Para Lizzie Bravo
Sons de risos e sombras de amor lhe tocavam os ouvidos quando ela desembarcou em Londres no auge do inverno. Estava saindo de casa, tinha quinze anos, amava os Beatles e seu nome era esperança.
Nos estúdios da Abbey Road, a mais famosa banda do mundo gravava um novo álbum. Do lado de fora, as adolescentes se acotovelavam, tremendo de expectativa. Dias e dias no frio, na chuva, sob o sereno e o sol forte. Ela também, porque esperança era o seu nome.
Por vezes, ser feito de esperança traz recompensas. Num minuto, com uma única pergunta, Paul McCartney mudou o mundo dela: Quem de vocês segura uma nota aguda? Levantou a mão, devagar. Os sons dos risos a incitavam e convidavam a entrar no estúdio. Ela foi.
Amor eterno e sem limites brilhou em torno dela, como um milhão de sóis, quando ela se aproximou do microfone para cantar a mais etérea canção de Lennon, sobre o roteiro para a iluminação. Mais perto, pediu John. Ela deu dois passos, tímida como costuma às vezes ser a esperança. Um pouco mais, ele insistiu. O coração disparou, as mãos suaram, o rosto dele tão perto, os óculos quase se tocando. Não podia ser diferente: o amor explodiu em notas e a fez flutuar através do universo.
Todos os deuses indianos sorriram juntos.
Jay guru deva. Om.
A vida seguiu. Agora, a esperança cantava rocks rurais, cantava com o Milton Nacimento, amava o Zé e trazia nos braços uma garotinha de cabelos cacheados, sem jamais deixar de carregar a lembrança do dia em que flutuou pelo cosmos pontilhado de estrelas.
Meio século depois da canção compartilhada, sentiu o coração bater de um jeito diferente, ao ritmo de um pequeno tambor perdido entre os sons do mundo. Um sonho chegou, inesperado. Nele, as palavras caíam como chuva fina num copo de papel. Gotas deslizavam e percorriam o universo inteiro. Piscinas de mágoas ficaram para trás, ondas de alegria tocaram a sua mente maravilhada. Tudo brilhava e recendia a carícias. Shiva dançava enquanto planetas e sóis nasciam; os astros misturando-se aos cabelos do bailarino cósmico. E a voz da esperança percorria as galáxias, semeando vida.
Em meio às cores desse novo dia, ela o viu chegar. Sorria quando lhe abriu os braços e a chamou suavemente. Ela se aproximou, tímida. Ele não havia mudado nada. Os mesmos óculos redondos, os cabelos castanhos, os olhos oscilando entre a ironia e o carinho.
“Chega mais perto”, ele pediu.
Deu dois passinhos miúdos.
“Um pouco mais”.
Ela veio.
Agora estavam bem próximos. De mãos dadas com a esperança, ele entrou em um céu forrado de diamantes. E tinham o sol nos olhos.
Nada mais vai mudar o seu mundo, pequena Lizzie.
***
Lizzie Bravo era a esperança de óculos da canção “Casa no campo”, de Zé Rodrix e Tavito, imortalizada na versão de Elis Regina. Eu e Lizzie combinamos uma entrevista. Não deu tempo. Ela faleceu esta semana, poucos dias antes da data em que se comemoraria os 81 anos de nascimento de John Lennon. Fiquei devendo a entrevista; restou-me a homenagem, construída com trechos da letra de Across the Universe, de Lennon.
Lizzie gravou com os Beatles a canção Across the Universe, no dia 4 de fevereiro de 1968, no estúdio de Abbey Road, em Londres. Ela tinha 15 anos e junto com a amiga Gayleen Pease, atendeu ao convite de Paul McCartney, que buscou entre as fãs adolescentes à porta alguma que “segurasse uma nota aguda”. Às duas coube, nos backing vocals, a frase “Nothing gonna change my world” (nada vai mudar meu mundo). Dividiu o microfone com John Lennon e Paul McCartney. A versão gravada por ela e Gayleen não entrou no álbum Let it be, mas foi selecionada para Past Masters.
Em sua entrevista de 1970 para a Rolling Stone, John Lennon se referiu a Across the Universe como talvez a melhor e mais poética letra que escreveu.
Quarenta anos depois da gravação, em 4 de fevereiro de 2008, a NASA transmitiu a mensagem interestelar Across the Universe na direção da estrela Polaris, a 431 anos-luz da Terra. Foi a primeira vez que uma canção foi intencionalmente transmitida para o espaço profundo. Era a versão gravada por Lizzie e Gayleen.
O perfil oficial de John Lennon, nas redes sociais, homenageou Lizzie após sua morte na segunda-feira, dia 4 de outubro de 2021. Gayleen faleceu no verão de 2021.
Abaixo, veja fotos do arquivo de Lizzie Bravo, links para as entrevistas dela, para as canções Across the Universe e Casa no Campo (esta cantada pelo ex-marido de Lizzie, Zé Rodrix), para o projeto de fazer um filme com a sua história e para a transmissão da Nasa.
Texto: Sonia Zaghetto
Foto principal: Frederico Mendes/Facebook/Reprodução.
Lizzie Bravo lança livro. Reportagem de O Globo.
Morre Lizzie Bravo, vocalista que gravou com os Beatles e com a nata da MPB. Reportagem do G1.
Lizzie e Gayleen
Across the Universe, na transmissão da Nasa, com Lizzie Bravo e Gayleen
Projeto Do Rio a Abbey Road, baseado no livro homônimo de Lizzie Bravo
Entrevista de Lizzie para o programa Fantástico, da Rede Globo
Entrevista Lizzie e Gayleen (em inglês)
Casa no Campo (com Zé Rodrix)
Lindo, querida. Fiquei emocionada ✨🎁
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Você sempre me emocionando até quando eu não conheço a pessoa, desculpe a ignorancia mas eu não a conhecia, fui ver tudo e fiquei encantada. Muito obrigada sempre querida Sonia.
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