“Nós dançamos para rir, dançamos para chorar, dançamos por loucura, dançamos por medo, dançamos por esperança, dançamos para gritar, nós somos os dançarinos, nós criamos os sonhos.”
Frase atribuída a Albert Einstein, que também era dançarino (aqui e entre as estrelas)
Ontem assisti a um vídeo de dança das crianças do Masaka Kids Africana, em Uganda. Em cada pequeno rosto havia um sorriso que era estrada de terra banhada de sol. Algo contagioso e bom, impregnado de uma alegria inocente capaz de restaurar a fé perdida no ser humano. Mal sabia que estava eu, mais uma vez, prestes a encostar os lábios na tigela agridoce que oferece simultaneamente a mais excruciante dor e as promessas algo frágeis de uma esperança que se recusa a ser esmagada.
Os vídeos do projeto Masaka Kids Africana viralizaram na internet por causa das crianças sorridentes e de seu talento. Elas cantam, dançam, dublam e riem (muito) em vídeos irresistíveis, com mensagens de amor e felicidade, filmados em um cenário simples, real com casas de adobe, tinas de roupa e cabras da cidade de Masaka. Nas férias escolares e em fins de semana selecionados, treinam as coreografias. Em algumas poucas ocasiões, participam de shows fora da África, no qual são ovacionadas por audiências emocionadas.
Visitei a página do projeto (aqui está ela. Clique para visitar) e descobri que as crianças são órfãs. Perderam um ou ambos os pais na sucessão de tragédias que fustiga sem descanso a terra de Uganda. A saber, epidemia de Aids, pobreza extrema, décadas de guerra civil e fome. Não bastasse, veio a pandemia, inundações, mais violência nas eleições de 2021 e, em setembro do ano passado, um surto de ebola.
Na página do Unicef, os números de Uganda são alarmantes (leia texto abaixo). É em meio a esse cenário bruto que o Masaka Kids Africana oferece abrigo seguro, comida, roupas, educação e cuidados médicos para crianças a partir de dois anos de idade. Organizado inteiramente por voluntários, o projeto se propõe a oferecer formação educacional de boa qualidade e a chance de sustento na vida adulta. Um frágil fio de esperança estendido sobre o abismo aberto pelas circunstâncias.
As crianças acolhidas pelo projeto passaram por algumas das piores experiências que um ser humano pode enfrentar. Dança, música, amor, compaixão e solidariedade as salvaram.
Um universo de pensamentos atravessou minha mente enquanto eu assistia aos vídeos, agora com novos olhos. Não apenas crianças que dançam. Sobreviventes. Os vídeos são o retrato da humanidade e sua capacidade infinita de causar dor, enquanto outra parte estende mãos salvadoras.
A vida é duríssima em geral, mas para alguns de nós a taça de amarguras parece mais ampla, mais funda. Se o mundo é lugar árido por excelência e viver é desafio que se apresenta a cada dia sob diversas roupagens, o que acontece em vastas regiões da África é inaceitável. Obra humana, com assinatura bem visível, é nódoa a nos afrontar. A imensidão de tragédias demonstra de forma indiscutível nossa falha vergonhosa, coletiva, com o continente berço do chamado Homo Sapiens.
Fecho os olhos por alguns segundos em busca de algum conforto para o incômodo que se instala no peito. Nos fones de ouvido ecoa a voz poderosa de Kassé Mady Diabaté (que hoje habita a memória do Mali).
Respiro devagar, inspirando compêndios de filosofia destinados a acalmar o espírito. Mas a filosofia conforta lenta e estruturalmente. Assim, evoco o espírito jornalístico que traz fatos concretos capazes de sossegar a mente de forma instantânea, se a gente der sorte.
Uma pesquisa na internet me informa que o canal do projeto Masaka Kids Africana no Youtube já arrecadou 1,3 milhão de dólares e que o grupo acumula 6,8 milhões de seguidores no Instagram. Li com alívio as reportagens sobre os títulos de terras comprados pela Fundação em nome de cada uma das crianças acolhidas. Como em Uganda não há escolas públicas e o perfil do projeto nas redes sociais mostra as crianças bem cuidadas e vestidas com uniformes escolares, cumprindo rigorosamente o calendário escolar, presume-se que o dinheiro está sendo bem aplicado no que se propõe: prepará-las adequadamente para o futuro. Não é pouco.
Um belo artigo assinado por um dos melhores jornalistas africanos, Charles “Mase” Onyango-Obbo, traz uma análise crua da infância ugandense que vale a pena reproduzir. “Os Masaka Kids, com a coragem de encontrar alegria em circunstâncias terríveis, são um espelho para milhões de ugandenses e outras pessoas em todo o mundo. Eles estão coçando uma dolorosa ferida nacional. Parte do poder disso vem do fato de que eles não se propuseram a ser símbolos. Somos uma nação cujo coração foi partido em muitos lugares por nossos salvadores autonomeados e eleitos. Líderes vêm com um fedor. A diferença está no grau”. Perfeitamente dita essa verdade que ultrapassa as fronteiras de Uganda.
Para o ugandense Onyango-Obbo, as crianças, especialmente as deixadas para trás, como no orfanato Masaka Kids Africana, representam um dos aspectos mais perversos da Uganda pós-guerra. Vítimas de várias crises sociais, elas enxameiam pelas ruas e becos, aos milhares. mendigas, prostituídas, famélicas.
O escritor é incisivo ao observar que grupos como o Ghetto Kids e o Masaka Kids Africana, ao brilharem, fazem com que nos sintamos indiciados. “Isso nos enche de tanta culpa e emoções conflitantes que não conseguimos desviar o olhar”. Como acontece com os Yanomamis e toda a infância violada e abandonada mundo afora, bem sabemos.
Penso durante algum tempo na frase atribuída a Albert Einstein e que está na webpage do Masaka Kids: dançamos para rir, para chorar e para gritar; dançamos por loucura, por causa do pavor ou porque desejamos desesperadamente ter esperança. Nós, dançarinos vida afora. É exatamente o que as crianças de Masaka disseram à dançarina Karina Palmira: dançamos porque nos faz felizes, porque é a nossa chance de ter uma boa vida; algo que nos cura e faz sonhar.
Como eu disse, agridoce.
Tiro os sapatos e começo a dançar Calm Down (Acalme-se), do nigeriano Rema.
Baby, calm down, calm down…
A música tem ritmo e sotaque africanos. O corpo se move. E percebo, enfim, nascer em mim o pequeno milagre da arte que acende estrelas sobre o pântano dos dias. Eu, assim como tantos outros bailarinos de alma fraturada, criamos sonhos de reerguimento. Um deles se concretizará em Uganda no futuro, em um dia feliz. Acredito nisso. Até lá, segue a vida, com trabalho árduo, paciência, gotas de fé e um coração capaz de dançar em meio às cinzas.
Baby, calm down, calm down…
(Texto: Sonia Zaghetto. Foto e vídeos: Arquivo Masaka Kids Africana)
Página da instituição: https://www.masakakidsafricana.com
Um país marcado pela tragédia
Segundo o Unicef, em 2022, os efeitos combinados de vários perigos levaram à deterioração da situação humanitária em Uganda. Um total de 13,8 milhões de pessoas passam por graves privações.
Há milhares de crianças menores de 5 anos de idade sofrendo de definhamento e precisando de tratamento contra a desnutrição. O Ministério da Saúde de Uganda declarou um surto de Ebola causada pelo vírus do Sudão em 20 de setembro de 2022. Uganda abriga 1,5 milhão de refugiados, incluindo mais de 898.000 crianças do Burundi, da República Democrática do Congo e do Sudão do Sul. Espera-se que um fluxo adicional de refugiados chegue ao país em 2023, incluindo crianças desacompanhadas e pessoas com deficiência. Devido à superlotação em assentamentos urbanos, acesso precário a água potável e saneamento, alta prevalência de desnutrição e múltiplos riscos, estima-se que 7,4 milhões de refugiados e membros da comunidade de Uganda precisarão de assistência humanitária até o final de 2023.
Nas comunidades que acolhem refugiados, o acesso à educação permanece baixo. Até 41% das crianças em idade escolar primária e secundária estão fora da escola e apenas 2% dos alunos com deficiência estão matriculados nas escolas. As avaliações das necessidades de proteção infantil mostram que as crianças refugiadas e da comunidade anfitriã continuam a enfrentar uma série de riscos, incluindo trabalho infantil, casamento infantil, violência sexual e física e negligência.
Mais de 87.000 pessoas foram afetadas pelas enchentes em 2022, que provocaram deslocamentos populacionais, destruição de infraestrutura e riscos de doenças transmitidas pela água. Na região de Mount Elgon, 35 escolas e mais de 7 mil crianças foram afetadas por inundações. Os riscos climáticos amplificam os riscos de proteção para as crianças, aumentando a separação, o sofrimento psicossocial e a negligência, exacerbando os níveis pré-existentes de violência. (Fonte: Relatório do Unicef sobre Uganda, 2022/2023. Uganda Appeal: Humanitarian Action for Children. Leia aqui, em inglês)
Perguntas frequentes sobre o projeto Masaka Kids Africana
As perguntas abaixo estão em um post da Fundação Masaka Kids Africana. Eu as traduzi para o português. Original aqui (em inglês)
1–Quais são os objetivos de vida das crianças?
R. Nossas crianças querem ir para a escola e receber educação. Querem acesso às necessidades básicas. A maioria deles era sem-teto e precisava de um lugar para chamar de lar.
2–Por que elas dançam e cantam?
R. O principal objetivo do grupo de dança é aumentar a conscientização sobre as necessidades das crianças órfãs na África e particularmente em Uganda, e arrecadar fundos para o desenvolvimento contínuo e apoio dos Programas da Masaka Kids Africana.
As crianças patrocinadas pela Masaka Kids Africana passaram por algumas das piores experiências que uma criança pode enfrentar. A maioria deles são órfãos e passaram por todos os tipos de ameaças, incluindo fome, abandono, desabrigo. Através da dança e da música e compartilhando seu amor por Uganda, essas crianças se conectam umas às outras e ao mundo. Eles veem seu próprio potencial – eles têm esperança em seu futuro. Queremos apoiar as crianças na educação e no bem-estar social, através dos seus talentos. Eles dançam para se desenvolver e brilhar!
3–Eles gostam?
R. As crianças gostam de dançar! Quando dançam, seus rostos irradiam esperança e não tristeza.
4–Quem os ensinou?
R. A Masaka Kids Africana não existiria sem a comunidade de voluntários que ajudou a treinar as crianças em diferentes movimentos de dança e canções e também cuidando do bem-estar delas. O que eles compartilham é uma paixão por fazer a diferença para as crianças.
5–Informações sobre os professores?
R. A fundação é administrada por voluntários e não há nenhum funcionário remunerado na equipe. São pessoas que cuidam de nossas crianças todos os dias. Todos eles vêm de Masaka, onde o projeto está sediado, e administram pequenos negócios para sobreviver. A maioria dessas pessoas cresceu como órfão. Portanto, elas entendem e conhecem bem as dificuldades e o sofrimento dos órfãos em Uganda.
6–Com que idade as crianças deixam a fundação?
R. Nosso objetivo é ajudar essas crianças até que consigam “ficar de pé”.
7—Para onde irão as crianças depois que crescerem e deixarem a fundação?
R. Nosso projeto é para crianças que estariam nas ruas engraxando sapatos ou mendigando. O mundo é um lugar difícil e não há como mudar isso, mas com um pouco de compaixão e um pouco de tempo, podemos realmente fazer a diferença. Queremos capacitá-los com educação para que, quando deixarem nossa fundação, possam se manter de pé. Acreditamos na educação como um caminho poderoso para um futuro brilhante. Nossas crianças serão os líderes de amanhã.
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Você me emociona. A vida pelos seus olhos me emociona!
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Que projeto lindo e que reflexão emocionante a sua Sonia. Me lembrou a danca do Deus Shiva também …
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