Silêncio, silêncio. Nada digas, meu filho. Já vai alta a tarde e vejo nos teus olhos que o fio da vida se esgarça.
Silêncio, meu filhinho, eu sei o que se passa no teu coração. Vejo teus lábios se movendo, em meio à agonia. O que pedes? Água? Piedade? Não, meu filho, meu amor. Pedes que alguém tome o teu lugar na minha vida. Teus olhos fixos nos meus, entretanto, dizem o que nós dois sabemos: teu lugar não pode ser ocupado.
Há algo errado no mundo, meu filho. Daqui a alguns anos, quando todos os meus cabelos estivessem brancos, serias tu a me segurares as mãos quando eu cruzasse os portais de um universo desconhecido. O que existe após essa vida é mistério. Talvez haja luz, talvez apenas silêncio.
Ingênua eu fui. Imaginei que aos poucos a minha pele se tornaria fino pergaminho e tu me carregarias nos braços. Eu seria então a tua criança. Meu corpo frágil, minha mente se apagando aos poucos, meus passos trôpegos receberiam de ti os mesmos cuidados que te dispensei ao chegares.
Mas os sonhos humanos são bolhas de sabão. Mesmo esses, tão simples. O mundo os desfaz.
Mal te vejo agora. Um véu líquido se colocou entre mim e todas as coisas. Tudo está molhado, tudo tão triste.
Do teu peito escapou um suspiro leve, eu o ouvi. Ruach. Com ele algo também fugiu de mim. Estremeço, meu filho. Algo se rasga de cima a baixo. Um estrondo, uma dor que as palavras não traduzem. Ainda há cor nos teus lábios e eu já sinto o abismo da tua ausência. Já não sou inteira. Alguém me oferece uma taça cheia de fel. Eu a recuso. Travo os dentes, cerro os lábios, mas a mão implacável pressiona as minhas bochechas e despeja todo o fel garganta abaixo.
Ergo os olhos para o sol que se põe e penso em coisas belas a desaparecer. Carícias nos teus cabelos, doçuras na minha voz, os risos nas nossas horas. Onde estão agora os meus tesouros pequeninos?
Onde estás, meu filho, meu amor?
Recebo o teu corpo ferido pela crueldade dos homens. Abraço-te com cuidado e passo teus braços em torno do meu pescoço. Eles caem. Afundo o rosto nos teus cabelos. Teu cheiro, meu filho, meu amor.
Um dia, eu sei, daqui a muito tempo, estarei na cozinha. Um aroma de pão assando me lembrará de ti, sentado no chão, com uns olhos enormes a me fitar, e aquele encantamento com que todas as crianças olham as mães. O dia em que um passarinho pousou nos teus ombros. Sorrirei à lembrança.
Irei devagar até a janela e olharei o céu sem nuvens. Os dias terão se passado entre amanheceres esplêndidos e ocasos espetaculares. A natureza seguirá seu ritmo, indiferente à tua partida.
Sentirei uma brisa fresca a me soprar os cabelos. Logo virão as chuvas. De repente, ouvirei um ruído leve. Bater de asas? O vento a passar entre as folhas da velha árvore? Não, não. Vou apurar o ouvido. No meu coração, no exato local em que habitas, uma voz canta suave melodia. Um cantiga para ninar adultos. Então ouvirei a minha própria voz murmurando:
Eu escuto, meu filhinho, meu amor.
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(Texto: Sonia Zaghetto. Imagem: Marina Yatsko e o namorado Fedor velam o filho de 18 meses de idade, Kirill, morto no bombardeio, num hospital em Mariupol, Ucrânia, no dia 4 de março de 2022. Foto de Evgeniy Maloletka/AP)
Stabat Mater
Abaixo ouça uma das mais belas composições sobre a Mater Dolorosa. Stabat Mater, de Giovanni Battista Pergolesi. A performance, conduzida pela maestrina Nathalie Stutzmann, traz como cantores o contratenor francês Philippe Jaroussky e a soprano Emöke Barath. O local da gravação é a Chapelle de la Trinité, no Château de Fontainebleau, França, em abril de 2014.
O Stabat Mater é um hino cristão datado do século 13. Narra o sofrimento de Maria, mãe de Jesus Cristo, durante a crucificação. A autoria é incerta. Acredita-se que possa ser do frade franciscano Jacopone da Todi ou do papa Inocêncio III. O título do hino vem do primeiro verso: Stabat Mater dolorosa. O Stabat Mater foi musicado por diversos compositores ocidentais: Vivaldi, Scarlatti, Haydn, Schubert, Rossini, Liszt, Dvořák e Verdi.
Uma das obras sacras mais célebres de Pergolesi, o Stabat Mater alcançou grande popularidade após a morte do compositor. Pergolesi morreu de tuberculose em 1736, aos 26 anos de idade, e compôs a peça nas suas últimas semanas da vida, no mosteiro franciscano em Pozzuoli.
Entre os grandes admiradores da obra está Jean-Jacques Rousseau, que disse sobre o movimento de abertura: “É o dueto mais perfeito e tocante que saiu da pena de qualquer compositor”.
Após a galeria de pinturas, ouça o Stabat Mater de Antonio Vivaldi.
Galeria de pinturas









Stabat Mater, de Antonio Vivaldi
O contratenor britânico Tim Mead e os músicos do grupo de música antiga Les Accents interpretam o Stabat Mater, de Vivaldi, em 29 de junho de 2017, na Sainte-Chapelle, em Paris. O condutor é o violinista Thibault Noally.
Maravilhoso! Sônia que presente!🌹❤️
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Obrigada, querida Vera. Boa Páscoa para você. ❤
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Que texto, Soninha, que belo e tocante! Obrigada, amiga!
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Bom Dia Sonia . Texto maravilhoso . Apesar de ser muito triste a realidade . A galeria de fotos é maravilhosa. Acordar e ler seus textos não tem preço 🥰🙌
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Muito obrigada, minha querida.
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Obrigada, minha querida Zileni. Um beijo.
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Maravilhoso texto, Soninha. Obrigada por nos trazer algo tão belo. Feliz Páscoa minha amiga!😍😘
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Muito obrigada, minha querida.
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Texto belo e comovente Sonia e muito boas as explicações sobre a música e pinturas que acompanham o texto.
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A constante sensibilidade de fazer um paralelo com o contemporâneo! Parabéns e obrigada!
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Obrigada, querida Silvia. Captou perfeitamente a intenção. Um beijo!
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A dor traduzida em palavras! Só você conseguiria !
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Obrigada pelo carinho, querida Márcia.
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Boa Páscoa, Sônia querida. Estou com os olhos úmidos. Você é encantada, amiga.
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Silvinha querida. Obrigada.
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Você nos alimenta o espírito, os dias.
Sigamos.
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Querida Selma, sempre generosa. Muito obrigada.
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Que presente lindo.
Ótima Páscoa Sonia,que sempre estejamos prontos para as renovações 🙏
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Feliz Páscoa, querido.
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Muito obrigada querida, por esse texto maravilhoso! Um verdadeiro bálsamo !! Amei! 😍😍 Feliz Páscoa 🐣 🌺🥰
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Muito obrigada, minha querida.
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Estarei de hoje em diante, procurando vc, por aqui. Impossível ficar sem seus textos que tanto fala à minha alma! Vai contando de sua residência literária, qdo puder! A públicação de hoje marcou com chave de ouro ( e lágrimas) sua despedida do Facebook. Se for para alguma rede social, avise-nos! Sucesso em seu caminho complementar, que será coroado de êxito, com certeza!
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Tanto falam…
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Obrigada por estar aqui. Receba meu abraço carinhoso.
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Este seu texto, tive que lê-lo em etapas, tamanha a força e o desassossego causados. Volto a ele e o releio (mais uma vez) em etapas. Ele é dor transformada em poesia. E faltou-me o ar.
Obrigada, muito obrigada pela sua arte.
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Minha querida, eu agradeço pela leitura sensível deste texto que me causou igualmente muita emoção. Um abraço muito carinhoso.
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Olá Sônia. Esse texto é muito profundo. Mais uma vez gostaria de utilizá-lo em um episódio do meu podcast. Algum problema? O episódio será exatamente sobre Maria.
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Oi Carlos. Claro que pode usar sim. Fico honrada. Um grande abraço!
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Querida Sônia, que texto pungente, tristeza em forma de poesia. Parabéns!
Já ansioso pela mensagem do dia das mães! Obrigado
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