Alcatraz é rocha isolada em meio às águas geladas da baía de San Francisco. Cercada por ondas de jade, ela surge aos meus olhos com um cortejo de memórias que desconheço. “O que vais me oferecer?”, pergunto-lhe. Fiz questão de nada ler antes de chegar à ilha. Sabia apenas o básico: era uma antiga prisão federal, com fama de lugar impossível de escapar. Cheguei a ela, portanto, com a alma nua de informações que pudessem me induzir qualquer emoção.

Eu me ponho em silêncio quando visito lugares novos. Quero ouvi-los sussurrar suas histórias. Em geral, confio mais nos meus sentidos, checagens e observações desapaixonadas que nas impressões alheias, cuja origem ignoro. Ainda no mar, em meio à minha solitude, sem perceber, comecei a cantarolar baixinho um trecho de Vivaldi.

Cum dederit dilectis suis somnum. Ecce haereditas Domini filii, merces fructus ventris.

O movimento faz parte da obra sacra “Nisi Dominus”. Se não me falha o latim, é a parte do Salmo 127 em que Salomão fala de Deus a conceder o sono aos seus amados, herdeiros e dádivas.

Penso que sobre a ilha rochosa fustigada pelos ventos viveram frutos de tantos ventres. Sentinelas uns, prisioneiros outros. Minúsculas dádivas convertidas em marionetes no grande teatro da experiência humana.

Percorro as ruas pavimentadas, as escadarias, vejo o antigo clube dos soldados, erguido antes da ilha se tornar prisão. Ali, num tempo antigo, houve festas. Uma velha fotografia desbotada me revela que os soldados e suas esposas tentaram emprestar alegria ao isolamento. Suas vozes se perderam. Hoje, a hera selvagem sobe pelas paredes de alvenaria arruinadas. Pelo buraco das janelas desdentadas se vê o mar, imenso mar.

Há uma sensação de abandono por toda a ilha. Algo frio e tristonho, mais ligado ao aspecto decadente das construções que aos fatos históricos que ali se passaram. Ferrugem, vidros quebrados e pinturas descascadas compõem um cenário que remete à solidão contagiosa dos quadros de Edward Hopper, mas cobertos de poeira, em frangalhos. Durante a invasão de 1969, Alcatraz  foi  depredada e incendiada, mas resiste. Sua tomada insuflou coragem aos índios americanos e mesmo após quase sessenta anos abandonadas, as plantas do antigo jardim insistem em florescer. O farol ainda está de pé. É belo, embora sua arquitetura de inspiração mediterrânea pareça cansada de testemunhar tantas lutas.

No edifício principal, estão preservados celas, refeitório, cozinha, as dependências dos oficiais e a sala de entrada, onde se recepcionava os prisioneiros.

Folheio o menu, surpreendentemente bom. O sentimento que me toma no refeitório é a mais profunda melancolia. Pelas amplas janelas se vê San Francisco do outro lado, tão longe, tão perto. Os prédios modernos se alinham no horizonte. Qual seria a sensação de ver a liberdade a poucas milhas, acenando como uma sereia para Ulisses?

Por falar em Ulisses, a Odisseia me segue de perto durante toda a visita. Não poucas vezes lembrei do herói grego, preso por sete anos na ilha da ninfa Calipso, a olhar para o mar nunca cultivado. Lá chegou por causa de suas ações intempestivas. Não o consolaram a beleza da paisagem que seus olhos viam ou o alimento que lhe servia a deusa. Nós, os que vivenciamos a pandemia, bem sabemos o peso da privação de liberdade. E só isso explica a loucura que seduziu tantos a se arriscarem em fugas, atirando-se a águas intranquilas, de fortes correntes marinhas e temperaturas baixíssimas.

Os turistas fazem fotos, tagarelam, ouvem a história nos áudio-guias. Eu escuto a voz das paredes fraturadas, das aves marinhas, do farol solitário, das celas vazias.

Antes de ir embora, percorro os jardins abandonados. Estou sozinha, o mar se mostra cinza-azulado e um nevoeiro começa a cobrir tudo. Arbustos e as bravas flores que nascem nas encostas da Califórnia encaram, impávidos, os fortes ventos que vêm do Pacífico.

De repente me dou conta: há, por toda parte sinais da vida que insiste em brotar no bruto chão. Flores, árvores, pequenos roedores e ninhos de pássaros rompem o concreto das construções, imiscuem-se pelas paredes, tomam posse do que foi corrompido. Decretam sua soberania, estendem seu grande manto sobre todas as dores. Não as apagam, mas as cobrem de cores novas.

Alcatraz é uma ilha de escombros humanos cercados por todos os lados pela natureza redentora. E finalmente descubro porque cantarolei Nisi Dominus. Vivaldi pôs melodia nos versos que falam da inutilidade de levantar cedo e dormir tarde, comendo o pão das dores, sem que haja algo divino a embalar o sono dos bem-amados.

Compreendo que os filhos, heranças e dons concedidos são a explosão de cores ao redor da ilha, o céu no qual os cirros fazem desenhos, as flores desabrochadas sem pudor e as árvores a se debruçar sobre as águas. Algo sagrado e puro, que convida ao recolhimento e fala de belezas imortais.  

Sorrio ao pensamento de que à noite, no silêncio de Alcatraz, se pode ver as constelações caminhando no negrume do cosmos. E se alguém se deitar no chão, talvez no velho pátio abandonado onde os prisioneiros tomavam sol, pode escapar num solitário voo em direção ao único porto seguro: o próprio coração, onde dançam todas as estrelas.

(Texto e fotografias: Sonia Zaghetto)

Abaixo você lê curiosidades sobre Alcatraz e encontra um roteiro completo para visitar a ilha, além de links e fotografias. Ao final, há um vídeo do contratenor alemão Andreas Scholl cantando Nisi Dominum, de Vivaldi.

Links:

História de Alcatraz (em inglês)

Surpresas de Alcatraz

Há muitas lendas em torno de Alcatraz. À imaginação geral é um lugar de torturas físicas dantescas. Uma ilha cercada de tubarões assassinos, assombrada pelos fantasmas dos que ali morreram atormentados. A realidade é dura, mas bem menos dramática que a imaginação e os filmes de Hollywood. Abaixo, alguns fatos sobre Alcatraz.

1. A penitenciária de Alcatraz – por vezes chamada “A Rocha” – funcionou por apenas 28 anos e oito meses. Foi inaugurada em 1º de julho de 1934 e fechada em 21 de março de 1963. Possuía 336 celas individuais,  42 celas de “confinamento solitário”. A prisão nunca alcançou lotação completa. Em média, abrigava 260 prisioneiros. A maior ocupação foi de 302 condenados.

2. A USP Alcatraz foi projetada para servir como a primeira penitenciária de segurança máxima e privilégios mínimos da América. De 1934 a 1963, abrigou alguns dos mais notórios criminosos dos estados Unidos: especialistas em fuga, líderes de gangues e criadores de problemas. Todos foram mantidos em um ambiente praticamente à prova de fuga na ilha rochosa no meio da Baía de São Francisco.

3. Anteriormente, na época da Guerra Civil, Alcatraz serviu como fortaleza defensiva do Exército dos EUA. Desde 1859, ela fazia parte da defesa da Baía de São Francisco. Com o tempo, a ilha foi convertida em prisão militar. Prisioneiros militares construíram a Cellhouse and Recreation Yard (onde os prisioneiros tomavam sol) entre 1909-1912.

4. Depois do fechamento da prisão, a ilha foi ocupada por indígenas e militantes dos direitos civis, tornando-se um marco importante no movimento pelos direitos dos índios americanos. É que não só prisioneiros violentos viveram em Alcatraz. Ali também foram encarcerados indígenas, inocentes. Há uma foto deles, abatidos, em uma das primeiras salas que se se visita.

5. O tempo médio de permanência dos condenados era de aproximadamente oito anos. Nenhum prisioneiro começava a cumprir sua pena diretamente em Alcatraz. Para a ilha iam os de mau comportamento, os chefes de organizações criminosas ou os  que tentavam fugir de outras prisões federais.

6. Nenhum prisioneiro foi executado em Alcatraz. A penitenciária não tinha instalações para cumprimento da pena de morte.

7. A prisão era um estabelecimento educativo. Uma das regras dizia: “Aqui você terá direito a comida, roupas limpas, acomodação e assistência médica. Tudo o mais é um privilégio”. Aos prisioneiros cabia manter as celas limpas. Todos tinham celas individuais com banheiro. Ninguém era obrigado a comer todas as opções do cardápio, mas toda a comida pedida pelo prisioneiro deveria ser consumida.

8. O cardápio de Alcatraz era bastante razoável. A ideia não era torturar.  Entradas incluíam palitos de queijo, salsão cortado, salada de toranja e abacate, sopa de amendoim, ervilhas com manteiga e biscoitos salgados. Prato principal: peru assado, miúdos, ostra, geléia de cranberry e molho de cranberry, batata doce caramelada, peru assado, aipo. Sobremesas: torta de abóbora, nozes, frutas, café e uvas frescas

9. Os produtores do filme “Escape from Alcatraz”, com Clint Eastwood, gastaram US$ 500 mil para restaurar a decadente prisão e recriar a antiga atmosfera.

10. Alcatraz não era o lugar retratado por Hollywood. Nos filmes, os guardas eram mostrados como pessoas brutais e os roteiristas incluíam vários episódios violentos que não aconteceram. Alcatraz era uma prisão difícil, mas buscava-se a justiça e não a tortura. Era mais segura e melhor administrada do que muitas outras prisões.

11. Não há tubarões assassinos nas águas que cercam Alcatraz. O maior perigo são as fortes correntes marinhas e as águas geladas que cercam a ilha e podem matar por hipotermia. Embora a Baía de São Francisco esteja repleta de tubarões, a maioria são espécies pequenas e que não atacam pessoas. Os grandes tubarões brancos raramente se aventuram dentro da baía, embora sejam numerosos nas águas do Oceano Pacífico. A distância entre Alcatraz e a margem da baía é pequena. Várias pessoas conseguiram atravessar a nado essa distância. Mas não era o caso dos que tentaram fugir  a nado. Os prisioneiros não estavam acostumados com as águas geladas e não tinham condicionamento físico e roupas adequadas para enfrentar a travessia. Entre os que conseguiram nadar entre Alcatraz e o continente estão duas crianças, as irmãs Mitali e Anaya, que fizeram suas primeiras travessias aos dez e oito anos, respectivamente. Anaya tornou-se a detentora do recorde aos dez anos. Leia aqui (em inglês).

12. Não se tem notícia de alguém ter escapado de Alcatraz durante o período em que a penitenciária federal funcionou. Um total de 36 presos estiveram envolvidos em 14 tentativas de fuga separadas. Destes, 23 foram apanhados, seis foram mortos e dois morreram afogados. Cinco homens desapareceram e nunca mais foram vistos, mas a grande probabilidade é que tenham se afogado e seus corpos nunca tenham sido encontrados. Um prisioneiro conseguiu chegar até as rochas sob a ponte Golden Gate, onde foi encontrado inconsciente e à beira da morte. Ele foi devolvido à ilha em poucas horas e não resistiu.

13. Quando Alcatraz funcionou como prisão militar entre 1861 e 1933, um número desconhecido de homens escapou da Ilha ou de grupos de trabalho no continente.

14. Prisioneiros famosos: Al Capone ficou preso em Alcatraz por 4 anos e meio. Chegou à ilha em 22 de agosto de 1934 junto com outros 52 presidiários da Penitenciária Federal de Atlanta, na Geórgia. Os trabalhos dele incluíam varrer o prédio em que ficavam as celas e trabalhar na lavanderia. Capone, o Scarface, não era popular em Alcatraz e não recebeu privilégios especiais (como ocorreu na Filadelfia), mas sua notoriedade fez dele um alvo: brigou com outro interno no pátio de recreação e foi colocado em isolamento por oito dias. Enquanto trabalhava no porão da prisão, um presidiário que esperava por um corte de cabelo o esfaqueou com uma tesoura. No início de 1939, as autoridades o transferiram para o Federal Correction Institute Terminal Island, no sul da Califórnia, para cumprir o restante de sua sentença de 11 anos.

Outro prisioneiro famoso era Robert Stroud, o Birdman (Homem-Pássaro). Ele ficou famoso por cuidar de pássaros e colaborar em pesquisas sobre ornitologia quando estava na Penitenciária de Leavenworth, no Kansas, onde esteve preso de 1914 a 1942. As autoridades da prisão o enviaram para Alcatraz para afastá-lo de seus pássaros e da atenção do público. Enquanto estava em Alcatraz, Stroud passou seis anos em confinamento solitário no Bloco D e mais onze anos no hospital da prisão. Ele não tinha pássaros em Alcatraz, e passava a maior parte do tempo lendo e escrevendo. O declínio da saúde levou à sua transferência em 1959 para o Centro Médico para Prisioneiros Federais em Springfield, Missouri, onde morreu em 21 de novembro de 1963.

Em 4 de setembro de 1934, o infame George “Machine Gun” Kelly chegou à prisão de Alcatraz. Ele trabalhou na prisão como coroinha na capela e também na lavanderia.

15. Red Power em Alcatraz. Em 1969, um grupo de ativistas indígenas americanos que se autodenominava “Indians of All Tribes” (Índios de Todas as Tribos) tomou Alcatraz. Juntou-se a militantes do Movimento pelos Direitos Civis, aos que protestavam contra a Guerra do Vietnã e aos hippies. Os grupos alegavam que o Governo dos Estados Unidos havia desativado a ilha e por isso a propriedade deveria ser devolvida aos Índios. A ocupação durou 19 meses, um tempo durante o qual houve depredações e incêndio. A maioria das construções está bastante arruinada, com vidros quebrados e paredes descascando. Muitos consideram a tomada de Alcatraz como um redespertar da cultura, tradições, identidade e espiritualidade dos indígenas americanos.

16. Os jardins de Alcatraz eram uma fuga da triste rotina da prisão. Presidiários considerados confiáveis podiam relaxar junto às flores e outras plantas.

17. A chamada Cell House (o edifício onde ficam as celas) foi construída na década de 1940. O piso, as paredes e o teto de cada cela eram feitos de aço, o que tornava as celas ainda mais frias.

18. Seis celas (conhecidas como celas escuras) ficavam no nível mais baixo do Bloco D. Eram as solitárias. Cada cela possui portas internas e externas. Isso permitia que se mantivesse o prisioneiro na escuridão total por até 19 dias consecutivos. Os homens nas seis celas também eram alimentados com uma dieta limitada a pão e água. Poucos prisioneiros foram para essas celas.

19. A última das seis células “escuras” era conhecida como célula “strip”. Esta cela continha apenas um buraco no chão para um banheiro. Era também chamada “The Hole”.

20. A primeira coisa que se vê ao desembarcar em Alcatraz é o aviso “Terra Indígena”. É uma lembrança da invasão à ilha, em 1969. Há exposição sobre a ocupação e os direitos indígenas em um dos prédios. No centro dela está montada uma tipi.

Roteiro e dicas para visitar Alcatraz:

1. Compre os tickets no local oficial, o único autorizado pelo governo dos EUA (clique aqui). Há várias opções de tour diário e noturno (e um exclusivo no qual é necessário reunir um grupo, chamado Alcatraz Behind The Scenes) . Escolha data e hora no site e pague via cartão de crédito ou débito. O processo todo é bastante simples. Não é necessário imprimir o bilhete. Basta mostrá-lo no celular.

2. De preferência, use transporte público. Evite ir em veículo próprio ou alugado: o estacionamento é difícil e há muitos furtos de carros na região.

3. Na área de espera há uma maquete contendo todas as construções da ilha e uma série de informações sobre Alcatraz.

4. Os barcos saem pontualmente do Pier 39, em San Francisco. Chegue antes se quiser pegar um bom lugar e tirar fotos da chegada à ilha. Os barcos – movidos a energia soilar e eólica – têm três andares. No térreo há mesas, cadeiras e grandes janelas de vidro. No segundo e no terceiro andares, bancos retos.

5. Em Alcatraz, nas embarcações e na área de espera para o embarque é rigorosamente proibido consumir alimentos ou bebidas alcoólicas. Há vários avisos lembrando a proibição de fazer refeições ou mesmo beliscar salgadinhos. Garrafas de água são permitidas.

6. O clima em Alcatraz é imprevisível e sujeito a mudanças inesperadas. San Francisco vive sob uma névoa densa e gelada que tem até nome: Karl, o fog. Karl desrespeita todas as estações. Em pleno verão, na Califórnia, lá está ele, cobrindo tudo e obrigando moradores e turistas a vestir casaco e touca. Assim, leve casacos e uma blusa extra mais quente. No inverno e até a metade da primavera leve capa de chuva.

7. Use protetor solar, óculos de sol, sapatos confortáveis (há rampas e escadas). Salto alto, sandálias escorregadias e vestidos leves que possam ser levantados pelos fortes ventos definitivamente não são recomendados.

8. Atenção se for levar crianças: não se pode levar comida, o passeio é demorado e a caminhada exaustiva. Prepare-se antecipadamente.

9. A ilha é um santuário da vida selvagem. Por isso é expressamente proibido trazer de lá folhas, flores, pedras, insetos ou qualquer pedaço das construções.

10. Há um pequeno quiosque perto do porto de embarque e desembarque, além de uma grande loja no prédio principal. Lá é possível comprar toda sorte de lembrancinhas: cartazes com as regras da prisão, réplicas das camisas azuis e das canecas dos prisioneiros, cartões postais, casacos, canetas, adesivos e globos de vidro da Golden Gate sob a neblina. Também há uma grande variedade de livros sobre a famosa prisão e sobre a fauna e a flora da ilha.

11. Prepare-se para passar pelo menos três horas visitando o local.

12. As visitas incluem as antigas construções militares, antes do local ser transformado em penitenciária de segurança máxima; o farol; a casa do diretor; os jardins e o edifício principal, onde ficava a prisão em si.

13. A caminhada por rampas e ruelas corresponde a subir aproximadamente as escadas de um prédio de treze andares.  Para quem tem dificuldade de locomoção há transporte especial, aberto, que permite apreciar o caminho.

14. Os audioguias são excelentes. É possível também captar os áudios via leitura de um QR Code. Para quem fala inglês, é a oportunidade de ouvir as vozes dos antigos guardas e prisioneiros narrando os acontecimentos e informando sobre os detalhes da prisão.

15. Imperdíveis: o farol, a vista de San Francisco perto da casa do diretor, o refeitório (confira o cardápio) e a prisão em si, com as celas restauradas.