“Eu sou Kala, o tempo, destruidor de mundos, manifestado em minha plenitude para o extermínio da linhagem humana. Nenhum sequer dos guerreiros dos dois exércitos inimigos escapará da morte”. Krishna. Bhagavad-Gita

Quando o que fui neste mundo estiver reduzido a cinzas, o que terá valido a pena? Penso enquanto o carro percorre uma estrada empoeirada.

Respondo a mim mesma: certamente não as coisas que acumulo. Estas estão sujeitas à mesma lei de destruição que um dia extinguirá meu corpo. Não perco de vista as ideias de Diógenes, o filósofo grego que advertia sobre as posses, essas prisões que nos atam ao medo de perdê-las. Posses, tudo aquilo que penso ser meu, inclusive e erroneamente as pessoas que amo. Nada neste mundo me pertence. Caixão não tem gaveta e alma, se existir, não tem bolsa de canguru. Então, tento me preparar diariamente para perder tudo e todos, embora ainda estremeça perante a possibilidade dessas ausências.

A filosofia do Yoga me ensinou algo importante: atenção aos sentidos. É por meio deles que me envolvo profundamente com objetos, situações e pessoas queridas. Cheiros, sabores, aparências, melodias e texturas me enredam em uma teia de apegos, necessidades, afetos e desgostos. É o véu de ilusões de Maya.

Minha mente adora esse mergulho nos prazeres até que algo em mim se dá conta da armadilha. Ela é como saleta na qual estou confinada em companhia de um escorpião. A qualquer instante ele poderá me destruir. Por isso eu a vigio. O que chega pelos meus sentidos, examino. Amo, mas consciente.

Enquanto divago, vejo um homem caminhando pela estrada. Humilde, traz pelas mãos os dois filhos. Sob o sol escaldante, sorri. É a resposta que busco. No fim do caminho, só haverá a minha solidão e o amor que cultivei (evangelho de S. Paul McCartney, Salmo The End, verso final).  Os críticos dirão que soou piegas (é McCartney, minha gente; o que esperavam?) e os descolados chamarão de platitude, o nome chic para obviedades. Eu, desapegada da vontade de parecer simpática a gente cruel, encolho os ombros.

Voltemos às palavras do santo Beatle: só valerá a pena o amor que dei e que me foi oferecido. Meus amados – cuja memória, vida e desejos também passarão – são o meu sonho particular. Cada instante com eles é a oportunidade de me oferecer inteira, de desfrutar as pequenas doçuras ou os graves aprendizados do momento. Esse mosaico de imagens amorosas acompanhará a minha última respiração e talvez me eternizará um riso enigmático no rosto.

O tempo, destruidor e bálsamo, tem o hábito de, ao me colocar rugas na pele, também me oferecer umas gotas de filosofia para aliviar as horas.

Esta foi a de hoje.

(Texto Sonia Zaghetto. Foto: Manoel Neto. Oiapoque, Amapá, 2023)

P.S. A pergunta realmente me ocorreu em uma estrada empoeirada, a caminho de um lixão a céu aberto, no Oiapoque. Ali, urubus e humanos disputavam restos. Meu coração se curvou em direção à terra, envergonhado, descompassado. Pensei na minha casa a milhares de quilômetros, num vale onde o engenho humano construiu fortunas e os sem-teto perambulam andrajosos, semiloucos.  O que vale a pena nesse mundo de injustiças e paradoxos? E eis que surgiu na estrada o homem e suas crianças. Onze horas da manhã, um calor incapacitante e ele seguia, com seus meninos, sorrindo com a segurança de quem carrega um tesouro.