Houve um dia – era um dezembro de cinzas – em que a água escorreu entre meus dedos. Tentei reter pelo menos algumas gotas. Em vão. Secara a grande fonte em que estive mergulhada por nove meses, a água que me matou a sede de conhecimento, que me lavou a indisciplina da adolescência, a água que relutei tantas vezes em beber. Água farta, generosa.

Eu quis deter a mão da morte, que me abria os dedos e deixava a água escorrer; quis parar o tempo antes que toda a água se fosse – em vão. Restou a aridez da terra, onde as flores da memória lutam para sobreviver. 

Dizem que a água é inodora. Essa água de que falo tem aroma. Um perfume ancestral, inesquecível, que se grava na gente. Inicialmente, era pele, leite, suor. Depois vieram flores, temperos, água de colônia Bienêtre. Ainda hoje acredito que está em uma blusa que, quando uso, tenho a impressão que me abraça.

Também tem sabor essa água divina. Sabor de bolo quentinho nas tardes, da comida de mãe que nenhum chef reproduz.  Temperada pelo sal de muitas lágrimas.

O som dessa água é o dos risos altos quando contava piadas do Bocage aos netos. Som de orações no Angelus, de conselhos, de canções antigas do Roberto Carlos. E dos ecos de “Eu te amo, minha filha”.

O veludo das tuas mãos, minha mãe, ainda me faz falta. Lembro a forma dos teus dedos delicados, das veias saltadas nas mãos (tão iguais às minhas), da manchinha no nariz, dos cabelos que viraram neve – os fios tão finos.  E, como todo filho turrão e saudoso, lamento cada momento em que não me curvei diante de ti.

Houve um tempo em que o segundo domingo de maio era feito de um presente comprado pelo pai, de bilhetinhos carinhosos escritos com letra infantil, longos beijos estalados e de uma canção que ainda hoje não consigo ouvir sem que outro tipo de água tome meus olhos: “Mamma son tanto felice / Perche retorno da te/ La mia canzone ti dice / Che il piu bel giorno per me. Quanto ti voglio bene / Queste parole d’amore / Che ti sospira il mio cuore”. Hoje, é tecido de gratidão, de amor e de saudade.

Escorreu toda a água e chegou o tempo do deserto.

Estou sedenta, mãe, e nenhuma outra água é capaz de aplacar esta sede de milênios.