Abusadas é uma série jornalística semanal criada por Sonia Zaghetto. Traz reportagens, entrevistas e depoimentos de mulheres vítimas de abusos físicos, financeiros, psicológicos e sexuais durante relacionamentos afetivos. Dos golpes na internet à violência doméstica, oferece um panorama dos desafios femininos, neste aspecto específico.

A série é dividida em capítulos, sempre publicados às quintas-feiras. Alguns deles vão contar histórias de mulheres que sofreram golpes ou tentativas de golpes, reais e virtuais. Outros vão mostrar depoimentos de quem viveu um relacionamento abusivo e os demais vão trazer entrevistas com psiquiatras sobre manipulação, submissão, negação e sequelas desse tipo de relacionamento. A série vai expor os principais métodos utilizados pelos golpistas e abusadores; e os sinais que eles dão sobre suas intenções. Em todos os textos haverá links para denunciar os criminosos. A série será ilustrada por fotografias ou pinturas que retratam personagens reais ou míticas cuja história é marcada por abusadores. A de hoje é Penélope e os pretendentes, de John William Waterhouse.

Aviso prévio: Sou jornalista e escritora. Nesta série vou manter a objetividade necessária ao jornalismo. Faz parte dessa objetividade não julgar os entrevistados e expor os fatos com a máxima neutralidade possível, embora me seja um tema particularmente sensível. Minha experiência de escritora acrescenta aos textos o interesse pela complexidade psicológica do ser humano e a compaixão para entender seus caminhos e escolhas – atitude inspirada por um escritor notável, Anton Tchekhov. Convido-os a ler essas histórias com o mesmo espírito.

Caso 1 – Engenheiro inglês? Não, um scammer

Luiza (nome fictício), 52 anos, médica, é uma mulher bonita, de classe média alta, sorriso aberto e praticante de esportes. É do tipo que está sempre disposta a socorrer os desvalidos e os amigos em dificuldades. Recém-separada e em tempos de pandemia, decidiu entrar num aplicativo norte-americano, o OkCupid, no qual uma amiga havia conhecido o marido. Não imaginou que encontraria um golpista.

O OKCupid – no qual se paga 40 dólares por trimestre – costuma ser utilizado por muitos estrangeiros, especialmente americanos, israelenses e ingleses. Em seis meses no aplicativo, a médica foi assediada por cinco scammers, os golpistas virtuais. Conseguiu identificá-los rapidamente. Um deles, entretanto, quase a enganou. Usava o nome de Michael e Luiza se interessou pelo perfil do homem bonito, que dizia ter 55 anos, declarava falar inglês e português e indicava morar em São Paulo. Nas primeiras conversas, ela se deu conta que ele não falava português e questionou sobre a razão de ter declarado residência em São Paulo. O homem desconversou, admitiu que só havia visitado a cidade duas vezes e de férias. Foi o primeiro sinal de história mal contada.

Michael se disse inglês, engenheiro e empregado da ExxonMobil, a gigante texana da área de petróleo e gás. Contou que a empresa tinha um projeto grande na Guiana e ele estava temporariamente naquele país. Luiza checou todas as informações, inclusive os projetos da companhia em Georgetown. Tudo parecia certo.

As conversas continuaram, com Michael se apresentando como um homem devotado à família. Dizia ser filho único, mandou fotos dos supostos pais já falecidos e informou que na sua cidade natal, Manchester, tinha três filhos – dois rapazes de 23 e 17 anos e uma adolescente de 15. Acrescentou que tinha a guarda dos filhos porque a mãe era usuária de heroína. Em várias ocasiões deu demonstrações de ser um pai amoroso e preocupado. Luiza se sensibilizou com as histórias e associou o suposto sofrimento dos jovens aos de alguns familiares dela. Iniciou-se uma conexão mais profunda. Conquistada a simpatia da médica, o golpista passou a um discurso amoroso.

“Foi tudo muito rápido. Em duas semanas ele dizia que eu era a mulher da vida dele. A toda hora se mostrava gentil, carinhoso, cavalheiro. Comecei a achar que era uma pessoa real e não um fake, embora ainda estivesse bastante desconfiada”, conta Luiza.

O pretendente mandava fotos descansando no quarto de hotel ou trabalhando de capacete na plataforma da  ExxonMobil. Em outros momentos surgia com os filhos em uma lanchonete em que, no fundo da foto, aparecia um cardápio em inglês. Tudo indica que o golpista roubou fotos de um pai de família real e o usou para compor o perfil falso.

A sedução foi sutil e ele demorou algumas semanas conquistando a confiança de Luiza, antes de pedir dinheiro. Ao contrário dos perfis falsos que usam fotografias de homens com aparência de modelo ou dos batidos fakes que se passam por militares americanos, Michael mostrava-se um homem comum, atraente sem exageros. Em uma das fotos exibia os bíceps numa academia. Ao longo do dia, enviava mensagens preocupado com a saúde dela, pedindo que se cuidasse, cobrindo-a de elogios, prometendo presentes e construindo a imagem de um homem romântico.

Envolvida emocionalmente, a médica deu pouca atenção ao fato de um falante nativo e educado expressar-se em um inglês visivelmente pobre. O que a assustou de fato foi a pressa com que o relacionamento evoluiu. Michael garantiu que estava apaixonado e se mudaria para o Brasil, inclusive já teria aplicado para uma vaga na Petrobras.

Luiza consultou os pais e, numa conversa franca, confessou que “tudo parecia exagerado”. O pai concordou e pediu cautela. A mãe, romântica, disse que ainda havia “homens à moda antiga no mundo”. Luiza escolheu desconfiar. Em várias ocasiões pôs água na fervura passional do pretendente.

Nas conversas, “Michael” escapava de dar informações que pudessem entregar as mentiras. A uma pergunta sobre Georgetown, a cidade em que supostamente estava trabalhando, ele despistou. Disse que era um local de muita pobreza e preferia ficar no hotel, descansando: “Trabalho muito e até tarde. Acordo cedo”, explicou. Luiza acreditou em parte, mas começou a tentar conversas por vídeo. Em uma ocasião em que ela tentou uma ligação com câmera via WhatsApp, ele recusou a chamada e logo em seguida ligou e conversou rapidamente com Luiza. Disse que somente poderiam falar por áudio, uma vez que a internet da cidade era ruim. “A voz que ouvi não condizia com a imagem do homem alto e forte que aparecia nas imagens. Era uma voz quase de adolescente, muito tímida.”

O scammer tentou uma jogada ousada, fez uma ligação por vídeo e desligou de imediato. Toda a conversa seguinte foi em torno de conexão ruim. O golpista garantiu que havia visto Luiza (“Você está linda, querida. Conseguiu me ver?”). Não, ela não havia conseguido. “Melhor falar por mensagem”, disse o suposto Michael.

Pouco tempo depois ele contou que precisava voltar para a Inglaterra porque a filha teria sofrido um acidente jogando tênis. Mandou fotografias da garota com o joelho operado. No dia seguinte, mais fotografias, em que ele aparecia pintando um quadro.

Luiza não perdeu a chance de propor que os dois falassem por vídeo, uma vez que o namorado virtual agora estaria na Inglaterra. Ele voltou à mesma desculpa da má conexão e todas as ligações de vídeo via WhatsApp não se completavam. A médica pediu que se conectassem via Zoom ou Google Meet. Ele alegou que não usava nenhuma dessas ferramentas.

“A essa altura eu já tinha um exército de pulgas atrás da orelha. Um engenheiro avesso a tecnologia?”, conta Luiza. Sem saída, o suposto Michael apelou para uma desculpa inusitada: “Ele me disse que não era fotogênico como eu. Também disse ser muito tímido. Ah, dai-me paciência, Senhor. Primeiro que nas fotos o que se via era um homem bonito; segundo é que mulher é que tem essas pataquadas de fotogenia. Homem não costuma dar a mínima para isso”.

Luiza interrompeu as conversas. Dois dias depois, o falso Michael voltou à carga. Avalia a médica que o golpista sentiu que estava perdendo a vítima e “partiu para o tudo ou nada”. Apareceu dizendo que havia ido para uma reunião em Istambul, na Turquia, e estava em apuros. Contou que numa ida a um restaurante havia perdido a carteira. Finalmente, pediu a ela que lhe enviasse uma quantia, pois não possuía recursos nem para se alimentar.

“Você está me pedindo dinheiro?”, Luiza foi direto ao ponto. “Sim, querida. Na segunda-feira, após a reunião, assim que eu voltar ao Reino Unido, devolverei a você”.

Foi a gota d’água. Michael era, de fato,  um scammer. Luiza explicitou o golpe e o bloqueou no aplicativo. Entretanto, assume que ficou curiosa. Acha que deveria “jogar” mais um pouco e ver até onde ele chegaria. Também o achou inteligente e admite que gostaria de saber mais sobre o golpista. Ao dar feedback sobre os erros dele, acredita que pode tê-lo, inclusive, ajudado a aprimorar a técnica.

Se não estivesse fragilizada emocionalmente – estava em meio a um divórcio e trabalhando na linha de frente do combate à Covid-19 -, provavelmente Luiza teria clareza para notar bem antes os vários outros indícios de fraude. Além do inglês deficiente, a conversa de “Michael” soava falsa e, por vezes, infantil. O gosto do pretendente também era bastante duvidoso: relógios cravejados, bolsas de grife e objetos que revelam uma personalidade extravagante e dada à ostentação, bastante diferente do homem que aparecia nas fotografias..

A médica lamenta: “Você vai se enganando, sabe. Creio que se eu tivesse uma personalidade mais frágil, se não falasse com meus amigos sobre isso ou se fosse mais imatura, eu teria caído. Essas pessoas são sedutoras e têm técnica. Vão nos conquistando, criando uma falsa personalidade atraente. Quando notamos, estamos completamente envolvidas afetivamente. Hoje, olho para essas conversas e sinto vergonha, mas foi uma lição sobre o quanto ficamos cegos quando estamos mergulhados nesse tipo de situação”, admite.

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Abaixo, você vê alguns prints da abordagem do scammer.

O que são scammers

Scammers (golpistas) são perfis maliciosos usados para dar golpes na Internet. O ambiente virtual facilita as ações dos criminosos e torna mais difícil rastreá-los. Esses perfis são mais difíceis de identificar que o de um fake (falso perfil comum), pois são mais elaborados e por vezes os criminosos os cultivam por anos a fio: agem como se fossem pessoas reais, postam fotos roubadas, escrevem textos e fazem stories que dão aparência de legitimidade ao perfil.

Golpistas estão em todas as redes sociais, nos comentários dos jornais online, nos grupos do Facebook e nos aplicativos de relacionamento. Aproximam-se de homens e mulheres em busca de informações específicas: dados bancários e pessoais, dinheiro, senhas, números de cartão de crédito. Seu método invariavelmente é o de aproximar da vítima estabelecendo uma relação de confiança. Podem se passar por amigos ou fingir interesse amoroso.

O scam romance (também conhecido como Catfish) ocorre quando o criminoso estabelece um relacionamento afetivo com a vítima. É conhecido como “Golpe da Nigéria”, por ser frequente nesse país. Após os golpes, os criminosos desaparecem e criam novos perfis a fim de enganar mais vítimas.

A melhor forma de escapar de um golpista virtual é jamais dar qualquer tipo de informação pessoal, profissional ou bancária. Evitar fornecer nomes de familiares, locais de trabalho, histórias familiares e contatos de parentes e amigos.

Também é importante não clicar em links suspeitos enviados por eles e, principalmente, nunca enviar dinheiro. O roubo de informações a partir de links ou URL é uma prática conhecida como “phishing”.

Atentar para os sinais de mentiras e inconsistências. Conversar com familiares e amigos costuma ser um reforço importante. Em geral, quem está fora do processo consegue identificar as falhas nas histórias ou perceber mais claramente o perigo.

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No próximo capítulo: “Escapei de seis namorados golpistas”.