O homem puro existe. Ele habita o maravilhoso mundo das redes sociais, um ambiente onde os rostos não tem rugas, as cinturas não acumulam gordura e errar não é humano.
Os puros são abundantes. Um coletivo de almas formosas que passaram a vida a fazer o bem, nunca cometeram um deslize, jamais pronunciaram algo de que se envergonhariam profundamente.
Os puros são abundantes. Um coletivo de almas formosas que passaram a vida a fazer o bem, jamais cometeram um deslize, nunca pronunciaram algo de que se envergonhariam profundamente.
Os puros jamais foram tolos, injustos, irresponsáveis, cruéis, insensíveis, estúpidos, mesquinhos, invejosos. Não cometem sequer infração de trânsito, não tem maus pensamentos e nunca mentiram. Por isso julgam com tanta severidade. Falta-lhes familiaridade com o erro. São curtidos no caldo da perfeição. Não erram.
Os puros gostam de sangue. Humano e em grandes quantidades. Não se contentam com a humilhação do impuro. Mostrar desagrado ou desprezo pelo erro? É pouco. Muito pouco. Querem a vítima empalada, cabeça cortada, com direito a casa salgada e terra arrasada. Só assim se extingue o Mal da terra, pensam, sublinhando o “M” maiúsculo.
Eu, agnóstica e impura, sempre que vejo essas almas angelicais, recordo de um trecho dos Evangelhos. O que narra o célebre episódio da mulher adúltera sendo apedrejada. Perante os justiceiros da hora, diz o texto que Jesus Cristo escrevia na areia. O que escrevia? Talvez os Dez Mandamentos, aquela lista de quedas humanas em que constam crimes bem mais graves que o adultério ou dizer o nome de Deus em vão. Diz o texto que Jesus Cristo não confrontou a turba alucinada . Apenas autorizou os que estavam sem pecado a iniciarem o linchamento. Sumiram todos, pois não havia puros naquela época sem internet. E à mulher advertiu, simplesmente: não tornes a errar. Era mais uma sugestão que uma ordem.
Há uma grande diferença entre a atitude de condenar o erro e a de massacrar quem errou. Mas os puros não estão no mundo para advertir, ponderar, fazer brotar um aprendizado a partir de um episódio infeliz. Seu papel não é o de aprimorar a sociedade. Os puros deliciam-se em ser anjos vingadores, guerreiros do bem. Desconhecem a humanidade falível e sua capacidade de reerguimento. Talvez por isso julguem com tamanha severidade e clamem aos céus pelo esmagamento sumário dos que foram flagrados em impureza. Sua espada flamejante nada poupa.
Esse exército de serafins está sempre à espreita e se entedia rapidamente. Logo a vítima do dia será esquecida, pois uma nova será exibida na pirâmide dos sacrifícios e no mural da vergonha. As fogueiras ardem sem cessar e é necessário alimentá-las com mais bruxas.
No país das maravilhas virtual, onde habitam os puros, o apedrejamento campeia sem rédeas. Nele, a mulher adúltera morreria. E algumas pedras também arrebentariam os lábios de Jesus Cristo por tentar, mesmo que socraticamente, defendê-la.
É muito juiz pra pouco condenado! Esse virtual dá uma coragem danada para o apedrejamenro alheio! Muito bom o texto, Sonia.
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