Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é um pedaço do continente, uma parte do todo. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa do teu amigo ou a tua própria. A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti“.

O poema do inglês John Donne inspirou Ernest Hemingway quando este escreveu sobre a guerra civil espanhola. Tomou-lhe o último verso para dar nome ao romance sobre as dores cruéis de um povo que destruía a si mesmo. Nada é pior que uma família dividida, uma nação em que o inimigo interno corrói os laços de amor.

Há lições nesta pandemia de Covid-19.

A maior delas é que este deve ser um tempo de solidariedade, de cessar fogo.

Tempo de desarmar os espíritos.

Estamos diante de uma nova guerra e ela nos exige coragem, é óbvio, mas também sabedoria, sacrifícios e o exercício da calma. Até hoje ninguém provou que o desespero e o ódio sejam bons conselheiros. Muito ao contrário.

É hora de aprender a escolher onde se vai gastar energia.

A crítica, racional e justa, ainda tem lugar. Ela deve se propor a corrigir os abusos, os erros flagrantes. As vozes devem se erguer contra equívocos, venham de onde vierem.

Entretanto, é dispensável a crítica enlouquecida, paranóica, odienta, que espalha terror e insegurança nos espíritos mais frágeis. Esta deveria ser esquecida, para o bem de todos.

Não é hora de sermos inimigos uns dos outros. Mesmo que por algum tempo, devemos fazer necessária trégua. Agora é o momento de trabalharmos juntos. Caso contrário, morreremos cada um na sua trincheira.

Felizmente no Brasil começa a surgir uma rede de solidariedade. Empresas doam dinheiro para a saúde; outras oferecem sapatos confortáveis e hospedagem para médicos e enfermeiros, algumas compram kits de exames e máscaras. Cidadãos comuns começam a se mobilizar para confeccionar aventais e equipamentos de proteção para as equipes de saúde.

Aos poucos, o Brasil começa a fazer valer aquilo que mais nos orgulha: a inventividade, o “jeitinho do bem”, a solidariedade que sempre foi a nossa marca e diferencial.

É bonito de ver. É emocionante.

Óbvio: igualmente aparecem os aproveitadores, os ladrões, os golpistas, os cínicos, os que escolhem espalhar o pânico e boatos maldosos, os que tiram proveito da situação caótica. Mas a estes nem me dirijo. Creio que quem faz tais coisas é impermeável a conselhos.

Falo a todos os demais, que têm consciência de que este é o momento em que se deve deixar aflorar o herói que vive adormecido em nós. O homem que zela pela sua comunidade, que se sacrifica, que cuida dos demais, inclusive dos desconhecidos. O homem que sabe que todos precisamos desesperadamente uns dos outros; o que tem aguda consciência de que não somos ilhas isoladas.

Algo maior que nós surgiu. Maior que nossa resistência.

Por isso este tempo exige que palavras como solidariedade, amizade e empatia sejam prioritárias. Exige que cuidemos uns dos outros. Exige que o sentimento individualista ceda espaço para o bem coletivo.

É possível nos ajudarmos em coisas que pouco ou nada custam.

Ficar em casa deveria ser visto não como punição, mas como um gesto de amor. A doença pode nada lhe causar, mas pode ser fatal para outros. Por seu intermédio, ela pode contagiar pais, avós, irmãos e amigos mais frágeis. Cuidado com o egoísmo: ele também pode matar.

Tenha compaixão. Tenha responsabilidade.

Este é um tempo de nos unirmos, de trabalharmos juntos.

É preciso se dar conta de que há médicos, enfermeiras, auxiliares e toda sorte de gente que estará exaurida nas próximas semanas. Aplaudi-los é lindo e os emociona. Mas não basta. É preciso dar-lhes comida, amparo, tranquilidade, horas de descanso, respeito no trato. Não os sobrecarregue, não grite com eles ou faça exigências descabidas. Use a telemedicina antes de ir a um hospital lotado.

Nas casas isoladas há pessoas solitárias, que precisam de telefonemas, de uma voz amiga. Ligue para elas, doe seu tempo a um idoso solitário, a um amigo em confinamento.

Mande mensagem ao vizinho perguntando se precisa de algo. Ofereça-se para fazer compras para os amigos diabéticos, asmáticos, idosos.

Há amigos e parentes que ficarão desempregados. De nada custa oferecer-lhes alguma ajuda, comprar alimentos, medicação, gás de cozinha, conta de luz.

Pague a faxineira para que fique em casa cuidando da família dela. Ela estará amedrontada – assim como você e eu. E você já teria mesmo essa despesa, não é? Desta vez será uma doação de amor a quem lhe serve.

Não é hora de aumentar o preço do pão, nem do queijo ou da manteiga.

Não é o momento de esvaziar sozinho as prateleiras de supermercados e esgotar os estoques de farmácias.

É tempo de ligar para o inquilino e dizer: posso esperar pelo dinheiro do aluguel, posso reduzir o valor neste período se o seu salário for cortado ou o seu negócio estiver fechado.

É possível fazê-lo.

Como naqueles filmes de catástrofes e cenas apocalípticas, estamos diante de uma escolha: o de sermos o protagonista, cuja grandeza emociona, ou o antagonista, que todo mundo detesta por sua mesquinharia e sordidez.

Quando tudo isso passar, será necessário contar a história aos filhos. Qual será a sua?

***

O Bom Samaritano, de Jacob Jordaens, c. 1616