Houve um tempo em que os dias passavam mais lentamente. Um tempo em que se olhava nos olhos das pessoas. Um tempo de livros, de árduo trabalho e de cadeiras na porta das casas. Nele, a vida se esvaía como sempre e o mundo seguia seu ritmo. Os homens sabiam de que lado nascia o sol e conheciam os nomes das estrelas no céu de verão.
Numa tarde desse tempo em que se sonhava com terras longínquas, os sábios trouxeram uma caixa mágica, onde se concentravam todas as maravilhas. Ao abri-la, os homens comuns descobriram um novo universo, muito semelhante ao seu. Ali, adquiriam uma espécie de corpo especial. Os avatares transitavam, deslumbrados, no mundo onde a fantasia se misturava à realidade, criando raízes fortes nas almas.
Enquanto mergulhados na caixa de deslumbramentos, os homens entravam em animação suspensa. O corpo ainda permanecia respirando no mundo físico, mas os espíritos navegavam pelos ansiados países distantes, bibliotecas imensas e maravilhas insuspeitas.
A caixa era sedutora, hipnótica.Os dias passaram, semanas vieram, meses findaram e os anos escoaram na ampulheta do mundo. E, cada vez mais, os homens amavam a caixa e suas belezas. Os poucos que não a usavam suspiravam, solitários, diante do corpo vivo e desprovido de alma dos amados tragados pelo caixote de delícias. Ouviam seus risos altos e seus rugidos de ódio, mas nada entendiam. O corpo dos amados se agitava, movido por sentimentos que a caixa lhe oferecia e que eram inacessíveis aos circunstantes que nela não viviam.
Olhe para mim, aqui é a vida real, com as contas e os beijos – pediam alguns. Aqui também há canções, flores, amigos e risos. – respondiam os usuários da caixa mágica. Nossos avatares vivem melhor que nós: comem melhor, amam mais, são mais belos. A vida é uma permanente agitação.
A caixa era democrática. Permitia que nela vicejasse o sentimento mais puro bem ao lado da mais crua perversidade. Bastava escolher. Nos seus muitos ambientes, os avatares se descobriam e se amavam. Mas também viam, assustados, o que o mundo real ocultava. A caixa expunha as vísceras dos homens, seus mais secretos pensamenos, sua miséria moral. E era duríssimo de ver, embora viciante.
Aos poucos, a vida na caixa tornou-se sombria. Mal mergulhavam nela, muitos homens choravam. Decepção, ira e medo (muito medo) emergiam do pequeno objeto que antes apenas encantava. Alguns abandonaram a caixa, assustados com seu poder corrosivo. Outros já não conseguiam se libertar. Lutavam, mas mal afastavam-se dela, a caixa emitia sons que os arrastavam de volta. E a maior parte sequer cogitava apartar-se do ambiente cativante. Estavam firme e voluntariamente atados ao seu poder encantatório.
A caixa era agora o seu tudo: fonte de informação, roda de amigos, grupo familiar. E se quisessem identificar as estrelas no céu, não precisavam erguer os olhos para a grande boca da noite: bastava erguer a sábia caixa (ela é portátil) e perguntar-lhe o nome dos sóis. Ela dizia a resposta, com a precisão e a riqueza de detalhes de um astrônomo experiente: esta é a alpha de Scorpii, com magnitude aparente de +1,09. Um astrofísico bem à mão. Pena que não pudesse, num tapete de grama, em noite de suave frescor, estender os braços por sobre os ombros de um filho e, apontando o indicador para o céu pontilhado de estrelas, lhe dizer: “Aquela ali, que brilha como um rubi, é Antares, o coração do escorpião. Veja como a “cauda” de estrelas da constelação se estende pela noite de inverno, enroscando-se, linda, e nos fazendo ver bichos no firmamento escuro e misterioso”.
É preciso saber lidar com a caixa. Libertar-se eventualmente de suas teias de enredamento. Há tempo para ela e há tempo para a vida real, onde há tosse, gente que se engasga com farofa e copos a serem lavados, mas também há os momentos únicos e gloriosos desse breve sopro que chamamos vida.
Ilustração: Pawel Kuczynski, Flat World
Como não amar, quando essa caixa mágica nos permite ler Sonia Zaghetto?
CurtirCurtir