Escolhi caminhar pelo mundo sem carregar pesos desnecessários. Fiz um pacto comigo mesma e expulsei a ideia de perfeição, essa gaiola dourada. Hoje, encontro grande tranquilidade em me reconhecer imperfeita. Não celebro minhas falhas, tampouco as oculto.
As imperfeições físicas pouco me incomodam, mas ponho plena atenção nas falhas morais. Vigio-as de perto, consciente do perigo que representam, sem permitir que me devorem. São a minha bússola na luta interna que reinicio a cada manhã. Minha imperfeição é antídoto contra o impulso egóico de me sentir superior aos outros. Comparação é uma armadilha, caminho certo para se sentir diminuído ou vaidoso – duas rotas que conduzem a sofrimentos evitáveis.
Em Otelo, Shakespeare grafou a frase que me guia: “Mas homens são homens, e por vezes o melhor pode errar”. Ela ilustra a minha visão compassiva sobre as falhas alheias e próprias. Julgar é muito sedutor. O juiz se assenta em um trono e de lá dispara sentenças contra amigos, parentes e desconhecidos. Nas redes sociais, essa dinâmica se intensifica: os posts ganham força ao alimentar o deboche, a crueldade e a vileza. Aparência, idade, escolhas políticas, opiniões contrárias – tudo vira fogueira, guilhotina ou cruz. A multidão delira com o rosnado coletivo.
Talvez por isso, me sinto cada vez mais deslocada nas redes. Os linchamentos virtuais me chocam, tornando esse espaço quase intrafegável. Permaneço em apenas duas plataformas, onde consegui, por um quase milagre, reunir amigos cuja gentileza é a tônica.
As redes igualmente amplificaram a antiga prática de nos apresentarmos como exemplos de felicidade, moralidade, inteligência, bondade, beleza e elevação espiritual. São cada vez mais raros os da cepa de Fernando Pessoa: “Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”.
Eu, minhas grandes falhas e meu caminho pontilhado de memórias dolorosas, nos apresentamos ao poeta, com nossa bagagem na qual as boas qualidades se misturam a preguiça, cansaço, indisciplina, impaciência, tristeza e más escolhas. Minha opção preferencial é ser um humano sem retoques. Busco desesperadamente a ética, mas me reconheço falível e, muitas vezes, tola.
Neste final de verão, a árvore na minha sacada tem flores cor de rosa. Mochi e Tofu, os gatos, dormem tranquilos. Uma brisa agita os meus cabelos e harmonia é tudo em que penso.
A minha perfeição possível é a paz de espírito.
(Texto e Fotografia: Sonia Zaghetto)
E por falar em perfeição, o “Hino do Querubim”, de Tchaikovsky.
A Sónia…visceral, como sempre, acariciando com chicotes. Batendo martelo de flores, riscando fósforo de choro sem incendiar à beleza. Sou fã!!!
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Nossa, que belo comentário! Obrigada!
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Sonia, me identifico com você na maioria das coisas que escreve! Cronista imbatível! Para mim, você sempre será nota MIL!!!
Gosto de Tchaikovsky, mas acho esse “Hino do Querubim” muito triste.
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Obrigada, querido Fernando, muito gentil. Sobre o Hino do Querubim, fiquei pensando como a música repercue em nós de forma tão diversa, talvez interagindo com os nossos sentimentos e vivências. Um abraço!
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Sônia, minha amada escritora, obrigada por não nos abandonar, a despeito do terrível tribunal instalado nas redes sociais. Tenho dito que os humanos queremos sempre ser juízes, réus, jamais. Uma linda semana para você, minha amada.
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Precisava ler isso hoje. Obrigada. Escolhi sair de algumas redes e uma das minhas tristezas foi diminuir a frequência de acesso aos seus posts. Fico feliz de ainda conseguir encontrá-los por aqui.
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Querida Isabelle, estarei aqui todos os domingos. Que bom reencontrá-la. Obrigada por ler. Um abraço muito carinhoso.
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