda estava alojada na cabeça. Gayatto, o menorzinho, ganiu um pouco e lambeu os pontos da cirurgia ainda não cicatrizada. O homem o recolheu ao colo como um bebê e o acalentou: havia sido atacado por outro cachorro. Os olhos tinham gotas de sangue e os hematomas eram visíveis. A vida era dura fora do cercado onde o homem vivia. Isso todos eles sabiam, assim como as visitas.
Relaxou na cadeira, vendo as gotas enxaguarem as folhas de urucum, o pé de cupuaçu, o cajueiro e os jasmins que perfumavam o quintal onde pegadas de concreto lembravam as marcas dos pés do Buda nos caminhos da Ásia.
O almoço estava servido. Comida cheirosa, brasileira, revestida de uma simplicidade tão profunda que dava a impressão do mais indiscutível refinamento.
Vinho para acompanhar. Mais risos, mais memórias de seminário, de potes de marmelada, de barcos, de um padre que namorava índias no meio do mato, do TUCA, do Antunes Filho, do Grotowski, do Barba, de São Paulo.
Em meio à fala, nova pausa: um sabiá cantava na árvore atrás do muro.
Desta vez não falou do câncer que vencera, nem da mediocridade urbana que o isolava em sua casa na Chapada. Ele bem sabia que ela estava lá fora, insidiosa, e o espreitava com seus olhinhos de lagartixa. Ele a mantinha fora do seu território. Punha vigias para que não o sitiasse.
Houve tempo para mostrar as árvores do quintal às visitas, para descobrir um rato morto, para fazer ironia fina, para falar de filmes, atores grandiosos, autores capazes de encher a alma dos homens com perfumes ou dores indizíveis.
Em meio a tudo isso, mostarda francesa, queijos holandeses, aspargos, geleias e caponatas, pois o que seria do homem sem os amigos a lhe inundar os dias com as mais finas coisas trazidas de terras longínquas? Ele sabia receber um presente, ah, isso sabia.
Retribuiu dando uma abóbora – a única que sua ingrata planta dignou-se a oferecer-lhe naquela estiagem insana de 2019.
Ao despedir-se dos amigos, recomendou:
– Leiam a minha peça de teatro!
– A do Cavalo de Troia?
– Sim.
Abraçou os cães enquanto os amigos desapareciam na curva da estradinha de terra. Continuou a abraçá-los por um longo tempo, mesmo quando já não se ouvia o motor do carro. Afagava-lhes as orelhas com o olhar perdido e em seus olhos e lábios as lembranças do dia punham pequenos pirilampos de alegria.
No caminho de volta, os amigos descobrirão que esqueceram a abóbora. Mandarão mensagem se desculpando. Ele dirá que entregará o presente quando vier à cidade. Tudo simples e fácil, como as manhãs sorridentes. Tinham uma amizade feita de pluma de ave, sem juízes imponentes, condenações sumárias, celas escuras.
Amizade bordada na suavidade das horas, como a brisa que ainda agita a cortina de renda na cozinha.
A descrição perfeita de um almoço de amigos especiais!
Deu vontade de participar!!
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Você aqui nos serve um banquete! Saboreei cada linha! Obrigada
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Que beleza de texto! Reli com gosto!
Grande abraço 🤗
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Leitura deliciosa.
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Que delícia de encontro!
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Beleza de texto, li agora e me encantei!
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