Nada no mundo é mais perigoso que a ignorância sincera e a estupidez conscienciosa.”
Martin Luther King
No mais famoso diálogo d’A República, de Platão, Sócrates induz Glauco e Adimanto a imaginarem uma caverna onde humanos estão presos desde a infância. Suas pernas e pescoços estão acorrentados, de modo que só enxergam o que está diante deles.
Na caverna há uma entrada pela qual chega a luz de uma fogueira acesa na colina que se ergue por trás dos acorrentados. Entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada, na qual há um pequeno muro.
Diz Sócrates: “Ao longo desse muro, homens transportam objetos de toda espécie”. Os homens da caverna tomam por objetos reais as sombras projetadas na parede e julgam que as vozes dos trabalhadores, que ecoam, longínquas, são os sons emitidos pelos objetos.
Sócrates especula sobre o que aconteceria se alguém libertasse um desses prisioneiros e lhe mostrasse sua ignorância. Ele poderia mover o rosto, caminhar e contemplar a luz da fogueira, mas seus olhos estariam despreparados. Sua mente acostumada às sombras se refugiaria nas antigas memórias. Os olhos feridos pela luz ofuscante do sol não distinguiriam os objetos reais que lhe mostrassem.
Arrancado à força da sua caverna e obrigado a trilhar o caminho rude e escarpado, acreditaria ser vítima de grande violência. Só aos poucos habituaria os olhos e distinguiria as imagens até aprender os detalhes do que chamamos mundo e seu funcionamento. A história prossegue, com esse liberto lembrando-se de sua primeira morada e de seus companheiros de cativeiro. Lamentaria os que lá ficaram. Voltaria, tentaria esclarecê-los. Em vão. Estes estariam acostumados à sombra. Pior: entre eles haveria os “doutores” que reforçariam suas visões equivocadas. Rir-se-iam-se dele. Poderiam até matá-lo.
Platão escreveu A República há 2.500 anos. Assim como o livro, as cavernas sobreviveram à passagem dos milênios. Desabituados à escarpada estrada do conhecimento que liberta e à luz da reflexão, preferimos a prisão dos preconceitos, das ideias falsas e convenientes. Queremos muros protetores e cavas familiares, além de cenários fáceis.
A luz nos ofusca e incomoda. Qualquer sinal de mudança é um choque a nos apavorar. Resistentes a qualquer alteração no que julgamos ser o caminho certo, encharcados de certezas e dogmas, perdemos o bem mais precioso: a capacidade de questionar, duvidar, examinar e aprender com a observação e a experiência.
Abrir a mente ao exame racional ainda é um desafio para grande parte da humanidade. Mais fácil acreditar na corrente do WhatsApp.
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Ilustração: Markus Maurer
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Pequenas notas pessoais:
No dia 9 de novembro de 1989, caiu o muro de Berlim. Exatamente 27 anos depois, os Estados Unidos elegeram como seu 45º presidente um homem que prometeu construir um muro.
Muros sempre foram práticos e, simultaneamente, simbólicos. Barreiras altas contra adversários e indesejáveis. Donald Trump propôs o seu para manter fora das fronteiras de seu país aquele exército latino mal visto por uma larga parcela dos americanos nativos. Deu-lhes um inimigo, técnica para seduzir mentes frágeis bastante eficiente e fartamente usada por praticamente todo mundo que faz política. O eleitorado? Respondeu com a docilidade que lhe é própria. Adotou o muro físico e várias muralhas ideológicas – dentro deles há conforto, familiaridade, rostos conhecidos.
A eleição de Trump foi fruto de uma reação, entre outros motivos, à agenda progressista, a alguns excessos politicamente corretos e à voz das redes sociais, cujas bolhas passaram a se retroalimentar. A caverna vizinha moveu o pêndulo social.
Alarmaram-se os outros prisioneiros, sentiram falta do que lhes é familiar. Reagiram ao discurso apocalíptico, às condenações ao esforço e ao mérito, à falta de limites e aos arrogantes ansiosos por holofotes. Para eles, a rota segura é feita de pescoços avermelhados pelo sol que incide no lombo, Bíblia na mão, empregos de volta e uma boa comida feita pela mulher na cozinha. Com pouca escolaridade, temem imigrantes, querem fábricas em território americano e violento combate ao terrorismo. Suspiram à menção de que sua mítica América será grande novamente e acham que gays vão pro inferno sem escalas. São pessoas que acreditaram na balela de Donald Trump sobre Obama não ser americano ou Hillary ter criado o Estado Islâmico.
Tratar com esse público requer um talento marqueteiro específico. Trump valeu-se de um discurso populista e rude para alcançá-los, inclusive declarando que construiria um muro e mandaria a conta para o México. Brilharam os olhos dos acorrentados quando o republicano encheu a boca para chamar Clinton de “criminosa” e “falsa”. Somando-se isso ao perfil e à biografia de Hillary, nenhuma surpresa quanto ao resultado das urnas.
Por outro lado, entre os eleitores de Trump há dois outros grupos, não majoritários e mais esclarecidos intelectualmente. Um é formado por pessoas que se preservam em público e, embora não sejam homofóbicas-machistas-racistas, secretamente repudiam os exageros do politicamente correto. Trump fez em público o que estes não têm coragem sequer de sussurrar. Por isso o chamam, erroneamente, de “autêntico”.
Um outro grupo de apoiadores do bilionário é o dos que tratam a economia não como inimigo, mas como motor do progresso, e a querem mais pujante; almejam por mais armas nas mãos da população e pensam que o combate à desigualdade social se faz com educação e empregos, e não com mera distribuição de renda. Obviamente, nessa caverna também se escondem teorias conspiratórias risíveis. Não estivessem tão absorvidos contemplando as sombras da parede e tais prisioneiros ririam também. Estes tentam ignorar que Trump é um falastrão inconveniente, que chama os mexicanos de estupradores e trata mulheres como sub-raça. De olhos postos nas próprias visões do mundo, mal veem que Trump rompeu o pacto social, não se intimida em inventar mentiras, abusa da leviandade e faz retroagir algumas décadas de polidez – e esta não se confunde, em momento algum, com o politicamente correto.
Para a geração que acha que o próprio umbigo é o sol, Trump foi um choque de realidade. Atingidos em cheio pelo movimento pendular. E assim os EUA sairam de um cenário com um presidente negro, filho de imigrantes, carismático e conciliador – para lidar com um ricaço grosseirão, que flerta com a sordidez e não mede palavras ou consequências.
O susto atingiu também outros dois grupos: o dos que nunca imaginaram que alguém com tal perfil pudesse ser eleito presidente dos Estados Unidos e a torcida que usa muito mal o crachá de jornalista.
Encerrados nas próprias cavernas, foram surpreendidos pelos fatos e reagiram como sempre: apregoando o apocalipse. Os primeiros pecaram por subestimar a grande massa dos que querem emprego e segurança. Quanto aos segundos, é o preço que se paga por não seguir o manual da profissão, que recomenda não se envolver excessivamente com o objeto da notícia. Alguma neutralidade (a que for possível) na avaliação nunca fez mal ao jornalismo sério. No futuro, menos adjetivos e advérbios, mais verbos e substantivos.
Ambos os grupos aprisionaram-se em seus muros. Se abrissem os olhos identificariam que a lógica e o bom senso já não governavam a caverna ao lado.
É perfeitamente detectável o sentimento de desforra dos eleitores de Trump ao eleger alguém que enfrentou a patrulha ideológica e “vai fazer as coisas voltarem aos eixos”. Os red necks mandaram um duro recado à prepotência dos justiceiros sociais, aos políticos que os manipulam e à sua ilimitada capacidade de descobrir razões de ofensa em todas as coisas. À histérica fala dos caçadores de privilégios alheios, reagiram alçando à Casa Branca o contra padrão: um homem sem limites morais, com ares de predador sexual e vocação para cultuar apenas sua própria verdade. De quebra, humilharam um segmento cada vez mais impopular – o político de carreira. Como bem adiantou Michael Moore em julho passado, Trump foi arremessado por esses eleitores como um “coquetel molotov pessoal”.
Mais valeria a pena terem ouvido a voz experiente de Martin Luther King: “No processo de conquistar nosso legítimo direito, não devemos ser culpados de ações injustas. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Temos sempre que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar sós”.
A postura de Dr. King é o atrito necessário para que o pêndulo sossegue. Quanto mais cedo os humanos aprenderem isso, melhor.
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Voltemos ao Muro de Berlim. No dia 12 de junho de 1987, o ex-presidente americano Ronald Reagan visitou rapidamente a Alemanha. Em meio à tensão da guerra fria, o republicano postou-se no Portão de Brandemburgo protegido por dois painéis à prova de balas. Diante de 45 mil pessoas, fez um discurso inspirado (leia aqui) e apelou ao então líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev: “Há um sinal de que os soviéticos podem fazer que seria inconfundível, que faria avançar dramaticamente a causa da liberdade e da paz. Secretário Geral Gorbachev, se o senhor procura a paz, se procura prosperidade para a União Soviética e a Europa Oriental, se procura a liberalização, venha aqui para este portão. Sr. Gorbachev, abra o portão. Sr. Gorbachev, derrube esse muro!” (Assista aqui, ao discurso de Reagan (em inglês).
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Na mitologia grega, o Tártaro era o local mais profundo da terra. Uma prisão escura e abafada, por onde corria um rio de fogo. Esse lugar de sofrimentos, que despertou a imaginação de poetas como Hesíodo e Virgílio, era cercado por tremenda muralha de bronze. Desde a antiguidade é sabido que o muro delimita o inferno.
Quer descobrir o mundo real e libertar-se do inferno da opinião que lhe faz cego na caverna? Derrube o muro! Tear down this wall!