O que dizem os teus mortos? Os meus dizem coisas extraordinárias. Narram contos finos como bolhas de sabão, deliram ao rememorar grandiosos feitos, embolam-se em mesquinharias, elevam risos e curvam a cabeça diante das tragédias. Sussurram-me ao pé do ouvido que, no fim de tudo, restam apenas as histórias, que subvertem a morte e atravessam os milênios transmitindo o que agitou as dobras de um tempo antigo.
No canto onze da Odisseia, Ulisses desce ao Hades, o mundo subterrâneo, para encontrar o espírito de Tirésias. Navega até o fim do oceano e ingressa no reino da temível Perséfone. Lá, põe sua espada sobre a vasilha de sangue dos animais sacrificados e, assim, controla os que falam e os que calam. Cada morto que caminha – pálido e desmemoriado – revive por fugazes instantes ao provar do líquido símbolo da vida.
Os gregos dos tempos homéricos acreditavam que todos os mortos iam para o Hades, independentemente de suas ações boas ou más. Por isso Ulisses encontra ali a própria mãe, os heróis da guerra de Troia, rainhas lendárias, amigos, inimigos e o tolo companheiro que acabara de morrer por causa de um descuido. Todos têm algo a dizer.
O que busca Ulisses no mundo dos mortos? Preparar-se para o futuro e ouvir as histórias do passado. Por breves instantes, enquanto suas vidas são narradas, vivem de novo. Repetidas pelos poetas, gravadas nos livros, suas experiências venceram os séculos e fizeram chegar até nós as lições que aprenderam.
Sem descer ao Hades, falo diariamente com os meus mortos. Trago-os à vida quando lhes rememoro as vozes. Doces cantigas, lamentos e retalhos das trajetórias dos que já não estão aqui são como fotografias antigas das quais se sopra a poeira. Fazem ouvir novamente o som dos risos de mães, materializam mãos calosas de pais, canções murmuradas, livros lidos, soluços há muito silenciados e o sulco das lágrimas em faces hoje desaparecidas. Recolho os pedacinhos como quem reúne um quebra-cabeças divino.
Meus amados não estão nos túmulos enfeitados de grinaldas pálidas e flores que logo murcharão. Também não estão nas cinzas espalhadas pelo ar. Não se impressionam com a cera a escorrer das velas. Estão bem vivos nas histórias que repito aos meus filhos e ponho nos meus escritos. Elas devolvem a cor aos olhos mortos, aquecem os corpos e fazem bater novamente os corações.
Minha oração permanente é honrar-lhes a memória contando fragmentos das suas vidas, que de simples e banais têm apenas a aparência.
Dia haverá em que, à moda de Fernando Pessoa, todos estaremos mortos e a natureza seguirá sem alterações, indiferente à nossa ausência. Não há garantia que as gerações futuras se lembrarão de algo. A não ser que esteja gravado na matéria imperecível da arte.
Mas, você há de perguntar, para que contar histórias? Certamente não para tornar alguém famoso. Fama – aprende-se com Aquiles no Hades – é tolice e de nada vale quando se está morto. O que se conta sobre os mortos serve para conectar os homens do passado aos do futuro.
Histórias dão significado à experiência humana. Indicam que todos partilhamos medos, agonias e sonhos. Ouvimos hoje as vozes de homens que viveram há milhares de anos e não nos sentimos mais sós. Somos um cordão de pérolas unidas por minúsculos prazeres e grandes dores.
Uma vida, qualquer vida, é capaz de inspirar um romance – mesmo que o personagem principal seja alguém obscuro ou cuja experiência trágica servirá de reflexão e aprendizado para os que ainda vão nascer.
Ao narrar algo, o legado dos que viveram antes continuará a desfiar seus pensamentos, a embalar as noites e a preencher os dias com o já vivido. A trilha dos antepassados pode nos inspirar a viver plenamente, experimentando tudo em profundidade: alegrias, perdas, luto e fracasso. Podem nos reerguer, aconselhar e inspirar, indicar que há caminhos possíveis quando a angústia espalhar seu manto de sombras sobre nós, advertir sobre os perigos da jornada. Sabedoria ou tolice, maldade ou idealismo – tudo estará posto à mesa e servido.
No fim de tudo, repito, importa apenas a história de cada um. Se alguém a contar, estará cumprida a profecia dos versos de Shakespeare: enquanto a humanidade puder respirar e ver, os cantos dos poetas nos tornarão imortais – um dia de verão, cujo frescor jamais se extingue.
Pintura: The soul of the rose. John William Waterhouse
Soneto 18 – William Shakespeare
Como hei de comparar-te a um dia de verão?
És muito mais amável e mais amena:
Os ventos sopram os doces botões de maio,
E o verão finda antes que possamos começá-lo:
Por vezes, o sol lança seus cálidos raios,
Ou esconde o rosto dourado sob a névoa;
E tudo que é belo um dia acaba,
Seja pelo acaso ou por sua natureza;
Mas teu eterno verão jamais se extingue,
Nem perde o frescor que só tu possuis;
Nem a Morte virá arrastar-te sob a sombra,
Quando os versos te elevarem à eternidade:
Enquanto a humanidade puder respirar e ver,
Viverá meu canto, e ele te fará viver.
(Tradução de Thereza Christina Motta)
Réquiem – Wolfgang Mozart
James Gaffigan rege a Orchestre National de France e o Coro da Radio France no Requiem em Ré menor K. 626 de Wolfgang Amadeus Mozart. Soprano: Marita Solberg; mezzo-soprano: Karine Deshayes; tenor: Joseph Kaiser; baixo :Alexander Vinogradov.
Divino. Obrigada
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Gratidão, por ouvir tão grande obra de arte, que os sons das cordas cheguem até o meu irmão que encontra-se entre os anjos do Céu. 🙏💖
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