“Estou envolvida no estudo de histórias antigas … vivendo o tempo todo em um mundo poético próprio, mal percebendo a existência de outras pessoas…”
Lady Murasaki Shikibu, Diário.
Kotani-En tem espírito. Um jardim tradicional japonês com todos os seus jogos de luz e sombra, sua estética apurada, seus segredos escondidos. Água, pedra, musgo, lanternas, kois (carpas), reflexos na água, esculturas e o olhar atento de uma deusa a velar pelo coração dos mortais. Kotani-En é refúgio de paz, cura e ensinamento.
Chega-se até o jardim por uma estrada sombreada que serpenteia pelas colinas da California. Um sólido portão de cedro se abre ao visitante. Todo artesanal, com detalhes em bronze, inspirado na arquitetura japonesa do século treze. Nenhum prego foi usado na construção, apenas as técnicas milenares de encaixe.
Pela manhã, a luz do sol atravessa as árvores, faz brilhar a água e projeta uma luz dançante nas folhas vermelhas do arbusto que se debruça sobre o lago pequenino. Um caleidoscópio matinal. É preciso aproveitar o instante. Logo essa beleza terá passado. O sol incidirá sobre outras folhas, o breve momento se esvairá, no ciclo de impermanência que se repete. Tão fugaz quanto a existência. Sopro delicado, diz-me o silêncio.
As carpas nadam preguiçosamente. Gotículas brilham na ponta das folhas e as pedras, ainda úmidas de orvalho, mostram as marcas do implacável tempo, assim como partes descascadas da ponte e a mureta do templo. Nada escapa ao ciclo da vida, que brota, floresce e fenece. Há beleza em tudo, inclusive no que se desfaz materialmente. Um dos bonsais de Charlie, o atual proprietário, é uma esplêndida árvore de tronco muito largo e retorcido. Ele me explica que apenas a parte central está viva. Toda aquela imensa e bela parte do tronco é matéria morta. Charlie me sorri, recordando que a morte dá sentido e ajuda a compor a beleza da vida, um ponto muito caro à filosofia.
Kotani-En não é para turistas. É um lugar secreto, quieto, que foi amado e maltratado. Entra-se nele e o amor que lhe foi dedicado transborda. As cicatrizes dos que o feriram também estão lá, visíveis, segredando ao visitante que ninguém escapa incólume à fúria dos homens (leia abaixo a história do centenário jardim).
Há nele uma solenidade silenciosa que convida à contemplação. A um olhar desatento, parecerá pequeno, mas é imenso, complexo. Entra-se nele como quem atravessa um portal para um mundo antigo. Nada ali é feito ao acaso. Como determina a tradição do jardim japonês, o pequeno lago deve refletir o céu, as nuvens e certamente a lua, as árvores estão na posição exata para que a luz as torne fulgurantes, as carpas nadam reavivando o sentimento de coragem e determinação.
Depois da pontezinha vermelha, passa-se por um regato, que atravessa todo o jardim e à esquerda está a árvore enviada pelo imperador do Japão em 1920 – tem mais de 400 anos.
A casa de chá abriga móveis tradicionais centenários, paredes forradas de papel de arroz, coleção de bules antiquíssimos. Ao fundo da sala, um bonsai de raro bordo japonês, cujas folhas em forma de estrela mudam suas cores, ao sabor das estações.
Tomo o chá olhando para o jardim, grata à generosidade do convite de Charlie. Os sentidos se aguçam perante o sabor refinado do chá verde chinês, de seu aroma único, do ruído da água fluindo, dos verdes do jardim invadindo a visão – tudo contribui para um deleite completo do corpo e do espírito.
Ao fundo do jardim está o pequeno templo. Tiro os sapatos ao pisar no chão desenhado e muito limpo. Ao erguer o olhar, eu a vejo. Benten, a deusa das artes. Inspirada na indiana Saraswati, traz nas mãos uma biwa, o alaúde japonês. Fácil imaginar seus dedos tocando as cordas suavemente e as notas musicais percorrendo o ar, curando meu espírito quebrado e meu corpo fustigado pelas dores.
Sob a árvore ao lado do templo, imagino a brisa como canção que os lábios da deusa pousam nos meus cabelos, em doce mensagem de conforto. Compreendo que este é o meu momento de pausa e recolhimento, de aguardar, como o jardim, o tempo de restauração em que as palavras fluirão de novo e a saúde retornará.
Penso na minha decisão de escrever despretensiosamente, sem jamais me envolver no vasto poço de vaidades e egolatria que cerca o mundo literário. E imediatamente lembro de Lady Murasaki, que há mil anos escreveu o esplêndido Genji Monogatari e se distanciou das intrigas da corte imperial, das disputas de poder e dos concursos de poesia. A vida é grandiosa demais para ser desperdiçada com tolices que se perderão na poeira do tempo.
De repente, percebo que por uma dessas coincidências deliciosas, o espírito de Kotani-En, Lady Murasaki e a minha decisão de escritora estão todos em harmonia com o poema de Rikyu que ofereci a Charlie, o guardião do jardim.
Quando deixamos para trás,
A morada de fogo dos Três Mundos,
Tempestade e paixão são abandonadas
Entrando no caminho orvalhado,
Por entre os pinheiros, sopra uma brisa pura.
A brisa pura de Kotani-En me envolve na fresca manhã de primavera. Ela é a voz da deusa das artes, da rainha espiritual que rege a literatura e tudo o que flui. Fecho os olhos e ela me convida a perseverar no propósito de escrever como puro ato de amor à arte, sem me deixar enredar pelas armadilhas das paixões e pelas tempestades que vivem além dos muros do jardim.
(Texto e fotos: Sonia Zaghetto)

A história de Kotani-En
Um jardim japonês formal localizado nas colinas acima do Vale do Silício, Kotani-En está listado no Registro Nacional de Lugares Históricos dos Estados Unidos e foi documentado como um dos jardins japoneses mais autênticos da América do Norte. Também está registrado como um marco histórico do Estado da Califórnia, sob o número 903. A propriedade não está aberta a turistas. É particular e isolada, desde que foi construída entre 1918 e 1924 pelo mestre artesão Takashima e onze artesãos trazidos especialmente do Japão para a tarefa. Lembra uma residência samurai clássica do século XIII. Os muros cobertos por um telhado cercam uma casa de chá, um pequeno templo, jardins e o lago.
Kotani-En representa o ideal de harmonia de arte e natureza em um ambiente rústico de dois hectares. Embora esteja a menos de 3,2 km do movimentado centro de Los Gatos, muitas pessoas não a conhecem porque é uma propriedade privada desde que foi construído.
Kotani-En tem uma rica história cheia de reviravoltas, quedas e recomeços.
Seu início no início do século passado ocorreu quando um empresário de São Francisco, Max Cohen fez uma refeição em um restaurante do Arizona. A qualidade da comida o fez pedir para conhecer o chef, um imigrante japonês chamado Takashima. Cohen o contratou para cozinhar em suas duas casas – em São Francisco e a outra no condado de Santa Clara.
Em Santa Clara, nas horas de folga,Takashima costumava desenhar edifícios e jardins. Logo Cohen descobriu que seu cozinheiro era, na verdade, um arquiteto paisagista treinado em Kyoto. Embora os preconceitos dos americanos contra os asiáticos o impedissem de praticar sua arte, Takashima cultivava o sonho de construir um autêntico jardim japonês na Califórnia. Cohen aprovou a ideia e, em 1918, Takashima partiu para o Japão para contratar trabalhadores e encomendar materiais e plantas para o empreendimento. Nessa época, elementos do estilo japonês estavam sendo incorporados pelo design no Ocidente e cada vez mais surgiam jardins e casas de chá de inspiração nipônica. Já há alguns anos, as gravuras japonesas haviam seduzido pintores como Claude Monet e Vincent van Gogh.
Na Califórnia, a paixão pelos jardins japoneses foi desencadeada por duas grandes exposições, a Feira do Solstício de Inverno de 1894 e a Exposição Internacional Panamá-Pacífico de 1915. Essa última inspirou outro jardim japonês em Saratoga, Hakone, que hoje é um parque público. Foi criado em 1918, mesmo ano em que Takashima começou a trabalhar em Kotani-En.
Foram necessários 10 anos, US$ 250.000 e 12 homens para terminar o jardim e as estruturas usando apenas ferramentas manuais e técnicas tradicionais de construção. O cedro, o mogno e o bronze usados na casa, no templo e no portão foram montados com marcenaria de entalhe e técnicas de tala e cunha, sem o uso de pregos ou parafusos. Diz-se que Takashima baniu tratores do local, usando cavalos e mulas, da maneira antiga para colocar as enormes rochas no lugar. A única concessão ao gosto ocidental foi a letra C – de Cohen – no telhado que cobre o portão.
Os custos do jardim escandalizaram os vizinhos, mas Cohen, segundo os relatos, ficou encantado com a criação de Takashima.
Max Cohen amou o jardim a tal ponto que pedia para ser levado de maca aos jardins quando, já muito doente, não podia caminhar. Ele morreu em 1935. No mesmo ano que Takashima. A propriedade foi mantida em inventário por 14 anos, depois foi vendida. E nem sempre esteve sob o domínio de quem a valorizasse.
Veio a Segunda Guerra Mundial e o sentimento de ódio aos japoneses resultou em vandalismo das estruturas e plantas. Nos anos 60, o jardim sofreu modificações insensíveis, como a instalação de vidraças em frente às telas shoji e de uma horta cercada por cerca de arame.
O tempo – que tudo cura – deu ao jardim um novo proprietário, Bill Robson. Este o cuidou com amor até o fim da vida. Robson, designer de hardware, estava realizando uma vistoria de rotina na casa que um amigo estava pensando em comprar, quando notou fotos de Kotani-En penduradas em uma das paredes. Perguntou sobre a propriedade e foi informado de que se situava nas proximidades e estava à venda. Duas semanas depois, ele era o dono de um jardim clássico japonês histórico e semidegradado. Apaixonou-se pelo lugar e tornou-se jardineiro, encanador, marceneiro, eletricista e engenheiro de solos. Durante décadas, Robson fez todas as reformas e reparos no jardim. Além da manutenção diária, aprendeu até a costurar tatames. Em uma viagem de negócios a Kyoto, descobriu uma loja na qual lanternas de bronze eram feitas desde o século 16 e comprou várias para o beiral da casa e do templo. Foi Robson quem pesquisou a história do jardim e preparou a documentação para inclusão no Registro Nacional de Lugares Históricos dos EUA e na listagem como um marco da Califórnia.
Um novo período difícil sobreveio quando a natureza entrou em cena. Os terremotos de 1989 racharam a bacia de concreto que forma a lagoa, derrubaram a ponte principal, danificaram os pássaros de bronze e jogaram as lanternas de pedra na água. Robson pessoalmente reparou os estragos.
Após a morte de Robson, a viúva não conseguiu manter o belo jardim. Desde 2017, entretanto, Charlie tornou-se o novo proprietário e guardião. Ele possui uma notável coleção de bonsais, vários deles centenários. Charlie é uma pessoa rara, de uma simplicidade, gentileza e sabedoria encantadores.
Engenheiro e também formado em Filosofia, ele me descreveu poeticamente o seu jardim: “A melhor hora para estar no jardim é de manhã cedo, das 8 às 10 horas. É tranquilo e pacífico, você pode ouvir seus próprios passos enquanto caminha. As rochas são escurecidas pela umidade durante a noite e as árvores parecem frescas sob os raios do sol da manhã. Os pássaros estão cantando…”.
Após um longo período de maus tratos, a propriedade está de volta ao seu esplendor. Charlie restaurou a casa de chá, hoje um oásis elegante, e diariamente dedica horas aos bonsais, à contemplação e ao desfrute da beleza do lugar. Kotani-En novamente está em mãos seguras.
Galeria de fotos. Clique para abri-las.























































Querida Sônia
Como é bom ler os teus escritos, aprende-se tanto com eles.
Há tanta sabedoria, tanta informação e, ao mesmo tempo, tanta beleza e poesia.
Teus textos trazem harmonia, paz, equilíbrio, e chegam a toda gente… dispersando o bem!
(você pode ser tratada como “corujinha” pelo sr. Cláudio. Pra mim, você é uma “abelhinha”)
Quero te dizer que sinto saudades de nossas conversas. Sei que você está em uma fase de recolhimento, de se cuidar, de colher o pólen das coisas.
Fique boa logo. Te quero bem.
O mundo precisa de pessoas como você.
Te admiro, sou muito seu fã
bjs Oren
CurtirCurtido por 1 pessoa
Querido Oren, que lindas palavras que enchem meu coração de luz e amor. Um beijo. Muito obrigada.
CurtirCurtir
Lugar lindo.
Obrigada por compartilhá-lo conosco. 🌻
CurtirCurtir
Obrigada por ler, querida Janete. Um abraço carinhoso.
CurtirCurtir
Que grande presente para este domingo! Tenho um profundo amor pelo Japão. Tive a felicidade de ir para lá em 2019 e de caminhar por alguns de seus jardins. Hoje você trouxe de volta aquela emoção. Que linda a história desse jardim, principalmente contada por você que tem um olhar tão delicado e poético. As fotos são primorosas. Desejo que este período de quietude seja o bálsamo que te restaure e te cure do corpo e da alma. Sinto um profundo afeto por você. Um abraço. 🌺❤️
CurtirCurtir
Querida Magda, suas palavras me alegram profundamente. Obrigada pelo carinho. Receba meu abraço afetuoso.
CurtirCurtir
Que texto encantador! Nunca havia escutado sobre esse jardim, gostei muito de saber. Quem sabe um dia possa visitá-lo. Obrigada!
CurtirCurtir
Encantada com o texto e com as fotos!! Sou apaixonada por jardins, plantas , natureza!! Doida pra tomar um chá nesse Paraíso!! 🙏😍😍
CurtirCurtir
Querida Isa, muito obrigada pelo carinho. Um beijo!
CurtirCurtir
Sônia,
Um privilégio ter lhe encontrando nesta vida. Imensamente grata. Infinitas bençãos caiam sobre você e seu caminhar.
Aceite meu abraço afetuoso Jane
>
CurtirCurtido por 1 pessoa
Querida Jane, muito obrigada pela leitura e carinho. Um abraço amoroso.
CurtirCurtir
Republicou isso em REBLOGADOR.
CurtirCurtir
Que presente maravilhoso, iluminou nosso dia. Tanta informação, tanta sensibilidade e imagens magníficas. Muito, muitíssimo obrigada, querida Sônia. Você nos traz luz!
CurtirCurtir
Um pedaço inteiro do Japão dentro dos EUA,lindo, lindíssimas fotos!!!
CurtirCurtir
Que lugar maravilhoso e repleto de história! Um privilégio conhece-lo através de seu texto tão rico em tantos detalhes.Sensação fantástica” caminhar” por ele através desse belo texto.Obrigada por tudo!🌟💖
CurtirCurtir
Que maravilha Soninha, só vc poderia descrever com tanta beleza e sensibilidade este lugar mágico! Mas um texto exemplar. Obrigada, bjs
CurtirCurtir
Obrigada, minha querida Nisia. Um abraço carinhoso.
CurtirCurtir
Não sei pq li apenas hj seu texto. Normalmente, é o primeiro q espero ler. A melhor escritora q conheço deixa saudades no meu FB. Sensação de vazio. Mas…estou aqui saboreando suas palavras e admirando as fotos desse belo jardim.
CurtirCurtir
Querido Oscar, sua leitura enche o meu coração da mais pura alegria. Um abraço muito carinhoso.
CurtirCurtir
Não sei pq li apenas hj seu texto. Normalmente, é o primeiro q espero ler. A melhor escritora q conheço deixa saudades no meu FB. Sensação de vazio. Mas…estou aqui saboreando suas palavras e admirando as fotos desse belo jardim.
CurtirCurtir