Para Clara, Helena e Alana
Os acontecimentos me espreitam nas dobras destes dias longos. E com seus dedos compridos andam a fazer de marionete os sentimentos meus. Ontem, vi um passarinho morrer. Sem aviso, a morte o pôs sob seu manto de grama verde. Parecia muito calma, quase indiferente, mas notei que recolheu o corpo do pássaro com gestos gentis e murmúrios doces. Lembrei de um poema de Schiller, Nänie, cujo primeiro verso, “Auch das Schöne muß sterben”, se traduz como “Mesmo o belo deve morrer”. Embora real e filosófica, a frase não elimina o luto. Sob este, tem-se a impressão de que há mais silêncio, mais deserto. Como se toda luz adormecesse.
Nänie é uma palavra que significa “pesar” e se refere à deusa romana dos ritos funerários, Nenia. O poema é uma lamentação sobre a inevitabilidade da morte que alcança a todos, inclusive os passarinhos, as crianças pequenas e os que põem beleza no nosso mundo.
Algo dói, bem no centro do meu peito. Saudade, por certo. Dói tanto que chego a duvidar se ainda sei respirar. Outros artistas, que produziram graça e consolação apesar das suas dores, vêm em meu socorro. Eles me devolvem ar e paz.
Dois poetas e um compositor, Schiller, Hölderlin e Brahms, traduzem o tremendo desafio posto aos humanos: a sobrevivência após o naufrágio das aspirações, a realidade das agonias e a perplexidade frente à perda. E, ainda assim, são palavras de conforto. Carregam terna mensagem de serenidade, compassiva como quem vela o sono dos que partiram, louvando a vida que tiveram e o tempo com eles compartilhado.
Schiller fala sobre deusas que choram sobre os corpos dos amados, impotentes perante o braço mortífero que carrega até os mais perfeitos, os mais profundos afetos. Resta, aos que ficam, o luto e um dever final: o de reerguer-se, como a mãe de Aquiles, e tecer um tributo ao amado que partiu. O poeta, talvez com um sorriso triste, conforta a si e aos outros com um verso sobre a beleza de ser canção nos lábios dos amados. A lembrança e as histórias acariciam a memória dos nossos mortos. A partida não lamentada é apenas a dos que não foram amados.
Inspiro o ar que vem do poema de Schiller. Inspiro todas as notas de Brahms. Com elas vêm um mar azul, os mil desenhos da terra, o som irreproduzível do riso dos meus filhos e da voz do homem amado. O abismo ainda está à minha frente e o sol está forte, mas uso uma sombrinha vermelha, tenho companhia e vejo todas as cores do amor se revelarem diante do meu coração que deseja apenas calmaria.
Um raio de sol me inunda os olhos. Murmuro baixinho um trecho do poema de Hölderlin, pensando nos meus mortos e no passarinho coberto de grama verde: “Você vaga alegremente na luz, habitante da terra dos espíritos. Brisas luminosas tocam você suavemente, como hábeis dedos despertando as cordas de uma harpa”.
Enfim, algo se reconstrói em mim. Um pequenino milagre, feito de poemas, notas musicais e esperança.
Ainda sei respirar.
Brahms/Friedrich Hölderlin: Schicksalslied (Canção do destino)
Em uma manhã de junho de 1868, enquanto visitava seu amigo Albert Dietrich em Oldenburg, no Mar do Norte, Brahms leu um poema contido no segundo volume do romance Hyperion, oder der Eremit aus Griechenland (Hyperion, ou o Eremita da Grécia) de Friedrich Hölderlin. Mais tarde, naquele dia, durante uma excursão turística ao porto de Wilhelmshaven, Brahms se separou do grupo e Dietrich relatou tê-lo visto sentado sozinho na praia, escrevendo. O compositor apresentou a obra dois anos depois. É uma das mais amadas peças de Brahms.
Brahms/Friedrich von Schiller: Nänie
Nänie é uma composição para coro e orquestra de Johannes Brahms. Este musicou o poema de Schiller em 1881, em memória de seu recém-falecido amigo, o pintor Anselm Feuerbach. Brahms começou sua composição na primavera. Escolheu o texto por duas razões: o tema em si, do belo que também morre, bastante adequado à perda de um artista; e os motivos da mitologia grega que unem o poema e a obra de Feuerbach. Brahms dedicou a composição a Henriette Feuerbach, madrasta do pintor, e tem uma abordagem de consolo aos que choram a morte.
No poema Nänie, o lamento de Schiller não é por uma pessoa em particular, mas pela morte de algo abstrato, o belo. O poeta usa no seu texto três episódios da mitologia grega, mas sem citar os nomes dos personagens. O primeiro é Orfeu, o músico perfeito, que desce ao mundo subterrâneo para resgatar sua amada Eurídice. Com sua arte, ele consegue suavizar a severidade de Hades e Perséfone, os governantes do mundo dos mortos, mas no último instante, a perde. O segundo é o luto da deusa Afrodite por seu amado, o belo Adônis, ferido por um javali; o terceiro refere-se ao esforço fracassado da ninfa do mar Tétis para salvar da morte seu filho Aquiles. Schiller chama Hades, o soberano do mundo dos mortos, de “Zeus Estígio”, pois o poder de Hades era tão imenso quanto o de Zeus. O Estige era o rio do mundo subterrâneo.
Abaixo, você encontra (em português e em alemão) o poema Nänie, de Friedrich von Schiller :
Até o belo deve morrer! O que conquista homens e deuses não toca o peito de bronze do Zeus Estígio.
Apenas uma vez o amor suavizou o governante das sombras,
E ainda no limiar, severamente, ele tomou de volta sua dádiva.
Afrodite não cura a ferida do belo rapaz,
selvagemente esculpida no corpo gracioso pelo javali.
Nem a mãe imortal salva o herói divino,
Quando, caindo no Portão de Troia, ele cumpre seu destino.
Mas ela se ergue do mar com todas as filhas de Nereu,
E começa o lamento pelo filho glorioso.
Veja! Então os deuses choram, todas as deusas choram,
Que o belo pereça, que o mais perfeito morra.
É glorioso ser canção na boca dos amados;
Pois o (homem) comum desce a Orcus em silêncio.
Nänie
Auch das Schöne muß sterben! Das Menschen und Götter bezwinget,
Nicht die eherne Brust rührt es des stygischen Zeus.
Einmal nur erweichte die Liebe den Schattenbeherrscher,
Und an der Schwelle noch, streng, rief er zurück sein Geschenk.
Nicht stillt Aphrodite dem schönen Knaben die Wunde,
Die in den zierlichen Leib grausam der Eber geritzt.
Nicht errettet den göttlichen Held die unsterbliche Mutter,
Wann er, am skäischen Tor fallend, sein Schicksal erfüllt.
Aber sie steigt aus dem Meer mit allen Töchtern des Nereus,
Und die Klage hebt an um den verherrlichten Sohn.
Siehe! Da weinen die Götter, es weinen die Göttinnen alle,
Daß das Schöne vergeht, daß das Vollkommene stirbt.
Auch ein Klaglied zu sein im Mund der Geliebten, ist herrlich;
Denn das Gemeine geht klanglos zum Orkus hinab.
Pinturas de Anselm Feuerbach






Obrigada, Sonia. Você, sempre, tão necessária. Obrigada.
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O amor que vivi foi tão intenso que há de me nutrir até o meu fim.
Obrigada, do fundo do meu coração.
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Sõnia querida, em um momento de luto você aqueceu meu coração. “A partida não lamentada é apenas a dos que não foram amados”. Sublime. Grata.
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Republicou isso em REBLOGADOR.
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Bom dia Sonia querida. Acertou meu luto right between the eyes. Meu pai faleceu há menos de um ano, e hoje seria aniversário dele. Obrigada por toda essa beleza esparramada.
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Um abraço muito amoroso, minha querida. Seu paizinho foi muito amado e por isso vive em suas lembranças mais doces. ❤
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Obrigada por tanta maravilha. Comecei a ler e pensei que fosse um texto lindo e triste. Em seguida, porém, vi que não era sobre a tristeza mas sobre a vida, e a vida é assim mesmo, com perdas e recomeços. Com sombras e luz.
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Obrigada pelo texto, Sônia. Nas últimas duas semanas perdi duas pessoas queridas. Ontem foi a celebração de uma semana da morte de uma amiga e o último áudio dela dizia: “Vamos superar isso e vamos comemorar! “ Hoje de manhã, acordei muito cedo e meu coração estava totalmente de luto. Então teu texto foi como se eu tivesse te encontrado e te contado e você dissesse: “ Eu entendo sua dor, estou junto com você minha querida. Essa dor é minha velha conhecida” Muito obrigada. Espero que você esteja bem. Um grande abraço.
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Que presente de domingo, Sonia. Obrigada!
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Maravilhoso e emocionante !Grande inspiração .
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Maravilhoso e emocionante !Grande inspiração .
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Grata Sonia, muito grata.
Um beijo no teu coração infinito.
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Repetindo John Donne, a morte de qualquer pessoa me diminui, porque sou parte do gênero humano. Um texto de Sonia Zagheto sobre tão delicado tema é uma elegia.
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