“Concussae patuere fores. Videt intus edentem vipereas carnes, vitiorum alimenta suorum. Invidiam, visaque oculos avertit. At illa surgit humo pigre semesarumque relinquit corpora serpentum passuque incedit inerti; utque deam vidit formaque armisque decoram, ingemuit vultumque ima ad suspiria duxit. Pallor in ore sedet, macies in corpore toto, nusquam recta acies, livent rubigine dentes, pectora felle virent, lingua est suffusa veneno.” (OvídioMetamorfoses)

Nas Metamorfoses, o poeta romano Ovídio descreveu de forma incomparável o poder corrosivo da inveja. O sentimento insidioso estende suas unhas pontudas e perfura o coração dos mortais. Quando seu veneno verde penetra o sangue, afasta os amigos, traz o frio ao espírito, apaga o brilho dos olhos.

Por vezes manifestada de forma disfarçada e sutil, a inveja é filha do egoísmo e da competição, que desejam brilhar sozinhos. É o sentimento dominante no ser atormentado perante a glória de um amigo, ou que se corrói diante da graça, do talento ou da inteligência alheios. A inveja é a terra deserta de elogios e a completa ausência da mais rara felicidade: a de se alegrar pelo triunfo dos outros.

O texto de Ovídio é soberbo. O poeta traz alegorias da inveja em dois momentos. Em ambas vale-se de poderosas imagens. A primeira é a personificação da inveja propriamente dita, que vive nas sombras, em frio isolamento, nutre-se de coisas venenosas e só se vê risonha quando outros choram. Na segunda, espelhada no comportamento de Aglauros, Ovídio traduz o sofrimento emocional vivido pelo invejoso.

Adaptei livremente a história narrada por Ovídio, embora o original latino seja irreproduzível em suas imagens vivíssimas, capazes de impressionar até as pedras do mundo antigo. Optei pelos nomes gregos ao ousar recriar, em narrativa própria, o conteúdo dos originais versos do grande poeta.

Eis a história:

Os pés alados pousaram suavemente no chão do palácio do rei Cécrope. O coração pulsava rápido no peito do divino Hermes. Ele mal reagiu quando a moça de expressão cínica o abordou. Rapidamente explicou que pairava sobre Atenas, após esconder o rebanho de Apolo, quando viu uma jovem mulher de extraordinária beleza entre a multidão que participava do festival de Pallas Athena. “É minha irmã, Herse”, explicou Aglauros, a moça cujos olhos brilhavam de cobiça ao contemplar as sandálias douradas que o deus trazia nos pés.

Hermes pediu ajuda a Aglauros. Contou a ela que carregava pelo ar as palavras de seu pai, Zeus, o rei dos deuses. A moça riu e não se intimidou. Desarmou-o, questionou a sua identidade e até suas intenções. Hermes confessou a súbita paixão por Herse e ela concordou em ajudá-lo a em troca de uma grande quantidade de ouro. O deus não carregava o ouro consigo. Foi expulso do palácio – ele, um deus. Voltaria com o pagamento e buscaria a mulher amada.

A cena foi acompanhada com atenção por outros olhos divinos. Aglauros já havia traído Athena. Esta aguardava o momento da vingança. Oculta nas sombras, ninguém viu o leve sorriso que lhe tomou os lábios e contrastou com os olhos que faiscavam: a infiel ambiciosa seria finalmente castigada.

Horas depois, a deusa caminha por uma floresta cada vez mais densa. Pára silenciosamente diante da gruta da Inveja. Cercada por vales profundos, ali não chega o sol e o frescor das brisas. Na morada reina rigoroso e eterno frio. A Athena não é lícito entrar em tal lugar, por isso fere o batente com a lança de guerreira. A madeira estronda e Inveja, sobressaltada, se volta para a deusa.

Estava curvada sobre si mesma, devorando a carne de víboras, cercada de mau cheiro e pestilência. A custo se ergue e se arrasta até Athena, deixando atrás de si pedaços de serpentes não devorados e gotas de sangue na terra. A beleza da deusa e suas armas brilhantes lhe arrancam um gemido alto.

Uma palidez de morte a toma inteira. Descarnada e apodrecida, nunca olha nos olhos do interlocutor, pois os traz sempre baixos, fugidios e enviesados. A deusa lhe contempla os dentes enegrecidos, o fel a verdejar no peito, o espumoso veneno a lhe escorrer da língua. Não há riso nos lábios ressecados – Athena bem sabe – a não ser que haja choro no rosto dos outros. Inquieta, roída de agonias, não tem repouso. Torna-se mirrada de pesar ao ver qualquer felicidade nos homens. Verdugo de si mesma, nutre-se do ódio a todos.
A deusa sente aversão e por isso dá as ordens rapidamente: “Das três filhas do rei Cécrope, convém que teu veneno infecte uma. Aglauros é o nome dela”.

É o suficiente. Sem mais uma palavra, Athena firma a lança no chão e se ergue em direção aos céus. Com os olhos oblíquos, a Inveja acompanha a figura a desaparecer no longe. E dentro de si murmura, com a alma insatisfeita, que a deusa será atendida.

Toma seu cajado torcido, coberto de espinhos, e inicia a jornada. Enquanto anda, nuvens pesadas a cobrem. Nos campos que atravessa, as flores murcham e definha a grama. Sob sua influência malfazeja, famílias, povos e cidades se contorcem. Finalmente alcança os muros da cidade de Cécrope. Resplandece Atenas em artes, em riqueza e em paz. E porque tudo ali sorri, lhe acode um choro.

Entra no quarto de Aglauros e sem demora cumpre na infeliz a ordem severa. Pousa-lhe a mão enferrujada no peito e, com unhas pontudas, perfura-lhe a pele. A moça se mexe inquieta enquanto o peito se enche de farpas. Sobre o rosto, a Inveja lhe sopra o hálito verde, que rapidamente toma os pulmões da adormecida. Gotas de sua baba agora navegam-lhe o sangue. Com um riso rouco, vê a cor esverdeada tingir-lhe os ossos e dominá-la inteira. Nos sonhos que lhe murmura aos ouvidos, grava a imagem da irmã feliz nos braços de um deus gentil e amante – e assim lhe dá razão para entender o mal que a toma.

A manhã chega e uma dor oculta irrita Aglauros, morde-lhe o coração. Geme a moça o dia inteiro, ruge durante a longa noite. Em lenta febre se consome. Sua alegria é como planta que sem luz vai se findando. Mil vezes por dia se tortura ao pensar na beleza do deus que em breve chegará para amar a irmã. Em seu suplício se dá conta que o ouro que ele trará já não é suficiente. Corroída pelo ciúme, sente vontade de narrar tudo ao rígido pai e correr o risco de também ser punida com a morte, mas por fim decide-se: vai enfrentar Hermes. Sentará à porta e o proibirá de entrar. Não terá palavras de brandura, lisonja sutil ou ardentes pedidos. Vai impedi-lo.

Ele finalmente chega – e aos olhos dela nunca foi tão imponente. Posta-se, sentada, diante da porta da irmã, fixa os olhos no deus e lhe diz o que pretende. Ele lhe faz súplicas com voz doce e calma. Ela se mostra irredutível.

“O que queres? Desiste!” – finalmente diz Hermes. E desta vez sua voz não treme.

“Daqui não saio até que te vás!”, responde Aglauros.

“Isso me agrada. É um pacto que me convém. Seja como queres” – retruca Hermes, com expressão enigmática a lhe marcar o rosto.

De par em par, o deus escancara a porta do quarto de Herse. Aglauros quer levantar, mas sente as pernas adormecidas. Tenta em vão erguer o tronco. Os joelhos rígidos não se dobram e um frio mortal agora lhe percorre as veias. Uma paralisia lhe serpenteia pelo corpo, como um câncer a se propagar, lento. Um inverno lhe vem ao peito e faz cessar a respiração. Os canais de ar se enchem de gelo e falar já não consegue. Em pedra se tornam os lábios e a língua, o rosto endurece. Ainda há pouco era mulher, agora é estátua para sempre sentada na mesma posição. Apenas a cabeça, em cor diferente do restante do corpo, revela que seus pensamentos sombrios mancharam a pedra.

O invejoso dilacera a si mesmo ao tentar dilacerar os outros.

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Metamorfoses é um longo poema, distribuído em quinze livros. São 12 mil versos escritos em latim pelo poeta romano Públio Ovídio Naso, funciona como uma compilação dos mitos greco-romanos. Uma das mais belas traduções, em língua portuguesa, foi feita pelo poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage, no século dezoito. Em inglês, a mais renomada tradução é a de Arthur Golding, datada de 1567, e que você lê aqui. A tradução de Golding influenciou poderosamente a obra de William Shakespeare.

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Imagem principal: La Cigale, de Jules Lefebvre (detalhe). O quadro inteiro e uma seleção de obras de arte relacionadas à história de Aglauros, Herse e Mercúrio estão na galeria abaixo. Selecionei o quadro de Lefebvre pela expressão dos olhos da modelo. O quadro La Cigale (A Cigarra) tem como tema a antiga fábula da cigarra e da formiga.