C’e’ gente che ama mille cose
e si perde per le strade del mondo
io che amo solo te
io mi fermero’
e ti regalero’
quel che resta della mia gioventu’
Na larga estante da existência, meu pai foi livro raro.
Não pertenceu à biblioteca dos reis e dos aristocratas, não ele. Jamais teve rica encadernação, letras douradas, nome na lista dos experts. Mas na minha estante humilde, de madeira sólida e aparência sóbria, ele reinou. Meu livro de carne e osso, meu exemplo de páginas nobres, no qual os conselhos brilhavam em letras firmes, parágrafos de risos longos e generosidade de ideias.
Seu primeiro capítulo foi marcado por partidas e chegadas. Veio ao mundo em noite de chuvas, num dezembro amazônico. Nos olhos de minha avó, outra tempestade desabava. Ao apertá-lo nos braços, viu que era o retrato do homem amado, que se fora dois meses antes, carregado por uma doença fulminante. Amou ainda mais aquele menino magro, que cresceria sem pai.
Anos mais tarde, teve a sorte de ganhar um padrasto digno, que tinha a mania de fazer da pobreza um trampolim para uma existência plena e significativa. No Rio de Janeiro, estudou, trabalhou com os alemães, tornou-se botafoguense e apaixonado por música.
Algo nele doía muito, uma solidão ancestral. Raros a notaram sob a capa dourada dos seus risos.
Eu tinha o hábito de adorá-lo: sempre foi meu amor mais puro, meu ídolo e meu parque de diversões.
– Sinto uma coceira na cabeça. Olha para mim, filhinha?
Era a senha secreta para que eu buscasse piolhos imaginários enquanto ele dormia a sesta. E, quando voltava do trabalho, contava intermináveis histórias: de cantores famosos, de filmes, de livros. Abraçados numa rede branca, eu fazia elaborados penteados nos cabelos do seu peito, brincava com as rugas de sua testa e com o “fosso” que a aliança cavou no seu dedo anelar. Ele falava, eu ouvia tudo, admirada como alguém podia saber tantas coisas sobre Gutenberg, Leonardo, Strauss, países longínquos e ainda pilotar barco, conhecer o mistério dos rios e dos peixes, e escrever coisas complicadas que os juízes elogiavam.
– Sabes que te amo?
– Sei sim, lalai.
Minha enciclopédia tinha um peito largo, um riso de dentes perfeitos, um M na palma das maos, a voz grave e mansa, que jamais se elevou enquanto viveu. Conheci todos os seus defeitos e muito mais suas qualidades. Com ele cantei Io che amo solo te, ouvi Dilermando Reis, descobri a poesia de Pixinguinha e dancei Vozes da Primavera.
O título de meu livro hoje é saudade. Desse homem, desse pai, desse livro raro que um dia esteve em minhas mãos e que eu tudo daria para ler de novo. Mesmo que estivesse com as páginas desgastadas, as letras quase apagadas, a encadernação rota. Ainda assim, seria o título mais precioso na larga estante da existência.
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Abaixo, Io que amo solo te, de Sergio Endrigo; e Abismo de Rosas, de Dilermando Reis.
Que lindeza, Sonia!
De aquecer o coração e fazer sorrir e chorar de saudade…
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