O sol se deita suavemente na borda azul do mar. Com ele se vai mais um ano da minha vida. Aniversário. Lágrima descuidada percorre os sulcos que o tempo escavou na minha pele. Eis-me aqui, com cenas de vida escorrendo pelo rosto à medida que escuto de novo a voz de alguém que há muito se foi.
Nos fones de ouvido, a última canção dos Beatles, Now and Then. Ela veio dez dias antes do aniversário, como um presente embrulhado no papel fino de lembranças gloriosas e ácidas. John Lennon voltou a cantar e George Harrison tocou um inédito solo exatamente no Día de Los Muertos de 2023.
Nada traduz mais a minha vida que os Beatles. Estão comigo desde o meu começo. Uma época em que eu era John. Míope, palhaço, mercurial, rindo de bobagens.
John canta. A realidade se reinventa. Passado e futuro se fitam.
I know it’s true
It’s all because of you
Eis os meus pais. Estão abraçados, muito jovens. Amor real me pôs neste mundo. Agora eu sou como McCartney, inacreditavelmente idoso, juntando a sua voz algo trêmula à de um Lennon que dança sem parar.
And if I make it through
It’s all because of you
Um caleidoscópio em velocidade de trem-bala de repente me põe diante das cenas de um amor que me atordoa. Filhos. Vozes antigas e novas dos Beatles se alternam com imagens de recém-nascidos, jovens adultos, fraldas, formaturas, beijos, esperança e saudade.
If we must start again
We will know for sure
That I will love you
Um solo de guitarra feito com o que George criou, abandonou e uma divindade musical-computacional ressuscitou me faz pensar no homem amado. Na meticulosa construção cotidiana há sempre lugar para um recomeço quando algo é tão esplêndido que é uma pena deixá-lo desaparecer. Prometo te amar, mesmo quando os astros todos morrerem e a inteligência artificial fizer de ti um deus sem princípio ou fim (Florbela Espanca adoraria o John e a IA?).
Percebo orquestras entrelaçadas a ecos de cantigas. Because, Eleanor Rigby, Here, There and Everywhere. Irmãos, amigos leais (tão raros). No espelho, meu rosto sorri à medida que envelhece. Nada vejo além de mim. Solidão perpétua a minha. Ando por estrada sinuosa. Árvores e florezinhas ao longo do caminho são as que plantei. As pedras pontudas em que tropeço foram postas ali pelas minhas mãos. Na mochila, só o meu amor. É leve. É bom. Ringo.
Agora e depois, conto apenas comigo. Sinto falta de alguns, mas me refugio na segurança da minha solitude cercada de gente.
De vez em quando choro, meio desamparada, mas sei que tudo está quitado.
Alfa e ômega.
É uma nova canção dos Beatles. E também a minha vida.
Texto maravilhoso, minha amiga. Ouvir essa música, com a presença dos quatro amigos, e ler seu texto me fez repensar minha própria existência. Deixamos tanta coisa se perder no tempo, mas as coisas boas que nos acontecem, ficam guardadas lá no fundo do baú das memórias. Quando menos esperamos, uma imagem, uma música ou um texto, trazem tudo para fora e revivemos aqueles momentos novamente. Ao final da música, a única coisa que pude fazer foi retirar as lágrimas que escorriam de meus olhos. Obrigado, novamente, por me embalar em seus textos.
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Atrasada, mas não me importo! Sou assim! Leio livro de trás pra frente, no meio e volto! Feliz Aniversário Sônia! Que texto belíssimo de aniversário! Os Beatles nos acompanharam e inspiram. Que alegria passar por esse planeta no mesmo tempo que você! Um abraço bem longo! 🎈❤️
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Belo texto! E parabéns,Soninha!!
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