“O nome do meu abusador é Brian Warner, conhecido mundialmente como Marilyn Manson. Ele começou a me assediar quando eu era uma adolescente e abusou de mim horrivelmente por anos. Eu sofria lavagem cerebral e fui manipulada para ser submissa. Estou cansada de viver com medo de retaliação, calúnia ou chantagem. Estou aqui para expor este homem perigoso e chamar a atenção para as muitas indústrias que o permitem atuar, antes que ele destrua outras vidas. Eu estou ao lado das muitas vítimas que não vão mais silenciar”.

Com esta declaração, publicada no seu perfil no Instagram, a atriz Evan Rachel Wood denunciou, no dia 1 de fevereiro de 2021, seu ex-noivo, o cantor Marilyn Manson. Com isso, reabriu o debate sobre relacionamentos abusivos.

De imediato, a Internet foi tomada por reações previsíveis e julgamentos rápidos. Uma grande parte das pessoas buscava entender as razões que levam uma jovem e bela mulher a se submeter à tortura de um relacionamento abusivo em múltiplos aspectos. Observações sobre a aparência de ambos os personagens, fama, lavagem cerebral e submissão permeiam o debate. São questões relevantes mas apenas iniciais, uma vez que a discussão é muito mais profunda e diz respeito a processos psicológicos e reações emocionais mais recorrentes do que imaginamos ou gostaríamos. Um bom começo, em uma análise séria, é não tentar culpar ou julgar as vítimas. É bastante confortável imaginar que, no lugar do outro, se agiria de forma diferente, melhor ou mais inteligente. Faz bem ao ego se enxergar mais forte e superior que os demais, mas a realidade é surpreendente e o ser humano mais complexo do que sonha a nossa filosofia.

Sobre as perguntas que o caso Wood/Manson ensejaram, entrevistei o médico psiquiatra e psicoterapeuta Guilherme Spadini, professor convidado em disciplinas de graduação e pós-graduação da FMUSP e professor e diretor de terapias na The School of Life Brasil.

Sonia Zaghetto. Minha primeira pergunta é sobre mulheres como Evan Rachel Wood. A estupefação geral é sobre a razão que leva uma jovem mulher, extremamente bonita, a se submeter a um homem cujo nome remete a um assassino psicopata e cuja aparência costuma causar rejeição. A atriz disse que ele a manipulou desde o fim da adolescência e a submeteu a lavagem cerebral e a abusos por vários anos. O que faz com que não se busque ajuda para escapar de um relacionamento que inclui estupros e abusos psicológicos dessa monta?

Guilherme Spadini. A gente sempre fica confuso com essas histórias e essa dúvida sempre aparece: como é possível que a pessoa não saia disso, não procure ajuda, não faça alguma coisa? O fato é que o fenômeno é real e mais comum do que imaginamos. Portanto, devemos mais tentar entender que nós funcionamos assim, de alguma forma – ou seja, que submetidos a determinadas pressões nós podemos, sim, nos ver presos em relacionamentos abusivos. Entender que somos assim me parece mais útil do que continuar surpresos e indignados quando vemos que isso acontece. E mais, precisamos parar de nos espantar quando isso acontece com pessoas inteligentes, lindas, estudadas, incríveis, etc. A verdade é que isso pode acontecer com todo mundo. Parece ser mais comum que as mulheres sejam vítimas, embora também haja homens presos em relacionamentos abusivos, talvez mais do que tenhamos conhecimento. É algo que pode nos subjugar por diversos motivos.

SZ. Marilyn Manson é vinte anos mais velho que Evan Rachel Wood e um homem poderoso na indústria do entretenimento. Fama, dinheiro e poder pesam no prolongamento da relação abusiva?

GS. Eu diria que ser um homem mais velho e poderoso/famoso influencia em algumas dinâmicas pela qual o abuso pode ocorrer. No caso da Wood, ela relata que Mason a influenciou desde muito jovem, e usou o termo “lavagem cerebral”, o que parece indicar que ela, por algum tempo e sob algum aspecto, consentiu com a relação abusiva – o que se traduz, inclusive, na resposta de Mason às acusações, cujo teor é de que as relações dele sempre foram consensuais. O que quero dizer – e já é bem reconhecido nesses casos – é que o consentimento não quer dizer muita coisa nessas relações profundamente desiguais, hierárquicas. Existe um subjugo da vítima, uma dominação tão grande do abusador, que o consentimento não descaracteriza o abuso. Mas também há outras formas que não dependem disso (idade ou poder/fama), muitas vezes o abusador é uma pessoa bastante comum que apenas se aproveita de aspectos muito sofridos da personalidade da vítima para se impor.

SZ. Outras perguntas recorrentes são: por que uma jovem mulher se aproxima de um homem com a aparência de Marilyn Manson e por que algumas mulheres demoram tanto a denunciar os abusadores?

GS. A aparência dele, a fama, nada disso é assim tão importante. Há muitos motivos para ser tão difícil sair dessas relações e denunciar. Todos nós investimos na nossa visão de mundo, sem perceber. Quando escolhemos uma profissão, nos tornamos investidos dos valores dela, apostamos de alguma forma na ideia de que tomamos a decisão certa. Quando compramos um celular de uma marca, por exemplo, investimos um pouco de nós, nos tornamos pessoas iPphone, ou pessoas Android. Investimos em estilos de moda, ou gêneros musicais. Esses são exemplos corriqueiros e leves, só para ilustrar que fazemos isso sempre, inconscientemente.

Em um relacionamento amoroso, isso é muito potencializado. Investimos muito de nós na escolha de nossos parceiros. E depositamos muito de nosso amor próprio na aceitação e no amor que nossos parceiros nos dedicam. Pode ser muito difícil “desinvestir” disso, ter de desfazer toda a visão de mundo e de nós mesmos que construímos em uma relação, quando ela se torna ruim. E todo mundo sabe o quanto é difícil fazer isso quando uma relação se torna ruim. O que acontece é que é ainda mais difícil quando a relação se torna monstruosa. É contra intuitivo: pensamos que quanto pior, mais fácil seria enxergar. Mas não, é difícil porque nos destrói muito mais. Por muito tempo, pode parecer que há mais a ser destruído rompendo a relação do que o que está sendo destruído pelo abuso. Com isso, o medo e a vergonha se tornam prisões.