Em 6 de maio de 2020, o Brasil contabilizou o recorde de mais 615 mortes. Com isso, subiu para 8.536 o total de óbitos no país. Das vinte cidades com maior mortalidade e incidência de casos, 18 são do Norte e do Nordeste.

A edição de hoje é dedicada à população pobre do Brasil que agoniza na porta dos hospitais das regiões mais pobres do país.

Na coluna Palavra de Médico, o inspirador depoimento do médico Fernando Kogen Kawai, que trabalha na linha de frente do atendimento a pacientes de Covid-19 em Nova York. Coincidentemente, hoje é uma data especial para Kawai, praticante do Budismo. É o Vesak, data que celebra o aniversário de Buda, sua iluminação e sua morte. Hoje é dia de budistas do mundo inteiro fazerem ofertas de flores. O texto do Dr. Kawai é uma oferenda.

Nesta edição também trazemos o texto “O enfermeiro me levou para ver Deus”, do jornalista Pascoal Gemaque, que contraiu o novo coronavírus e está internado em um hospital de Belém do Pará. Uma pequena pérola de delicadeza.

A Imagem do Dia vem do Brasil. É do ilustrador René Cardillo para a reportagem especial do portal Uol sobre a médica Ho Yeh Li, que foi transformada em personagem da Turma da Mônica, em uma homenagem da Maurício de Sousa Produções. O tributo faz parte do projeto Donas da Rua. Nascida em Taiwan, Ho Yeh Li veio para o Brasil em 1983, onde se naturalizou e cursou medicina na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é coordenadora da UTI de infectologia do Hospital das Clínicas em São Paulo. Uma das mais importantes infectologistas do Brasil, Ho integrou missão de resgate de brasileiros em Wuhan, na China, e ficou em quarentena após ter contraído o coronavírus.

Inspiradora.

Leia aqui a reportagem especial do Uol sobre a médica Ho Yeh Li.

Palavra de Médico

No Campo de Batalha contra o Covid em Nova York

Fernando Kogen Kawai

Nova York é um epicentro mundial do coronavírus, com mais de 181.000 casos confirmados e 18.540 mortes até o dia 4/05. Só na cidade de Nova York (população de 8.4 milhões) já tivemos mais de que o dobro das mortes no Brasil inteiro (que tem população de 209 milhões de pessoas).

A Capital do Mundo é um campo de batalha e eu trabalho em um centro de trauma nível 1 convertido em um hospital Covid no coração do Queens, área densamente povoada, o bairro mais atingido da cidade. Estou na linha de frente no calor da luta e acabei de completar um mês de muitos longos dias (e noites) trabalhando no hospital.

Minha equipe e a administração do hospital estão trabalhando heroicamente, porém esse é um desastre que desafiou agressivamente o coração do sistema de saúde mais rico do mundo.

Trabalhei como médico paliativista nos últimos 9 anos, cuidando da dor e do sofrimento de pessoas com doenças graves, tentando melhorar a qualidade de vida dos pacientes e ajudar suas famílias. Antes da Medicina Paliativa trabalhei como clínico por outros 9 anos, tanto no Brasil como nos EUA.

Meu hospital estava extremamente sobrecarregado e me voluntariei como Hospitalista Covid para ajudar na linha de frente do atendimento de pacientes internados. Após 9 anos praticando exclusivamente Medicina Paliativa, de repente fiquei encarregado de uma equipe que cuidava de 25 pacientes em nosso Hospital (21 com Covid e 4 com outras doenças graves).

Foi muita adrenalina desde o início, com diversas emergências uma atrás da outra. Tratamos pacientes com baixos níveis de oxigênio e sinais vitais instáveis, choque (pressão arterial baixa pré-morte) em pacientes com infecção disseminada por Covid, atendendo também a crises convulsivas e respondendo às chamadas para iniciar ressuscitação em pacientes com paradas cardiorrespiratórias.

Isto não é televisão! Vida e morte estavam em jogo, e decisões rápidas precisavam ser tomadas! Para minha agradável surpresa, todos os algoritmos de emergência ainda estavam em algum lugar de minha mente e estabilizei pacientes usando memórias antigas. Foram dias frenéticos e ininterruptos que me lembraram os anos em que trabalhei como médico residente da emergência do HC-FMUSP, o maior hospital da América Latina.

Muitos pacientes responderam rapidamente à administração de oxigênio e ao tratamento de sintomas, e alguns dos pacientes que estavam em situações pré-morte melhoraram. Ao reconectar-me com minhas origens de Clínico Hospitalista, observei com novos olhos a ciência fantástica que é a Medicina. Ao atender emergências e salvar vidas, subitamente rejuvenesci, e me relembrei da adrenalina e entusiasmo de meus dias de Pronto Socorro no Hospital das Clínicas, 20 anos atrás.

Foi uma sensação ótima rejuvenescer, mas ao mesmo tempo fiquei muito grato de ter também aqui presente minha versão mais velha, o Médico Paliativista, calmo e experiente, acostumado a tratar pessoas morrendo. Alguns pacientes melhoraram após as medidas de emergência, mas, infelizmente, também houve muitos pacientes que pioraram, apesar de todos os tratamentos.

Tenho trabalhado muito como paliativista e também dando consultas nas muitas UTIs, Enfermarias e Pronto Socorro. Esse vírus letal é muito agressivo, e presenciei mortes desde pacientes com 20 e poucos anos sem comorbidades até os muitos idosos, com doenças crônicas. Também vi muitos pacientes morrerem nos seus 40, 50 e 60 anos.

Não acreditem em besteiras. Isso não é uma “gripezinha”. Testemunhei com meus próprios olhos famílias perdendo vários membros na mesma semana: mãe e filha, dois irmãos, marido e mulher, e assim por diante. Um número tão grande de casos que já perdi a conta. Isso foi traumatizante para os familiares e também para muitos de nós, profissionais de saúde cuidando de famílias inteiras a morrer.

Ao observar meus pacientes se aproximando do final da vida realizei reuniões virtuais por FaceTime e Skype com as famílias para discutir planos de tratamento que se concentrariam em ações de conforto e cuidados paliativos. Com o consentimento das famílias, estabelecemos planos de DNR / DNI (permitir uma morte natural sem máquinas em caso de piora), dando início também aos medicamentos para proporcionar alívio da dor, sedação e conforto. E, principalmente, usei meu celular e Ipad para conectar familiares distantes com seus entes queridos que estavam morrendo (nenhum visitante é permitido devido ao enorme risco de infecção).

Queens é a área mais diversificada em etnia do mundo, com 138 idiomas diferentes falados no bairro, onde imigrantes são sempre bem-vindos e instalam-se por aqui. Ao fazer as videoconferências pelo Ipad, tive a honra de ouvir os familiares dizendo “eu te amo”, “obrigado”, “adeus” e até “me desculpe” ou “eu te perdoo”. Ouvi essas expressões em chinês, urdu, espanhol, coreano, italiano, inglês e muitos outros idiomas. Ouvi orações muçulmanas pelo meu iPad e participei de orações católicas de Extrema Unção, testemunhei bênçãos do Evangelho Gospel dos negros americanos e ouvi mantras asiáticos exóticos. Também ouvi canções folclóricas gregas e presenciei um concerto privado, no qual uma concertista profissional tocou músicas para seu avô no seu leito de morte. Que honra prestar esses serviços à minha comunidade. Falamos idiomas diferentes e temos religiões diferentes, mas agora compreendo que é algo universal dizer “eu te amo” e enviar bênçãos aos entes queridos que estão deixando este mundo.

Muitos de meus colegas tem medo de telefonar para as famílias para informá-las de que seus entes queridos estão morrendo, e eu entendo e respeito completamente isso. Não é uma situação agradável. Mas, ao mesmo tempo, acredito que caso ensinemos aos profissionais maneiras adequadas de como dar más notícias, surpreendentemente essas chamadas terríveis podem se tornar momentos maravilhosos de conexão humana entre os pacientes, as famílias e seus profissionais de saúde. Algumas dessas ligações de Facetime durante a crise foram os momentos mais significativos da minha carreira.

Apesar de toda a morte e sofrimento, fico feliz em dizer que muitos pacientes também melhoraram e tiveram alta. Minha equipe conseguiu salvar a vida de alguns deles, tratando desidratação com soro intravenosos, hipóxia com oxigênio, sangramento com transfusões, infecções com antibióticos e assim por diante. Que alegria foi fazer ligações telefônicas para os membros das famílias dizendo que seus pais e maridos estavam melhor e a caminho da cura. Fico feliz de dizer que vi muitas pessoas se recuperando e até tive dois pacientes nos seus 80 anos com Covid e comorbidades graves que melhoraram muito e receberam alta.

Nos últimos 9 anos, muitos dos meus pacientes morriam ou tinham alta para Hospice ( um programa de tratamento especializado para pacientes terminais). Em uma estranha reviravolta do destino, durante essa grande crise de morte, subitamente consegui dar alta a pacientes que melhoraram e conseguiram voltar para casa. Lágrimas vieram aos meus olhos quando assinei a primeira alta, em 9 anos, “para casa / foi curado”.

Meu hospital tomou uma iniciativa na qual a canção “Don’t Stop Believing” toca nos alto-falantes toda vez que um paciente recebe alta, e que alegria foi para mim e minha equipe salvar algumas vidas e contribuir para ouvir a música tocando em nosso sistema de alto-falantes.

Por mais trabalhoso que tenha sido, tenho orgulho de dizer que tratei a dor e os sintomas daqueles que estavam sofrendo e morrendo, e tentei proporcionar algum alento para suas famílias. Além disso, tenho orgulho de ter lutado para salvar o maior número possível de vidas. É muito importante reconhecer que não estou fazendo isso sozinho. Luto lado a lado com muitos heróis altruístas: enfermeiras, médicos, Physician Assistants , terapeutas respiratórios, fisioterapeutas, auxiliares de enfermagem e muitos outros.

Muitos profissionais de saúde estão arriscando suas próprias vidas se expondo ao vírus e também estão arriscando a vida de suas famílias devido ao risco de levar o vírus na volta para suas casas. Eu mesmo fiquei doente em março e fiquei em casa por 13 dias, cansado, com falta de ar e dores . No processo acabei também infectando minha esposa. Felizmente, eu e Julienne nos recuperamos bem e ficamos curados, e me sinto muito sortudo, pois sei que poderia ter sido exatamente o oposto. Vi com meus próprios olhos colegas morrendo pela doença. Muitos profissionais de saúde morreram de Covid, e isso é muito triste.

Fico contente também de confirmar que o número de atendimentos ao pronto-socorro está finalmente diminuindo. Obrigado por terem ficado em casa e praticado o distanciamento social!

Infelizmente ainda temos centenas de pacientes graves internados. Esta guerra está longe de terminar. Volto para a frente de batalha animado e lutarei com meu corpo, mente e espírito; meu objetivo é usar meus conhecimentos “Para curar às vezes, aliviar frequentemente e confortar sempre”.

Alguns nascem nova-iorquinos; alguns se tornam nova-iorquinos. E todos são bem-vindos. Sou também um imigrante, e sinto-me em casa aqui. Amo Nova York mais do que nunca. É uma honra para mim lutar pela minha cidade e meus vizinhos e amigos nova-iorquinos.

No final do dia, mesmo que seja um dia muito longo, o amor sempre vence, como disse nosso governador Cuomo. Venceremos esta guerra, qualquer que seja o custo. Deus abençoe Nova York e seu povo e que a Força esteja conosco, profissionais de saúde, ao caminharmos para a linha de frente.
Godspeed, trabalhadores da saúde!

Leia aqui o texto completo do Dr. Fernando Kawai no Facebook.

Palavra de Paciente

O enfermeiro me levou para ver Deus

Pascoal Gemaque


Não consigo dar dez passos sem ficar esgotado fisicamente.

O vírus transformou meus pulmões em duas bolas dente-de-leite furadas pelo vizinho chato que odeia crianças.

Tarefas simples, cotidianas, equivalem a disputar uma maratona. E eu nem maratonista sou.

Precisava escovar os dentes. Pedi a um enfermeiro que me ajudasse. Aqui, onde estou internado, esses rapazes e moças têm sido incansáveis. Não apenas ajudam, mas fazem sorrindo, felizes, nos animando. Alguém um dia há de patentear esse remédio.

La vem o Cleudson (nome fictício), com uma daquelas cadeiras cujo assento lembra um vaso sanitário. Limite máximo na fronteira entre a derrota e a humilhação.

– São Jorge Guerreiro, diz ele, olhando a tatuagem que trago no antebraço. É o meu também. Já foi na igreja dele lá no Rio? No Saara?

Balanço a cabeça.

– Sim, quando tinha forças pra batalha. Hoje, mal consigo brigar contra as cáries. Imagino a vergonha do santo…

– Queisso, chefe? Jorjão é irmão. Puxa pro lado, te dá dois tabefes na cara e manda pra luta.

Chegamos. Cadeira estacionada, pia, escova, “pasta”. Cleudson à porta, esperando, de costas pra mim, olhando pra cima.

Escovei os dentes como alguém resgatado de uma ilha. Tom Hanks revisitado. Chamei o Cleudson.

Após a porta, ele para a cadeira no corredor que dá para a rua.

– Chefe, olha. Já viu Deus hoje? Olha pra cima…

Quando alguém acostumado a escrever não consegue descrever algo… é porque a coisa é seria. Cores, luzes, o sol espalhado num céu único…

– Fala com Ele, chefe. Pede, agradece… aproveita aí…

Comecei a chorar…

Tô chorando até agora.

– Chora, chefe. Põe pra fora. Qual o valente que nunca chorou no campo de batalha?

Leia aqui a postagem original de Pascoal Gemaque no Facebook

Estatísticas

Segundo o Ministério da Saúde, o número de infectados no Brasil chegou a 126.250 pessoas, com mais 10.503 novos registros da doença em 24 horas. Os recuperados totalizam 51.370. No mundo, a pandemia já infectou 3.755.341 pessoas e matou 263.831. São considerados recuperados 1.245.415.

As mortes por Covid-19 estão concentradas nos estados de São Paulo (3.045), Rio de Janeiro (1.205), Ceará (848), Pernambuco (803) e Amazonas (751).

Eis o número de óbitos nos demais estados: Pará (392), Maranhão (291), Bahia (160), Espírito Santo (145), Paraná (101), Minas Gerais (97), Paraíba (92), Alagoas (89), Rio Grande do Sul (87), Rio Grande do Norte (72), Santa Catarina (59), Amapá (56), Goiás (45), Distrito Federal (34), Rondônia (33), Acre (33), Piauí (30), Sergipe (23), Mato Grosso (13), Roraima (13), Mato Grosso do Sul (10) e Tocantins (9).

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