Há 120 anos nasceu Carlos Drummond de Andrade. Selecionei alguns poemas e comentários sobre a arte de nosso poeta maior. Afinal, que homenagem maior se pode fazer a um escritor do que ler a sua obra? Para Drummond, escrevi a crônica abaixo. Em seguida estão a seleção de poemas e os comentários que foram a base para os dois roteiros do programa de rádio “Falando de Arte” em homenagem a Drummond. Produzido e apresentado por mim e pelo Cláudio Chinaski, o programa Falando de Arte vai ao ar todos os sábados (ao meio dia), segundas-feiras (13h) e sextas-feiras (10h). Para sintonizar a rádio Arte Viva, clique em https://radioarteviva.com/

Crônica: O poeta e a criminosa

Decidi começar uma vida de crimes. Já me vejo retratada por Gloria Perez em alguma novela futura, as redes sociais ardendo, psicólogos opinando, amigos envergonhados e William Bonner, com ar tão grave, a ler um editorial sobre o fim da inocência. Se apanhada, eu, criminosa não arrependida, direi que a culpa é dessa tal poesia que entra pelos olhos da gente, instala-se sem a menor cerimônia e nos faz amar os que estão mortos há tempos. Gente que se tornou estátua.

É que chutaram (já faz algum tempo) o rosto da estátua do Drummond. Os óculos voaram longe e caíram ao lado do banco. O homem de camisa listrada os recolheu à sacola e saiu andando. Crime menor, diriam as autoridades da cidade que se divide entre maravilhas e fuzis-ostentação.

Com os óculos de bronze – arrancados na décima-primeira vandalização da estátua do poeta – caíram também minhas barreiras morais. Passei meses analisando, mas agora está decidido. Começa hoje a minha carreira criminosa. Modalidade: sequestradora.

Tudo planejado. Tenho apenas duas mãos, um furgão alugado e o sentimento do mundo. Nada me deterá.

Estacionarei o furgão às 3 da manhã no calçadão de Copacabana e recolherei a escultura do poeta. Ela não vai resistir ao rapto, pois não sou serafim. Além de que, o poeta já andava cansado mesmo. Não aguentava mais aquela gente melosa, abraçando-lhe a figura o dia todo. Logo ele, mineirinho tímido, tendo sua versão estátua sendo babada, beijada e fotografada. Ora, me deixem sossegado – teria dito, se estátua não fosse. Aí já não tenho certeza. Era polido o poeta, dado a quietices.

Nos primeiros dias, a estátua do poeta vai querer escapar, disfarçada, para olhar o mar. Eu sei porque notei que lá no calçadão ele fica de costas para o oceano. Quem teve a ideia de colocar um poeta de costas para o grande azul? “É que ficava bem melhor pro pessoal que vai fazer foto comigo”, ele me explicará, riso baixo, cara humilde. Pobrezinho, passou um tempo enorme apenas ouvindo as ondas quebrarem na praia, sem ver auroras ou poentes. Isso não se faz com um homem de letras, seus filisteus!

Sei que teremos uma ótima vida após o sequestro. Vamos ver o mar quando todos estiverem assistindo aos jogos da Copa do Mundo. Tomaremos água de coco, comeremos milho assado com café preto, no boteco falaremos mal dos políticos (de todos eles, sem exceção) e discutiremos literatura. Vamos ficar de mal e depois faremos as pazes. Eu lhe emprestarei meus óculos de ler letras miudinhas. Ele sorrirá das minhas tolices, Meu amor terá ciúmes e tentaremos aprender a sapatear como aqueles dançarinos de velhos musicais americanos. O poeta tem um quê de Fred Astaire (a magreza, acho). No fim do dia, assistiremos a uns filmes. Tentarei velhos faroestes, com Clint Eastwood ainda jovem. Ele vetará: não quer ser poeta de mundo caduco. Rirá. Riremos.

No meu covil de lobos mansos, ninguém chuta o rosto dos poetas.

(Texto: Sonia Zaghetto – Fotografia: Donatas Dabravolskas)

Drummond: vida e arte

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, no dia 31 de outubro de 1902. Graduou-se farmacêutico e durante a maior parte da vida, foi funcionário público, embora tenha começado a escrever muito cedo e continuasse a fazer literatura até seu falecimento.

Drummond foi um dos principais poetas da chamada segunda geração do modernismo brasileiro, mas, atenção, isso é apenas mera formalidade cronológica. Não se deve restringir a obra dele a formas e temas de movimentos literários. Drummond está além disso.

Em 1930, ele publicou sua primeira obra poética, “Alguma Poesia”. Nela está o “Poema Sentimental”, que você lê a seguir.

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

— está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando…
E há em todas as consciências este cartaz amarelo:
“neste país é proibido sonhar.”

Que belo poema! Irreverente, desafiador, livre em versos e no espírito. Moderno, em suma.

É também do livro Alguma Poesia um dos mais célebres poemas de Drummond, o Poema das Sete Faces. Note o recorrente tema dos desejos comandando a vida. Perceba também a angústia e a autoironia. O texto tornou-se um dos mais conhecidos e recitados poemas brasileiros. É, sem dúvida, um dos grandes momentos da poesia nacional.

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: vai, carlos, ser gauche na vida

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres
a tarde talvez fosse azul
não houvesse tantos desejos

O bonde passa cheio de pernas
pernas brancas, pretas, amarelas
para que tanta perna, meu deus? Pergunta meu coração
porém, meus olhos
não perguntam nada

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte
quase não conversa
tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode

Meu deus, por que me abandonaste?
Se sabias que eu não era deus
se sabias que eu era fraco

Mundo, mundo, vasto mundo
se eu me chamasse raimundo
seria uma rima, não seria uma solução
mundo, mundo, vasto mundo
mais vasto é meu coração

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo

Os temas de Drummond são vastos, complexos. Sob a capa protetora de versos tão recorrentes no nosso cotidiano, ocultam-se as grandes dúvidas existenciais que inquietam a humanidade; as tentativas patéticas e desesperadas de dar sentido à vida e à morte; as miudezas cotidianas e as questões familiares; as utopias políticas a se infiltrarem nos homens e convencê-los a abraçar verdades nada absolutas.

Ao lançar seu segundo livro, Brejo das Almas, em 1934, Drummond já havia se estabelecido como um dos maiores poetas brasileiros. Aclamado pela crítica e amado pelos leitores, tornou-se porta-voz da fragilidade do homem.

O poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant’ana observou que a poesia de Carlos Drummond de Andrade se constrói a partir da dialética “eu versus o mundo”, e se desdobra em três atitudes:

Eu maior que o mundo — marcada pela poesia irônica

Eu menor que o mundo — marcada pela poesia social

Eu igual ao mundo — marcada pela poesia metafísica

Dentro dessa visão, perceba a sofisticada construção do poema Sentimento do Mundo. Ele foi publicado no terceiro livro de Drummond, que tem o mesmo nome do poema e foi lançado em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial. Note a agonia do poeta perante os horrores da guerra, o avanço do nazismo e a ditadura de Getúlio Vargas.

Tenho apenas duas mãos

E o sentimento do mundo,

Mas estou cheio de escravos,

Minhas lembranças escorrem

E o corpo transige

Na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu

Estará morto e saqueado,

Eu mesmo estarei morto,

Morto meu desejo, morto

O pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram

Que havia uma guerra

E era necessário

Trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

Anterior a fronteiras,

Humildemente vos peço

Que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,

Eu ficarei sozinho

Desfiando a recordação

Do sineiro, da viúva e do microscopista

Que habitavam a barraca

E não foram encontrados ao amanhecer

Esse amanhecer

Mais noite que a noite.

É do mesmo livro, Sentimento do Mundo, um outro célebre poema de Drummond que agora trazemos até você. É algo tão fundo e delicado em sua saudade e dor que só de ouvi-lo a alma se curva, entre grata e presa da mais profunda admiração. É a Confidência do Itabirano, mas pode ser a de qualquer um de nós que olhe a foto de sua cidade, seu país, sua terra natal emoldurada na parede. Ouça, pois, a Confidência do Itabirano:

Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,

Vem de itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

É doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:

Esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;

Este são benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

Este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;

Este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

Após Sentimento do Mundo, Drummond mergulhou  profundamente em temas políticos e sociais, que floresceram, plenos de maturidade, no livro A Rosa do Povo, considerada sua mais densa e importante obra.

Publicado em 1945, ano final da Segunda Guerra Mundial, A Rosa do Povo trouxe um Drummond politicamente explícito, vigoroso, que entrava na meia idade e se punha a contemplar o próprio passado e os horrores do seu tempo apontando para tensões que mal emergiam.

Cinquenta e cinco poemas de dor líquida. Longos, catárticos e ácidos. A rosa do povo é um grito desesperado de quem luta para não se perder da própria sensibilidade.

Desse livro extraordinário, selecionei o poema A Flor e a Náusea:

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Uma outra obra-prima de Carlos Drummond de Andrade é o poema Os Ombros Suportam o Mundo. Publicado em 1940, na antologia Sentimento do Mundo, reflete a aridez de uma vida sem amor, amigos ou emoções em tempos repletos de sofrimento e solidão. Em meio a esse cenário pessimista, entretanto, surge uma leveza nos ombros que carregam o peso do mundo. E há um quê de serenidade estoica perante toda a adversidade experimentada.

Chega um tempo em que não se diz mais: meu deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

José  foi o quarto livro de poemas de Drummond. Lançado 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, traz somente doze poemas, que tratam da solidão do homem urbano e angústias individuais. Tem um profundo traço  autobiográfico.

O poema que dá título ao livro tornou-se tão famoso que se integrou à cultura popular com a expressão “e agora, josé?”.

E agora, josé?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, josé?
E agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
E agora, josé?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, josé?

E agora, josé?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para minas,
minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, josé!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, josé!
José, para onde?

O poema José também foi musicado pelo compositor pernambucano Paulo Diniz .

Mas não apenas José inspirou uma adaptação musical. O poema de encerramento do livro, “Viagem na Família”, serviu de base para uma composição clássica de Heitor Villa-Lobos em 1941. O nome é “Poema de Itabira”.

Talvez seja a mais ambiciosa e original peça de Villa-Lobos para voz. O compositor se empenhou para utilizar a voz humana como instrumento musical, tornando-a efetivamente solista, numa espécie de concerto para voz e orquestra. A composição não tem elementos brasileiros evidentes, mas pode ser considerada impregnada de “atmosfera” brasileira.

Quando se transferiu de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro em 1934, Carlos Drummond trabalhou como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, então ministro da Educação.  Paralelamente à carreira de funcionário público, o poeta começou seu ofício de cronista, escrevendo para diversos jornais cariocas.

Seu trabalho como cronista se estendeu por mais de três décadas. As crônicas faziam tanto sucesso que chegavam a ser publicadas três vezes na semana. Com tal produtividade, Drummond encerrou a carreira contabilizando mais de 2.300 textos desse gênero.

Tratou de assuntos diversos: a vida cotidiana, música, futebol, sentimentos, a memória individual e a coletiva. Na prosa, sempre esteve presente a força e o lirismo de sua poesia. Ouça como ele definiu esse ofício:

“Eu fui mais um cronista, um amigo e companheiro da hora do café da manhã que um escritor. Um homem que registrava o cotidiano e o comentava com o possível bom-humor para não aumentar a tristeza e a inquietação das pessoas. Considerava o jornal um repositório de notícias tremendas. Então, o meu cantinho do jornal era aquele cantinho em que procurava distrair as pessoas dos males, dos aborrecimentos, das angústias da vida cotidiana.”

A crônica foi uma forma de Drummond satisfazer a sua vocação para o jornalismo. É o próprio poeta que nos conta de seu tremendo fascínio pela profissão de jornalista. Em uma entrevista ao jornal “O Estado de São Paulo”, em 28 de abril de 1985, ele disse:

“Confesso que, se é que tive alguma vocação na vida, que não pude cumprir, foi ser jornalista. Gostaria de ser jornalista, apesar de ser uma profissão ingrata.”

Em sua última crônica, Drummond reiterou a força de sua paixão pelo jornalismo. Em terceira pessoa, fez uma espécie de balanço de uma vocação frustrada:

“(…) em certo período, consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do que ao jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor implacável de jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele (e são) motivos de alegria profissional. A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ― o extinto correio da manhã, de valente memória, e o jornal do brasil, por seu conceito humanístico da função da imprensa no mundo. Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo, alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista”.

Além dos flertes com o jornalismo, Carlos Drummond de Andrade escreveu livros infantis, contos e crônicas. Sua arte se derramou por diversos caminhos literários, mas a excelência que alcançou na poesia não tem paralelo em sua carreira. O poeta ia, sem esforço, de abismos de solidão a registros do cotidiano, memórias de família e sofrimentos coletivos. Sem aviso, ele nos surpreende, quando estamos descuidados, ao pôr o mais delicado lirismo em meio à concretude prosaica da vida.  É o que  ocorre nesse poema modernista, um dos mais célebres. Chama-se: “No meio do Caminho”.

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
.

Em outros poemas, como Quadrilha, o poeta usa uma dança como bela metáfora para o amor pleno de encontros e desencontros, surpresas e decepções.

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos
,

Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre
,

Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

E é esse mesmo Drummond que traduziu com dura perfeição o nosso patético temor de todas as coisas. Respire devagar e aprecie a crueza e a potência desse texto, cujo nome é Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Este talvez seja o segredo da grandeza de Drummond: ser múltiplo e excepcional na arte poética. Um poeta capaz de escrever uma profissão de fé como o poema “mãos dadas”, do qual separei um trecho:

“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”

Drummond – em sua obra poética – abraçou a crítica social e política. No Poema da Necessidade apontou os vários caminhos pelos quais a sociedade condiciona a vida dos indivíduos, ditando normas de conduta e consumo, regulando os relacionamentos e impondo supostas necessidades e novos desejos.

A segunda estrofe, tão atual, ecoa o eterno discurso salvacionista que o mundo político jamais abandona.

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquiades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o fim do mundo
.

Em 1984 quando, quando estava próximo de completar 82 anos de idade, Carlos Drummond de Andrade despediu-se de seus leitores (“companheiros de café da manhã”) e encerrou a carreira de cronista. A crônica de adeus se chama “Ciao”.

“Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:

– sobre o que pretende escrever?

– sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível.

O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha belo horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.

Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou o momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem melancolia, mas oportuno.

Creio que ele pode gabar-se de possuir um título não disputado por ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu, sentado e escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da república, mais ou menos eleitos (sendo um bisado), sem contar as altas patentes militares que se atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante, a segunda guerra mundial, acompanhou a industrialização do brasil, os movimentos populares frustrados, mas renascidos, os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia; anotou as catástrofes, a lua visitada, as mulheres lutando a braço para serem entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as melhores.

Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de cada coisa não uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam.

Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo.

Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.

Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado no tempo de Epitácio Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.c. de 1920? Duvido) não foi penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter aliviado a amargura de mãe que perdera a filha jovem. Em compensação alguns anônimos e inominados o desancaram, como a lhe dizerem: “é para você não ficar metido a besta, julgando que seus comentários passarão à história”. Ele sabe que não passarão. E daí? Melhor aceitar as louvações e esquecer as descalçadeiras.

E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital, já agora sem periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário.

Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.

Carlos Drummond de Andrade

(Jornal do Brasil, 29/09/1984)

Se desejar conhecer as crônicas de Drummond no antigo Jornal do Brasil, saiba que algumas delas estão reunidas no livro “Boca de Luar”. 

Carlos Drummond de Andrade morreu em 17 de agosto de 1987, no Rio de Janeiro, doze dias após a morte de sua filha Maria Julieta. A causa da morte – disseram os médicos foi infarto do miocárdio e insuficiência respiratória. Mas poetas – e isso é fato bem conhecido – não cabem em dicionários e compêndios médicos. Por isso todos imediatamente compreenderam que o poeta tenha preferido não mais respirar e ouvir seu coração batendo em um mundo no qual sua única filha já não vivia.

Assim são os poetas. Eles – repita-se – escapam a definições prosaicas. Eu disse, acima, que Drummond morreu, mas apenas para que você, leitor, saiba que houve um evento no qual teve velório e sepultamento, obituário e gente chorando. Mas lá, no mundo imortal da grande poesia, ele segue, como sempre esteve… Rindo um pouco de si mesmo, tocando os dedos invisíveis na silhueta de Itabira, intrigado pelo poder de manipulação do mundo e abraçado à filha que tinha nome de personagem de Shakespeare.

Daqui a cem, duzentos, mil anos, estarão todos a ler seus versos que traduzem algo que jamais muda: a nossa esplendorosa humanidade, tecida de lágrimas e de gotas de felicidade.

Escolhi encerrar esta homenagem com um dos mais delicados poemas de Carlos Drummond de Andrade: As Sem-Razões do Amor. Ele foi publicado na obra Corpo, de 1984, na fase final da vida do autor. Note a graça singela da composiçao, ao abordar um dos mais recorrentes temas da literatura mundial. O jogo de palavras no título do poema (a assonância entre “sem” com s e “cem” com c) dialoga com o tema em si: as razões para amar serão sempre insuficientes para explicar o amor.

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.