Decidi tirar um período sabático, longe das redes sociais, a fim de reorganizar pensamentos e reequilibrar sentimentos. Por vezes as vozes externas se tornam muito altas e é necessário mergulhar em quietude a fim de encontrar a si mesmo, ouvindo o som familiar do próprio coração. Desde então, cada detalhe pequenino da minha vida desimportante me ensinou o reaprendizado da felicidade que vive na paz. Não à toa os antigos gregos, os monges taoístas e os sábios yogues valorizavam tanto a tranquilidade da alma.

Meus dias agora têm se passado como se fossem exercícios de respiração ou movimentos de Tai Chi Chuan: lentos, conscientes, precisos e muito delicados.

Na varanda, as tardes são calmas, com um livro nas mãos ou simplesmente olhando com a máxima atenção o movimento da brisa a passar entre as folhas, assobiando esperanças. Não raro me apanho imaginando os segredos que acontecem no vasto mundo da Natureza. O movimento da areia sob a onda que explode em espuma na praia, o que vai no coração apressado dos beija-flores, o exato instante em que as sementes eclodem. A ciência, que desvenda milagres, de vez em quando me põe ao alcance dos olhos os mais doces mistérios da vida. Esta semana, desnudou uma tulipa.

Comprei no supermercado um vaso para cultivar tulipas. Continha água e cinco bulbos. Fiquei seduzida, confesso, pela possibilidade de testemunhar o completo ciclo de vida da planta. Não em um documentário da NatGeo, não com a voz de sir Richard  Attenborough narrando o evento. Eu mesma, vendo de perto, em direta experiência.

Coloquei o vaso transparente sobre a minha mesa de trabalho. A primeira coisa que percebi é que enxergaria tudo: bulbo, raízes e folhas. Minha tulipa estava exposta, desnuda ao meu olhar curioso. Sem segredos. Nada de terra ocultando o bulbo, nada coberto, nenhum milagre ocorrendo na escuridão do solo. E por alguma razão senti como se violasse algo muito sagrado, espiasse onde olhos humanos não eram autorizados.

Há agora entre nós uma estranha intimidade, na qual tenho vantagem. Eu a vejo inteira e ela me vê parcialmente, coberta de roupas, mostrando apenas o que desejo seja visto. Com algum pudor, toco suas folhas cheias de seiva e espio delgados fios saindo do bulbo em direção à água do vaso, ávidos como bebês recém-nascidos.

Nos primeiros dias, as tulipas dormiram num cobertor de folhas. Havia silêncio de gestação. Aos poucos emergiram os botões, muito verdes. Devagar, abriram caminho em direção ao sol, gradualmente tingindo-se de tons amarelos, como se um artista invisível os pintasse durante a noite. Passei os dias contemplando-os atentamente. Agora são cinco flores douradas, que a cada dia se abrem mais ao meu olhar. Não consigo tirar os olhos delas. É como estar numa sala de parto ou num berçário de estrelas. A natureza em sua hora de maternidade. Solene.

Toda essa experiência me lembrou a antiga tradição indiana, a respiração de Brahma e os yugas, ciclos de vida que vão e vêm. A trindade hindu é a metáfora da Natureza. Talvez nos tempos imemoriais, quando os homens olharam para a vastidão do mundo e quiseram explicar tal grandiosidade, acreditaram que só o divino poderia representar a beleza ritmada do que viam. Brahma, o criador; Vishnu, o mantenedor; e Shiva, o destruidor. Nascer, crescer, reproduzir, morrer – o destino de toda vida.

Brahma – o movimento que fez brotar as tulipas – já se foi. Agora é a hora de Vishnu, o tempo de existir, de cumprir seu papel. E como existem as tulipas! Que imensa é a sua beleza. Logo chegará a era de Shiva. Assim como aconteceu com as minhas papoulas, narcisos e jacintos, dentro de alguns dias as tulipas vão morrer. Curta é a vida. As folhas lisas e vigorosas perderão o viço. As pétalas cairão, as folhas murcharão, o bulbo se tornará ressecado. E então eu, que a tudo testemunho, lamentarei por mais não as ter comigo. É infantil e egoísta, bem sei, pois a impermanência é a marca da existência. Conformar-me com o que não posso modificar é o que me imponho. Vou recolher os bulbos ressequidos e encerrá-los numa caixinha. No próximo outono, eu os depositarei na terra úmida e eles adormecerão até que venha de novo a primavera para despertá-los. Tudo se transforma. De poeira estelar a flor em formato de estrela, a vida se reinventa.   

Mas isso é futuro. Ainda estamos sob o domínio de Vishnu, a vida pulsa, exuberante. Redobro meus cuidados às flores que plantei, mas também aos cactos. Faço questão de cactos. Cheios de grandes espinhos, têm uma aura misteriosa e mantêm à distância os humanos (quase sempre um perigo às coisas belas). Fazem bem os cactos por manterem elevadas as suas defesas. Não se aproxime demais, parecem dizer. Pus enfeites coloridos nos meus cactos. Eles, inconformados, produziram suas próprias flores, obras de arte em miniatura. Expulsaram as artificialidades. Eu, humildemente, entendi o recado.

A primavera chegou avassaladora, como sempre. Gosto da primavera porque nada tem de tímida. Expulsa o frio, tudo invade com suas cores dramáticas e uma explosão de perfumes de rosa e jasmim. Em poucas semanas, a terra renasce, os dias se tornam mais longos, pássaros, abelhas e borboletas estão em toda parte.

Na varanda, os galhos da árvore, que até semanas atrás estavam secos, agora estão cobertos de folhas verde-claras. O  sol as atravessa e incide sobre as flores nos vasinhos. É como o final da Quinta Sinfonia de Mahler, plena de triunfo e energia após uma jornada árdua e deliciosa.

Tudo se renova, todas as dores passam, tudo convida a desfrutar o instante presente. Não se recusa um convite desses.

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(Texto e fotos: Sonia Zaghetto)

Abaixo você encontra um texto e vídeos da Sinfonia nº 5, de Gustav Mahler. Antes, conheça o fragmento de um hino védico em homenagem à deusa Durga, contido no Rig Veda, canto X. O texto foi livremente traduzido por mim, adaptado e editado. Ele também pode ser interpretado como uma ode à natureza. O Rig Veda foi escrito entre 1.700 e 1.100 anos antes de Cristo. É o documento mais antigo da literatura hindu.

Eu sou a Rainha, a colecionadora de tesouros, primeira dentre os que merecem adoração.

Os deuses me puseram em tantos lugares, com muitas casas para entrar e morar.

Eu forneço o alimento que os nutre. Cada homem que vê e respira, ouve a minha voz.

Eles não sabem, mas eu resido na essência do Universo.

Eu curvo o arco de Rudra, para que sua flecha atinja os que não são meus devotos.

Eu desperto e ordeno a batalha interna.

No cume do mundo, eu ponho o céu, o Pai. E minha casa está nas águas, no oceano que é Mãe.

Estou em todas as criaturas existentes e as manifesto no meu corpo.

A consciência eterna e infinita sou eu. Minha grandeza habita em tudo.

Mahler e a explosão de uma alma de artista

Sonia Zaghetto

A quinta sinfonia de Gustav Mahler bem expressa a turbulenta alma de um artista. Tudo nela fala dos paradoxos emocionais de Mahler e da maioria de nós, os que fazemos da arte o nosso pão e o nosso refúgio.

Mahler escreveu sua quinta sinfonia durante os verões de 1901 e 1902. Em fevereiro de 1901, ele havia sofrido uma grande hemorragia que quase lhe custou a vida. O compositor passou um longo tempo se recuperando em sua vila à beira de um lago no sul da Áustria. Apesar dos problemas, de um começo de vida difícil e da saúde abalada, ele  paradoxalmente estava em seu melhor momento. O sucesso profissional havia chegado e ele conhecera a talentosa Alma Schindler. Quando voltou para sua vila no verão de 1902, estava casado com Alma ​​e ela esperava seu primeiro filho.

A sinfonia inicia com um trompete e ribomba, enchendo ouvidos e corações com algo poderoso e desafiador. Há tempestades, som de passos marchando, desalento, ousadia, uma trilha acidentada, fogo sob a pele, entusiasmo, paixão, algo fúnebre e trágico, com gotas de sal e de fel. Mas há também melodias muito doces, harpas, violinos, a vida em comédia, valsa, redenção, bálsamo e cantiga. Nela, o adagietto, carrega  um amor de encher os olhos. Põe açúcar sob a língua, a um passo do sublime, do mais alto encantamento. Ao terminá-lo, resta um silêncio emocionado e se tem a sensação de ter testemunhado algo muito secreto, como uma olhada indiscreta na alma de alguém ou a intimidade de dois amantes. Não por acaso a música foi usada em vários filmes, o mais famoso deles Morte em Veneza, de Luchino Visconti. No final, triunfo: um único tom de trompa logo ecoado pelas cordas, numa alegria ensolarada, selvagem e incontida. Ou, como definiu o próprio Mahler: “É uma expressão de energia incrível. Um ser humano em plena luz do dia, no auge de sua vida”. Essa obra desafiadora e viril, que Mahler estreou em 18 de outubro de 1904, na cidade alemã  de Colônia, foi revisada, emendada e modificada por ele diversas vezes. A última revisão foi em 1911, nos últimos meses de sua vida. O artista é um inquieto, um inconformado, um perfeccionista que costura, descostura, recostura. Quase todos somos assim, escravos do inatingível fantasma da perfeição e das nossas agonias. Quase todos somos assim, exceto Mozart. Pois Mozart é o sol.

Adagietto, da 5a Sinfonia de Mahler. Regente: Herbert von Karajan. Berliner Philharmoniker

Gustav Mahler. Sinfonia No.5. Regente:  Claudio Abbado. Lucerne Festival Orchestra, 2004