Já faz algum tempo que nos ocupamos com a política – o que não é ruim. O homem – animal político – deve se preocupar com os rumos da pólis, vigiar os que comandam o destino do grupo e os que detêm a chave do cofre. Participar é fundamental. Dá a todos a sensação de determos algum poder no jogo dos poderosos.

Há milênios embarcamos com gosto renovado nesse embate que nos consome. Escolhemos um lado, que consideramos o melhor para a nossa aldeia, e nos dispomos a defendê-lo com fúria – até a golpes de tacape sobre o adversário.

A história está cheia de períodos em que o sangue ferveu na defesa de ideias, personalidades, propostas. É como droga a nos consumir.

A entrada em cena das redes sociais agravou o cenário. Agora há a possibilidade de nos fecharmos em grupos que nos reforçam as ideias ou o comportamento de manada. As redes não só ampliaram a voz dos idiotas da aldeia (palavra de Umberto Eco), mas também a dos manipuladores e dos farsantes. Estes, sedentos de algum tipo de poder, sempre tiveram público cativo, alguém disposto a aderir de peito aberto a teorias esquisitas, falácias e vozes estridentes. Basta que algum esperto lhes diga o que desejam ouvir.

Viciados em disputas, vivemos nas bolhas que julgamos corretas, nas quais os condicionamentos nos subjugam. É óbvio que condicionamentos são parte da nossa existência, um tributo praticamente inescapável que pagamos para estar no mundo. O que defendo, entretanto, é preservarmos alguma vigilância sobre as artimanhas da nossa mente e sobre o poder corrosivo das influências externas sobre nós.

Uma dessas armadilhas é a vontade de impor nossa vontade a todo custo. Acho curioso como alguns se auto-impõem a missão de colonizar a cabeça alheia, certos de que vão dobrar o pensamento do outro. É uma espécie de sanha salvacionista, na qual pouco se busca a persuasão. A ideia básica é amordaçar ou enfiar a “verdade” pessoal goela abaixo. E isso se faz via ridicularização, uso de rótulos e memes, piadinhas toscas ou ações agressivas em grupo. Ganha-se o debate na base do grito. E há as justificativas: antes, só meu inimigo gritava, agora eu grito também. Acabaremos todos surdos e com o cérebro atrofiado, pois não?

Outra é justificar todas as abjeções e se sujeitar a comportamentos que não admitimos em nossas relações pessoais. É curioso, pois estabelece um paradoxo com as cuidadosas escolhas que fazemos para a educação dos filhos ou a escolha das amizades. Roubo, corrupção, cusparada na face alheia, reações desequilibradas, grosserias injustificadas, pensamento raso, maniqueísmos infantis, nada disso nos é caro na família ou no grupo dos que chamamos de amigos. Ao contrário, nos horroriza. Mas as aceitamos no debate e no fazer político. Há quase 60 anos, George Orwell chamou a isso de duplipensar. Continua a ser uma prática popular que percorre o espectro político de ponta a ponta.

Cada vez mais subjugados pelo espírito de grupo, não cedemos um milímetro. Extrapolamos todos os assuntos para o cabo de guerra da política nacional. Uma barafunda na qual já não respeitamos a dor causada pela morte, rimos dos que se preocupam com a preservação da terra em que vivemos e dos que identificam a lavagem cerebral que há anos domina diversos setores da nossa sociedade. Enfim, da direita à esquerda, vivemos sob o signo de uma guerra. Tudo é motivo para erguer as armas.

Discernir entre bons e maus momentos dos ídolos e adversários, reservar a crítica para a ocasião certa, usar argumentos razoáveis, tudo isso é desprezado, atribuído a um idealismo juvenil que já não cabe num jogo cada vez mais bruto. É a armadilha do círculo vicioso, uma arapuca muito bem construída na qual nos fartamos com migalhas de pão amanhecido enquanto caminhamos de bom grado para grades mentais.

Eu não acredito em divindades intervencionistas (já diria o Nick Cave), mas se acreditasse certamente pediria para essa divindade misteriosa que nos inspirasse a ser mais racionais, a cultivar a boa argumentação e a polidez no dizer e especialmente no pensar. Não há quem aguente viver nessa fúria diária.

Já não se trata apenas de justa indignação e reação a governantes populistas, que assaltam os cofres públicos ou se valem da máquina governamental para satisfazer suas mesquinhas visões de mundo. Trato aqui da maneira como esse embate insano tem intoxicado a vida, dominado nossos pensamentos, azedado as conversas, arruinado as relações e soterrado a beleza que há em nós.

Uma beleza muito humana feita de reflexão, estudo, empatia, serenidade. Beleza elaborada na forja dos milênios de civilização, mas que insistimos em afogar num mar de agonias contemporâneas.

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Imagem: A Escola de Athenas. Rafael Sanzio, Museu do Vaticano.