Por Eugênia Pestana (convidada especial do blog)


Esse texto é o relato de parte de uma viagem que fiz em outubro de 2024, num
roteiro chamado Himalaias, em que visitei o norte da Índia (a região de Ladakh,
conhecida como o Pequeno Tibete), o Nepal e o Butão.
Comecei a escrever pelo trecho final da viagem por duas razões: em primeiro lugar,
porque foi o país em que mais recebi informações e queria fazer os registros para
não perder essa memória; e, em segundo, por ser o Butão pouco conhecido, o que,
acredito, tornaria o relato mais interessante.
Preciso reforçar que as informações citadas foram passadas pelos guias locais, tudo
de forma oral. Por ser um relato pessoal, pode haver alguma divergência em razão
da memória ou da confusão com as palavras, que acontece quando a gente navega
entre dois idiomas: eu ouvia o guia em inglês, traduzia para o português e fazia o
sentido inverso ao repassar as perguntas ou os comentários dos colegas para o
inglês. Peço desculpas antecipadas, reforçando que tentei escrever com a maior
precisão possível tudo o que me foi dito e da forma como me lembro.
Ah, escrever é mesmo tão bom, como me disse a querida Sônia Zaghetto! Está feito,
nasceu! Agora, como um filho que a gente cria para o mundo, entrego o texto para
vocês. Tomara que a leitura seja leve, divertida e, quem sabe, inspiradora!

Chegada ao Butão e primeiras impressões

Quando estávamos no aeroporto de Kathmandu, esperando o voo para o Butão, já
havia uma excitação no ar. Olhávamos uns para os outros numa fila em que,
praticamente, só havia turistas. Durante toda a viagem eu não havia encontrado
nenhum brasileiro e ali não era diferente.
No primeiro lugar na fila para embarcar, estávamos eu e um colega paradoxalmente muito tranquilo e
ansioso – já conheceu alguém assim? Ele era sempre um dos primeiros em
qualquer situação e, em vários momentos durante a viagem, me chamou para
frente. Atrás de nós, um italiano que viajava sozinho me falou que havia organizado toda a viagem com um guia pela internet e que passaria 12 dias no Butão. Ele
contou que pernoitaria num mosteiro, o que eu achei o máximo, pois havia visto um
video de um mochileiro que havia feito o mesmo, com imagens maravilhosas. Com
essa conversa, antes mesmo de embarcar, eu já pensei em voltar!

Como surgiu a vontade de conhecer o Butão?

Há mais de 25 anos, eu dava aulas na escola de Deficientes Visuais em Brasília e,
enquanto aguardava o próximo aluno, folheei uma revista em que havia uma
reportagem sobre o “país mais feliz do mundo”, que havia aberto suas fronteiras há
poucos anos.

Lembro-me das paisagens lindas e do Rei caminhando pelas ruas
entre as pessoas, usando traje butanês, semelhante ao dos cidadãos comuns.
Achei o máximo essa proximidade, tão diferente das nossas concepções ocidentais.
A reportagem ressaltava ainda que havia pouca desigualdade e consumismo e uma
preocupação em manter a identidade cultural do país, o que era sempre um risco,
com a chegada dos turistas e a troca de informações que aconteciam.

Aquelas imagens me marcaram e pensei: um dia, quero conhecer o Butão.
Um detalhe: preciso contar que a companhia aérea me lembrou do tempo em que viajar de avião era um evento e o quanto era bom aguardar a comida que seria servida! Os comissários usavam um uniforme impecável e eram muito gentis. Eu devia ter tirado uma foto… O lanche veio numa caixinha decorada, com tudo embalado cuidadosamente. Os butaneses já tinham ganhado nossa simpatia antes mesmo de pousarmos. Por último, uma dica: no voo de Kathmandu até Paro, procure ficar nos assentos do lado esquerdo da aeronave, para poder ver o Himalaia. Na volta, no voo para Delhi, sente-se do lado direito e tenha a emoção de ver o cume das montanhas flutuando sobre as nuvens durante toda a viagem! (veja na foto à direita a visão que se tem)

Foto 2: Pousando em Paro

Já escrevi três parágrafos e ainda não cheguei ao Butão, mas tenho que falar sobre o pouso!!! Segundo nosso amigo Nelson, o “google-man” do grupo, esse é um dos aeroportos mais perigosos do mundo e menos de 20 pilotos estão autorizados a operar ali. Em Paro está o único aeroporto internacional do país, sendo que há ainda mais dois aeroportos, mas somente para voos internos. A pista aparece pequenina entre as montanhas e ao lado do Rio Paro, num vale onde há muita plantação de arroz e poucas casas espalhadas aos pés das montanhas. O piloto precisa desviar das colinas de um lado e de outro, traçando a rota com cuidado até ficar de frente para a pista, é demais!! (foto 2)
Chegamos!!!

O aeroporto é bem pequeno e alguém nos disse que são apenas quatro voos por dia. Ficamos num hotel de frente para ele nos dois últimos dias e, realmente, só vi dois voos pela manhã e dois à tarde… Pequeno e lindo, tanto o prédio quanto os arredores, a gente já desceu do avião tirando fotos com a boca aberta e falando: uau, uau!!!

Dentro do aeroporto, havia vários painéis com símbolos budistas e a decoração era tipicamente colorida e cheia de detalhes. No meio da esteira, havia a maquete de uma das fortalezas que visitaríamos. Pense. Lindo demais. Na saída, uma das primeiras estátuas que veria muitas vezes pelo país: uma divindade
feminina nos abençoando.

No estacionamento, após recebermos a katak, o lenço tibetano, geralmente branco, que entregam como sinal de boas-vindas, nosso grupo foi dividido em dois microônibus, cada um com seu guia e seu intérprete. Muito feliz, aceitei o convite para ser a intérprete num deles e seguimos com o motorista Buda e o guia Wan. Buda, apesar do nome, na verdade era Hare Krishna e teremos histórias lindas sobre ele mais à frente. Antes de dirigir, sempre fazia uma breve oração que eu ouvia porque me sentava no primeiro banco. Wan, nosso guia simpático, nos agraciou com muitas histórias e boas risadas! Assim, no ônibus 1, ou no ônibus da turma do silêncio – porque as pessoas que falavam muito foram para o outro (rsrs) – nós começamos nossa jornada pelo Butão.

Pelas estradas até Thimphu

Saímos de Paro na direção de Thimphu, a capital do Butão, num percurso que duraria cerca de duas horas. Olhávamos para tudo, queríamos saber de tudo! Nosso guia explicava o que víamos e respondia nossas perguntas com alegria. Selecionei, abaixo, algumas informações básicas para dar uma visão geral do país, pois, como nós, vocês também devem estar curiosos!

O traje

A roupa tradicional do Butão é usada, normalmente, em situações formais, como para trabalhar, principalmente se em órgãos ou funções oficiais, ou como uniforme dos estudantes. Por exemplo, nossos guias estavam sempre com o traje e ainda acrescentavam uma espécie de faixa, cruzando o peito, ao entrar nos templos ou nas fortalezas.

As pessoas mais velhas usam o traje no seu dia a dia, como tradição, mas os jovens tendem a usar roupas ocidentais nas situações informais, inclusive, vimos algumas lojas com roupas “comuns” pelo caminho. Ao longo da viagem, quando a gente se acostuma a achar o traje tão típico e lindo, nos preocupou que essa tradição se perca, o que seria uma pena!

O traje masculino se chama Gho e o feminino, Kira. Ambos são muito lindos, com tecidos e combinação de cores diferentes. O Gho lembra um quimono, amarrado na cintura e que vai até a altura do joelho, usado com meias grossas e longas e sapatos fechados. Muito prático, eles usam a abertura do traje cruzado na frente do corpo como um bolso para guardar o celular, por exemplo. A gente achava graça disso!

A Kira se compõe de um tipo de quimono curto, um pouco acima do quadril, ajustado ao corpo e fechado com um broche. Por baixo, usam uma blusa de tecido mais fino, cuja manga é bem longa e se dobra sobre a manga do quimono, criando um contraste entre os tecidos e as cores bem bonito. Por fim, uma saia longa e reta, com abertura lateral, que não permite passos muito largos. Mesmo na subida ao
Ninho do Tigre, era essa a roupa usada pelas guias. A guia extra que nos acompanhou fez toda a subida segurando a ponta da saia para não tropeçar. Ainda assim, andou mais rápido do que eu.

População, paisagem e agricultura

Com uma população de aproximadamente 800 mil habitantes vivendo em uma área de cerca de 38 mil quilômetros quadrados, por onde andamos havia sempre tranquilidade. Comparativamente, o Butão tem cerca de 1/3 da população do Distrito Federal, estimada em quase 3 milhões de pessoas, vivendo em uma área 6 vezes maior!

Situado nos Himalaias, tem uma paisagem deslumbrante, num horizonte de montanhas altas, azuis, que parecem infinitas! O guia nos explicou que a Constituição butanesa determina que se preserve, no mínimo, 60% das florestas, mas que eles preservam cerca de 70% e são único país “carbono negativo” do mundo.

Nos vales, as plantações de arroz predominam e, como estávamos na época da colheita, pudemos ver lindos campos dourados e os camponeses trabalhando na terra. Eles também produzem milho, batata, pimenta… Para consumo no inverno, desde os tempos antigos, eles desidratam vários alimentos e era comum ver as pimentas vermelhas secando nos telhados. Numa visita que fizemos a um centro de cultura butanesa, havia uma réplica de uma casa antiga em que vimos pimenta, milho e várias frutas penduradas em cordas no telhado para secar, como faziam e ainda fazem em vários lugares no país.

Construções

No Butão há um padrão para as construções. Os telhados e as janelas têm um estilo característico e a altura máxima dos prédios é de 6 andares. Chamaram a nossa atenção as cores dos telhados: verdes ou vermelhos. Os vermelhos representam prédios comuns, particulares, como hotéis, moradias, comércio. Já os telhados verdes indicam prédios que sediam os órgãos oficiais.

Carne, cigarro e álcool

É proibido matar animais no Butão. Embora os butaneses consumam carne de galinha, porco e peixe (não vi carne de vaca), toda carne é importada. Vi alguns açougues nos vilarejos. As porções de carne, comparadas com a dos nossos pratos, são pequenas e não constituem o alimento principal. Num dos passeios, notei que eles tomam cuidado até com as abelhas.

A postura em relação aos animais é sempre muito pacífica e cuidadosa. Pelas ruas, a gente vê cachorros e, am alguns lugares, vacas passeando, embora numa quantidade bem menor do que no Nepal ou na Índia.

O cigarro chegou a ser proibido há alguns anos no país, mas devido a problemas com contrabando e à demanda aumentada durante a pandemia, a proibição foi suspensa. No entanto, só é permitido fumar em áreas exclusivas para fumantes e o imposto sobre o cigarro e a multa para quem fuma em local proibido são altos.

Já em relação às bebidas alcoólicas, a venda e o consumo não são proibidos no país. No entanto, não vi bares em lugar nenhum. Por exemplo, não vi bares abertos onde as pessoas ficam sentadas bebendo, tão comuns no Brasil.

Pobreza e desigualdade

No Butão, quase não se vê pobreza. A educação é pública e gratuita, assim como a saúde básica. Há, no entanto, algumas escolas e faculdades particulares, conforme o guia nos explicou.

É uma missão tomada pelo próprio Rei a de diminuir a pobreza no país, com serviço de apoio e assistência social fortes. Há casas mais simples, mas não vi moradores de rua nem pedintes. Sobre esse assunto, tenho essas histórias para contar.

Num dos passeios, ao chegar num pequeno vilarejo com casas simples e ruas sem asfalto, encontrei crianças brincando na rua. Eu estava carregando uma vasilha com uvas que havia comprado numa feirinha. Notei, então, que uma delas olhou para as minhas mãos. Parei na hora, me agachei e distribuí as uvas entre elas. Foi uma alegria – elas tímidas e felizes. Um momento mais doce do que a uva mais doce do mundo.

Em outro dia, num dos Templos mais populares e sagrados, o National Memorial Chorten, em Thimphu, havia um grupo de pessoas bem simples e mais velhas, sentadas perto das rodas de oração, que passavam o dia ali, girando as rodas.

Embora com aparência simples, não eram pedintes e sorriam alegres para nós, quando passávamos por elas. Uma picava pimentas e imaginei que deviam cozinhar e comer por ali mesmo.

Em toda a viagem, vi apenas uma senhora sozinha e com jeito tímido, parada de pé nos olhando na saída do hotel. Perguntei para o guia se podíamos oferecer algum dinheiro e ele disse que sim.

Ao me aproximar dela, segurei o dinheiro com as duas mãos para lhe entregar (como é o costume deles) e ela o pegou também com as duas mãos.

Então, com as mãos em prece na testa, fez uma reverência em agradecimento, que eu repeti da mesma forma. Uma agradecendo e honrando a outra. Cada uma no seu papel, cada uma no seu destino naquele breve momento.

BUTÃO – As fortalezas e outras estórias

Antes de contar sobre as fortalezas, preciso falar sobre três personagens importantes e de alguns símbolos do budismo. Em todos os templos que visitamos, havia sempre imagens daquelas consideradas
as três figuras mais importantes para a história do Butão: Guru Rimpoche ou Padmasambhava, responsável por trazer o Budismo Tântrico do Tibete; Shabdrung Ngawang Namgyel, o unificador do país, responsável pela construção de várias fortalezas e que reconhecíamos com facilidade porque era “aquele com barba”; e Sidarta Gautama, o Buda. Para os butaneses, tanto o Guru Rimpoche quanto o
unificador são considerados reencarnações de Buda.

Além da imagem dos três, apareciam outras tantas divindades ou deidades, algumas vezes em pares, em posições diferentes, que representavam o masculino e o feminino. Outras presenças frequentes eram as deidades iradas, com expressão de raiva, responsáveis por defender-nos do mal, e diferentes imagens de Buda, por exemplo, como a do Buda do futuro, o Maitreia.

O Budismo Tibetano tem uma iconografia muito rica e interessante. A deusa Green Tara, a emanação

do Buda, era outra deidade que encontrei tanto nos templos quanto em pinturas maravilhosas (as tankas). De toda a simbologia retratada tanto nos objetos que ela segurava como nas coisas ao seu
redor, a que mais me encantou foi a posição da sua perna direita, ligeiramente estendida para frente. Segundo o guia, essa postura representa a prontidão da deusa em se levantar e socorrer a quem lhe pede ajuda. Em alguns lugares, fiquei hipnotizada pela sua imagem linda, forte, pacífica.

Thimphu, a capital, e a família real


Durante essa viagem ao Butão, visitamos três fortalezas. As fortalezas ou Dzongs têm estrutura semelhante, sendo compostas por uma parte administrativa e uma parte religiosa, com monastério e templo. Originalmente construídas para defesa, têm paredes altas e fechadas e se encontram em locais estratégicos.

Em Thimphu, na capital, visitamos a Fortaleza Tashi Chho Dzong, rodeada por um lindo roseiral. Ao seu lado, tem um bosque com árvores altas, num vale situado num nível abaixo da Dzong. No meio dessas árvores, nos explicou o guia, fica o Palácio Real. Assim, escondidinho. Sem holofotes, sem torres altíssimas, sem alvoroço… Na última das fotos abaixo, olhe com atenção: no meio da copa das árvores, bem ali, em algum lugar, tem um palácio.

Segundo os guias, a família real é muito querida e vimos suas fotos em vários lugares: nas casas, nos hotéis, no comércio, nos templos. Na primeira parada que fizemos na estrada de Paro para Thimphu, na ponte de ferro mais antiga do país, havia um painel com a foto do Rei ao lado de um templo antigo e onde alguns estudantes faziam picnic.

Aliás, tenho uma história engraçada nesse lugar! Eu pedi para tirar uma foto com algumas das estudantes que estavam por lá, pois queria registrar seus trajes. Bem na hora, uma das vacas que pastavam soltas por ali deu uma cabeçada no traseiro do colega que batia a foto, que se assustou, e as meninas morreram de rir! Ficou o registro das roupas e das risadas!

O Rei atual, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, tem 44 anos e a Rainha Jetsun Pema Wangchuck, 34. Eles têm três filhos que estudam com outras crianças nas escolas dos arredores. O pai do Rei ainda está vivo, pois, segundo a Constituição, o rei deve se aposentar aos 65 anos e passar o trono ao seu filho. Sim, o rei se aposenta e dá a vez ao seu sucessor aos 65 anos. Está na lei. No caso do Rei atual, seu pai o coroou ainda antes de ter completado 65 anos.

A fortaleza em Punakha, Pelé e o Professor

Punakha Dzong, ou o Palácio da Grande Felicidade, foi construído em 1637, na junção de dois rios, o Po Chu e o Mo Chu. O mosteiro é a residência de inverno do monges que vivem na outra Dzong que fica em Thimphu, local mais frio do que Punakha.


Punakha Dzong é uma das fortalezas mais bonitas e mais sagradas do país, local onde está guardada uma relíquia importante, trazida do Tibete pelo unificador do Butão, Namgyel, o homem de barba dos templos, e sobre a qual o guia nos contou essa história: “O país estava em guerra com o Tibete em razão dessa relíquia, uma pequena imagem de uma das divindades, e o unificador do Butão teve a ideia, então, de mandar fazer uma réplica dela. Com a réplica nas mãos, subiu no ponto mais alto da fortaleza para que os inimigos o vissem e jogou a relíquia no rio. Ao verem o objeto da disputa afundar, os soldados teriam desistido da batalha e retornado ao seu país, dando fim ao conflito. Essa relíquia ainda está guardada na fortaleza e apenas três pessoas podem vê-la: o Rei, o líder religioso do Butão e o monge que cuida do templo em que ela se encontra.” Essa história e a presença dessa relíquia tornam Dzong muito especial para os butaneses.

Na praça central, encontra-se a entrada do Templo principal à frente, à esquerda, a entrada do templo onde se encontra a relíquia, guardada por duas estátuas e por um segurança. Os turistas não podem entrar. Do lado oposto ao Templo há uma parede branca com pequenas janelas. No dia em que estávamos lá, as janelas estavam abertas porque estavam limpando essa sala. Eu tenho uma história sobre isso…

Quando eu estava dentro do Templo, após ouvir as explicações dos guias, sentei no chão, perto de uma das pilastras, e fiquei meditando. Ouvi e senti os passos de pessoas passando por perto, mas fiquei ali, concentrada. Depois de alguns minutos, saí quietinha e me sentei na escadaria da frente para calçar as botas e contemplar a paisagem. Notei, então, vários sapatos na entrada do templo da relíquia, sinal de
que tinham entrado ali. Logo depois, vi saindo vários adolescentes com trajes butaneses, seguindo um homem mais velho. Continuei sentada, em silêncio, quando um desses meninos veio me chamar e apontou para a parede oposta, a das janelas abertas, dizendo que seu professor estava me chamando.

Lá estava o senhor perto das janelas, acenando para mim. Fui até lá e, então, ele me explicou que tinha me visto meditando lá dentro e me disse para aproveitar que as janelas estavam abertas para olhar aquela sala especial de orações. Pequena, com um altar ao fundo com as imagens tradicionais e, nas laterais, as almofadas enfileiradas onde os monges se sentam para os cultos. Um silêncio, um lugar
solene. Sorrimos um para o outro.

Ele se apresentou, disse que estava mostrando a fortaleza para seus alunos e pediu para que cada um, nessa hora de pé em semicírculos ao nosso redor, se apresentasse, dizendo seus nomes. Depois, me apresentei, respondendo que era do Brasil. Foi quando ele me disse que conheceu o Pelé pessoalmente, com quem conversou em duas ocasiões, e que gostava muito dele! Continuamos a conversar, respondi algumas perguntas e me engasguei emocionada. Fiquei por ali mais um pouco, enquanto ele se despediu e seguiu com seus alunos.

Ao me aproximar da saída da fortaleza, ao passar ao lado da estupa que fica na entrada, o professor, já na porta da frente, acenou para mim, orientando que eu desse a volta no sentido horário, como é a tradição. Sorri e obedeci. Ao chegar na saída, onde ficam duas grandes rodas de oração, ele ainda estava ali com seus alunos e eu girei a roda com eles, entoando o mantra. Então, ele parou na minha frente, disse que queria me dar algo: tirou do traje uma carteira pequena e, de dentro da carteira, um cordão amarelo, daqueles que os monges amarram no nosso pulso em alguns templos. Segurou o cordão com as duas mãos, como é o costume, e me entregou. Eu recebi o presente também com as duas mãos, e ele me disse que era para eu guardar comigo, que era um cordão especial, pois era daquele templo que estávamos visitando.
Achei tão doce! Saí dali emocionada, em oração: muito obrigada, muito obrigada, muito obrigada.

Paro: Rinpung Dzong e o Museu Nacional do Butão

Em Paro, passeamos pela fortaleza Rinpung Dzong. Num Dzong, como expliquei acima, tem uma parte administrativa, com escritórios governamentais, e outra religiosa, com monastério e templo.


Sempre lindas, essa de Paro é uma das fortalezas mais antigas do Butão e consagrada em 1646 por Namgyel, o “Pai do Butão”, responsável pela sua unificação. Isso mesmo, o barbudo!
Em Paro, visitamos também o Museu Nacional, um prédio redondo acima da
fortaleza e que, antigamente, serviu como torre de vigia.

Como estávamos bem perto do aeroporto, tivemos a sorte de ver um avião pousando e pudemos observar toda a manobra emocionante que os pilotos precisam fazer!

Outros lugares

O National Memorial Chorten, em Thimphu, é considerado um dos lugares mais sagrados do Butão, tendo sido construído em 1974. O guia explicou que ela é considerada uma estupa dos desejos realizados e que muita gente vem ali fazer seus pedidos ou agradecer por uma graça recebida.

Com um jardim bem bonito e cercada de flores, possui, na entrada, um pátio com inúmeras rodas de oração com mais de dois metros de altura. Ali, vários butaneses mais velhos estavam sentados, girando as rodas de oração e rezando com seus malas nas mãos. O guia nos explicou que muitas pessoas passam o dia girando as rodas, pois é uma prática auspiciosa, que traz bom carma ao espalhar as orações para o mundo todo.

A Chorten ou Estupa tem três andares que representam o caminho da iluminação: o térreo, sendo o mundo inferior ou o inferno, o primeiro andar, a terra e, o último, o céu. À medida que vamos subindo as escadas, vemos inúmeras imagens de deidades, representando o caminho para superar o que nos afasta da iluminação. Vale muito a pena fazer a visita com um guia que explique o significado das
imagens.
Também em Thimphu, visitamos o Simply Bhutan Museum, um centro cultural onde tivemos a oportunidade de conhecer a réplica de uma casa típica e antiga do Butão e aprender sobre vários aspectos da cultura local. Lá, brincamos de arco e flecha, o esporte nacional do país, com direito a dança da vitória para quem acertasse o centro do alvo!
Nessa noite, jantamos e assistimos a um show com danças típicas de várias regiões
do Butão, inclusive com algumas danças de cerimônias religiosas, como a dança
das máscaras.

Dança da construção das casas

Esse centro é uma iniciativa do Rei e da Rainha, cujo objetivo é tanto preservar a cultura entre seus jovens, que aprendem sobre história e as muitas danças regionais, cultivando a memória e a tradição, quanto divulgar toda essa riqueza para os turistas.
O show de danças é lindo. A diversidade e a beleza encantaram a todos. Eu fiquei imaginando a dança das máscaras num festival de verdade, num dos muitos templos dali. Se com poucos artistas já deu arrepios, imagine só a celebração completa. Tudo tem um significado e sempre existe uma conotação de devoção, de dançar pedindo proteção e bênçãos para todos.
Até na dança que faziam ao construírem suas casas antigamente, os butaneses rezavam pelos insetos que morriam durante a construção. A busca pela paz e pela harmonia é a base para tudo.

O Budismo é lindo.

No caminho para Punakha

Atravessando montanhas e vales na estrada que liga Punakha a Thimphu, passamos pelo Dochula Pass, que fica há mais de 3.000 metros de altitude, e de onde, quando o tempo permite, se pode ter uma bela vista dos Himalaias.

Lá no alto, paramos num lugar onde se encontra um monumento com 108 chortens ou estupas. Contou-nos o guia que, em 2003, rebeldes vindos de Assam invadiram a fronteira mais ao sul do Butão. O Rei tentou várias vezes negociar a saída dos rebeldes de forma pacífica, sem sucesso. Ele decidiu, então, organizar um exército para se dirigir ao local e expulsar os invasores, o que conseguiu, mas a custo da vida de muitos dos seus soldados.

Assim, as estupas foram colocadas nesse local em memória dos soldados butaneses mortos no conflito.

MAIS HISTÓRIAS E CURIOSIDADES

Monges no Butão

Pedi ao guia que nos falasse sobre os monges butaneses. Ele explicou que, antigamente, cada família devia enviar um menino para o monastério, mas que, hoje, isso não é mais obrigatório. As crianças ou os adolescentes decidem se querem se tornar monges. Muitas vezes, elas vão muito novas para o monastério, mas não há obrigatoriedade.

No entanto, por ser auspicioso ter um monge na família e pela importância cultural da religião, ainda é comum que essa decisão aconteça naturalmente.

Há monastérios separados para homens e mulheres e eles podem se visitar. Ao final da primeira etapa de estudos, o monge ou a monja decide que caminho tomar: se quer fazer seus votos e ir meditar em algum lugar isolado por 3 anos, 3 meses e 3 dias ou aprofundar seus estudos ali mesmo no monastério; se não quer fazer os votos, mas continuar nos mosteiros com outras ocupações; ou se prefere voltar para casa. Segundo os guias, estima-se haver cerca de 7 mil monges e monjas no Butão.

Os monges budistas e a mendicância – o dar e o receber

O conceito de mendicância foi um aprendizado para mim durante e após a viagem, uma estória que tem várias partes. Vou começar pelo Grande Buda Dordenma, uma estátua gigante do Buda Shakyamuni, situada no alto de uma montanha, nos arredores de Thimphu.

O Buda está sentado, pernas cruzadas e, em uma das mãos, segura uma tigela. Perguntei ao guia o que ela representava e ele me explicou que era uma “begging bowl”ou a tigela da mendicância. Parei e fiquei olhando para o Buda e a tigela, mas sem compreender muito bem o significado.

Para nós, ocidentais, a mendicância e a esmola não tem uma conotação positiva e a ligação do dinheiro com o espiritual, às vezes, causa desconfiança…
Fiquei pensando naquela imagem.
Tanto no Nepal quanto no Butão, em todos os templos e em cada altar sempre havia inúmeras oferendas com significados especiais, como sete tigelas com água, que devem ser repostas diariamente; lamparinas de manteiga, semelhantes a velas que ficam acesas nos altares; os tormas, espécie de “bolos”coloridos, feitos de uma massa de farinha com formatos e cores variados (há, inclusive, cerimônias especiais em que essas oferendas são queimadas, representando o desapego); incensos e as
maravilhosas mandalas… Sao tantos símbolos e tantas histórias! Além disso, há ainda o lugar para a oferta em dinheiro, mas também vi muitas outras coisas, como balas, biscoitos, frutas, garrafa de água ou suco etc. As pessoas ofertavam um
pouco do que quer que tivessem trazido consigo.

No Ninho do Tigre, reparei que os guias colocavam alguma oferta em cada templo que entravam. Então, um dia desses, esbarrei no post de um rapaz (@gregvinevan) que havia largado tudo para se tornar um monge budista. Ele explicou um pouco do significado da mendicância: “A comunidade participa ativamente do sustento dos monges, criando um ciclo de generosidade mútua. No budismo, a mendicância não é vista como um ato de inferioridade, mas como um caminho de transformação espiritual, no qual o monge oferece uma oportunidade de as pessoas praticarem a generosidade enquanto eles, os monges, o desapego”. Poder dar, poder receber. A roda da vida…
Bonito, né?

Altar com algumas oferendas em um templo de Ladakh, na Índia, pois não é permitido fotografar o interior dos templos no Butão.

O que é preciso fazer para morar no Butão?

Olhando para aquela paisagem linda e pensando na tranquilidade de morar num país pequeno, budista, com boas políticas sociais e pouca desigualdade, ainda no primeiro dia de passeio perguntei ao guia o que um estrangeiro precisaria fazer para morar no Butão e como o governo lidava com esses pedidos. Ele nos explicou que conseguir a cidadania butanesa é bem difícil: a pessoa teria que morar ali, provisoriamente, por cerca de 15 anos; aprender o idioma, entender a cultura e os hábitos locais e passar por uma avaliação sobre esses temas; se casar com um butanês; e, por fim, submeter seu pedido ao Rei, que é quem dá a palavra final.

Comentei o quanto seria difícil para alguém, com a taxa de turismo de 100 dólares ao dia, conseguir morar no Butão por 15 anos até poder entrar com o pedido. Ele esclareceu que há algumas pessoas que trabalham como voluntários nessa situação. Então, aparentemente, o caminho é ser aceito como voluntário em algum programa, aprender sobre o idioma e sobre a cultura, encontrar um noivo ou uma
noiva, ser aprovado na avaliação, casar-se e conseguir convencer o Rei de que sua presença é boa para o país, num processo longo, que pode levar mais de 15 anos… Pensando bem, melhor assim, imagino o tanto de gente que não ficaria por ali se não houvesse um regramento rígido!

O turismo no Butão: taxa diária e a política local

O Butão abriu suas fronteiras para o turismo na década de 70. Atualmente, a taxa de turismo diária paga por pessoa é de 100 dólares. Nosso guia brasileiro explicou que essa taxa chegou a 300 dólares após a pandemia, mas, depois, voltou para 100. Essa é apenas a taxa de permanência, sem nada incluído: toda a despesa com hospedagem e com o guia local (obrigatório) é paga separadamente. O guia ainda nos explicou que essa taxa não é cobrada dos indianos e nem dos bengalenses. Talvez por isso, principalmente no Ninho do Tigre, vi muitos indianos, com certeza a maioria dos turistas que fazia o caminho no mesmo dia que eu.

O lema adotado pela política de turismo no Butão é o de alta qualidade e pequeno volume. Eles pretendem que o turista que visite o país venha para conhecer, respeitar e divulgar a cultura local, contribuindo para sua boa imagem mundo afora. Ainda, em razão do valor alto da taxa e do limite de voos, entre outros, a quantidade de pessoas que entra no Butão é bastante controlada. Realmente, mesmo com esse limite, em alguns lugares havia bastante gente. Se considerarmos o tamanho do país, é um controle necessário para que se mantenha a qualidade dos passeios e do serviço prestado e a tranquilidade tanto para a população local quanto para os turistas.

Em todo lugar em que estivemos, mesmo nos mais cheios, como no Ninho do Tigre ou no Grande Buda Dordenma (a estátua dourada do Buda), nunca tive a sensação de estar num lugar lotado ou acima da sua capacidade. O serviços prestados sempre foram de excelente qualidade, seja nos hotéis, nos restaurantes ou o oferecido pelos guias, nossos ou de outros grupos que vi. Depois de ter passado pela Índia e pelo Nepal e de lembrar dos locais turísticos na Europa, sempre bastante cheios de gente, tive a impressão de entrar numa onda oposta de serenidade.

E as compras?

Sim, há lembrancinhas e coisas bonitas para comprar no Butão. Gostei especialmente dos trajes femininos e muitas mulheres do grupo compraram ao menos uma saia típica! Também existem os papéis especiais que eles produzem e podemos comprar cadernos, blocos de notas, pinturas ou desenhos de vários tamanhos para pendurar nas paredes.

Mais lindas e especiais são as tankas, pinturas, geralmente com desenhos sagrados de deidades ou de mandalas, coloridas com pigmentos naturais em tecido de algodão. São únicas, pois feitas à mão, e a gente as encontra com preço bem variado, dependendo da qualidade da pintura e do traço do desenho, por exemplo, se feita por um grande mestre ou por um aprendiz. Em Leh, na Índia, e no Nepal, havia também lojas especializadas em tankas. Minha dica é: escolha a mais bonita que puder comprar (algumas são bem caras) e traga ao menos uma. São uma obra de arte!

Em Paro, há um centrinho cheio de lojas para turistas onde encontramos vários produtos legais: camisetas, bandeiras, ímãs, imagens variadas de Buda ou das deidades, incensos, até alguns produtos mais locais, como arroz vermelho (delicioso), remédios, chás, essências, máscaras, roupas, as tankas… Uma festa!

Aliás, trouxe um dos remédios naturais e famosos que encontramos no Butão, o “cordyceps”, uma espécie de fungo. Muito caro, pois são colhidos nas terras altas e em épocas especiais do ano (no inverno é impossível), dizem ter várias propriedades medicinais. Olhando, parece com uma lagartinha e, pelo que entendi, é mesmo numa lagarta em que se encontra esse fungo. Eu comprei um vidrinho com um único exemplar dentro, mais barato por ter só um, e que está conservado numa bebida com teor alcoólico tão alto que ainda não me animei a beber a colher da chá que a vendedora me recomendou para dormir melhor e diminuir o estresse!

As Estupas, as bandeiras de oração coloridas e as bandeiras brancas

Desde o começo da viagem pelas estradas do Butão, vi muitas bandeiras coloridas em vários lugares, como em pontes ou ao redor das estupas, nas casas e nas montanhas. Também reparei nas bandeiras brancas, com formato diferente, que ficavam aglomeradas em alguns lugares nas montanhas.

O guia nos explicou que as bandeiras coloridas, ou bandeiras de oração, muito comuns no Nepal e no norte da Índia, contém mantras impressos nelas. Suas cores representam os cinco elementos: verde, a água; amarelo, a terra; azul, o céu; branco, o vento; e vermelho, o fogo.


Para os budistas, é auspicioso pendurar bandeirinhas de oração em lugares abertos, para que o vento espalhe as bençãos para o planeta. Assim, é um símbolo de boa sorte e de bons desejos não só para si, mas para todo os seres.

Já as bandeiras brancas são colocadas pelas famílias em memória dos mortos. Elas não devem ser penduradas em lugares aleatórios, é preciso ouvir os monges para escolher o lugar e consagrar as bandeiras.

Quanto às estupas, que estão em muitos lugares, o guia nos explicou que simbolizam Buda ou o budismo. Ele fez uma comparação curiosa. Disse que elas existem desde a época do primeiro Buda, Sidarta Gautama, e que, como não havia máquinas fotográficas ou jornais, por exemplo, uma forma de representar o Buda e sinalizar que naquele local havia seguidores dele era construindo as estupas.

De modo geral, elas contém alguma relíquia sagrada, como, por exemplo, cinzas de algum religioso importante, como a que havia dentro de um dos templos no Ninho do Tigre.

É considerado igualmente auspicioso que a gente dê uma volta em torno da estupa, contornando-a sempre no sentido horário, entoando mantras.

Muitas vezes, há rodas de oração em torno delas e as pessoas fazem a volta girando essas rodas. Fiz isso em Kathmandu, no Nepal, e em Leh, no norte da Índia, também.

TRÊS LENDAS BUTANESAS

Enquanto seguíamos de ônibus pelas estradas, conversávamos muito com nosso guia. Animado com a nossa curiosidade – ou talvez para nos fazer parar de fazer perguntas – Wan nos contou histórias muito divertidas. Eis algumas delas.

Os quatro amigos: o elefante, o macaco, o coelho e o pássaro

Em vários templos, vimos pinturas de quatro animais – elefante, macaco, coelho e pássaro, um sobre o outro, no meio de uma floresta. Perguntei ao guia o que significava a pintura, e ele nos contou essa estória.

“Muito tempo atrás, vieram morar numa floresta perto da cidade, quatro animais extraordinários: um elefante, um macaco, um coelho e um pássaro. Não eram animais comuns e tinham poderes mágicos. Eles se tornaram bons amigos e conviviam tranquilos naquele lugar.

Um dia, no entanto, começaram a discutir sobre quem era o animal mais velho dentre eles, ao qual os demais deveriam respeitar. Para resolver esse impasse, o elefante falou: “Estão vendo esse carvalho?” E apontou para um carvalho antigo e gigante, no meio da floresta. “Quando eu cheguei aqui, ele era uma árvore pequena, um pouco menor do que eu”. Então foi a vez do macaco falar: “Pois quando eu cheguei aqui, esse carvalho eram apenas um arbusto, um pouco maior do que eu”. O coelho tomou a frente, dizendo: “Quando eu cheguei aqui, eu vi o carvalho brotando da terra, suas primeiras folhinhas desabrochando do chão!” Então o pássaro voou acima do carvalho, deu uma volta sobre a árvore e pousou sobre o elefante: “Amigos, fui eu quem trouxe a semente no bico e a jogou neste solo”.

Assim, resolvida a polêmica, os quatro amigos voltaram a viver em alegria na floresta. A amizade dos quatro amigos era tão bonita, que deu origem a um ciclo de paz e de abundância para todos os habitantes da região.

Passado algum tempo, os habitantes surpresos pela alegria que reinava no vale, começaram a se perguntar quem era o responsável por tamanha bem-aventurança. O Rei logo se adiantou e declarou: “Eu sou um rei tão bom e governo com tamanha justiça e sabedoria, que sou, com certeza, o responsável pela felicidade de todos!” Os monges, então, contraditaram o Rei: “Não, majestade, são nossas preces
poderosas e incessantes que trouxeram essa graça para o vale”. Mas os habitantes discordaram: “Nós somos pessoas tão boas, ocupadas em honrar nosso rei e nossos monges, praticando nossas orações e trabalhando com alegria, que os deuses nos abençoaram com tamanha felicidade”.

Assim, criou-se uma polêmica que tomava tempo e desgastava a todos. Até que um dia, um velho sábio que morava na floresta veio até eles e falou: “Não é o rei, não são os monges nem os cidadãos os responsáveis pela harmonia e abundância dessa cidade. Vocês não sabem, mas quatro animais extraordinários resolveram vir para as nossas florestas e aqui vivem em perfeita harmonia, respeitando-se
mutuamente. Foi a amizade fraterna desses amigos que trouxe bem-aventurança para nós”. Todos se admiraram e, resolvido o dilema, a paz foi restaurada na vila. Por isso, a pintura dos quatro amigos na floresta aparece em vários templos e sua imagem é presenteada entre amigos ou familiares queridos, como sinal de amizade, lealdade e harmonia!

O cachorro, o gato, a vaca e o carro

Contou-nos o guia que, há muito, muito tempo, três amigos, o cachorro, o gato e a vaca, resolveram fazer um passeio de carro pelas montanhas. Combinaram o preço com o motorista e subiram no carro.
Ao final do passeio, o motorista cobrou o valor dos três amigos. A vaca prontamente pegou seu dinheiro e pagou sua parte, saindo tranquila do carro.

Ao cobrar o cachorro, este tinha apenas uma nota de valor alto e o motorista falou que não teria troco para ele. Enquanto discutiam como resolver o problema, o gato fugiu correndo sem pagar. Ao perceber que o gato havia fugido, o motorista acelerou o carro sem dar o troco para o cachorro, tentando garantir, assim, o pagamento do passeio que haviam combinado.

Por isso, disse o guia, que, quando um carro passa, a vaca fica tranquila, não se move do lugar. O carro que desvie dela. Ela não deve nada a ninguém. Por sua vez, o gato se assusta e foge dos carros, pois pensa que o motorista está atrás de cobrar sua dívida. Já o cachorro, late e corre atrás do carro para tentar recuperar o dinheiro que o motorista não lhe devolveu.

O gato e o rato

Há muito tempo, havia uma cidade de ratos muito próspera. Perto dela, morava um gato pobre e faminto que olhava sempre para a cidade. Um dia, apesar de saber que os ratos não confiavam nele e não deixariam que ele se aproximasse, o gato elaborou um plano.

Vestido de monge, o gato estudou as escrituras e seguiu para a cidade dos ratos. Chegando lá, os ratos assustados começaram a fugir, mas o gato os chamou: “Amigos, eu mudei! Eu me tornei um monge budista e preservo a vida, não vou mais comer vocês”. E começou a fazer suas orações e a pregar os ensinamentos budistas.

Aos poucos, os ratos começaram a acreditar no gato, pensando: “Nossa, como ele é sábio, como ele realmente está mudado”. À medida que ganhava a confiança dos ratos, o gato começou a fazer pregações cada vez mais longas e resolveu juntar os ratos que queriam ouvi-lo num bosque nos arredores da cidade. Ao terminar a pregação de cada dia, o gato esperava pacientemente que todos fossem embora e, então, comia o último a sair.

Assim foi passando o tempo e o gato todo dia comia um dos ratos da cidade. A população começou a diminuir até que sobrou somente um último rato que, percebendo a tramóia, fugiu correndo dali, espalhando para todos os ratos que encontrou que nunca, nunca deviam confiar num gato. Ainda que vestido de monge.

CURIOSIDADES E BOAS LEMBRANÇAS

Os cachorros e os templos

Em todos os lugares que passamos, na Índia e no Nepal também, havia muitos cachorros de rua. Em Kathmandu, parece que havia um cachorro para cada nepalês! E sempre víamos cachorros dormindo nas escadarias ou nas portas dos templos.

Um dia, visitando uma estupa em Leh, na Índia, o guia explicou que, para os budistas, as pessoas podem reencarnar em outras formas, que não humanas. Então, sorrindo, apontou para um cachorro dormindo na porta do templo e disse que eles brincavam que aquele era um monge preguiçoso reencarnado.

Depois disso, sempre que encontrávamos um cachorro na porta de um templo, sorríamos: “Aí ó, mais um monge preguiçoso.”

Desafios e aprendizagens na jornada

Um dia ouvi um condutor de grupos de montanhismo contar que, em todas as suas viagens, sempre há alguém que se torna um desafio para ele. Sorri: então, não é tão raro!

Num grupo de 26 pessoas viajando juntas por 25 dias, a chance de ter algum conflito é grande… Logo que vi a Regina no ponto de encontro em Guarulhos, senti que as nossas energias não combinavam. Ela muito séria, com ar crítico, observando tudo. No aeroporto de Londres, onde o guia pediu para ficarmos juntos e nos ajudarmos, ela já tinha sumido. Lembro de pensar: essa pessoa vai dar problema.

De um jeito bastante diferente do meu, sempre reclamando, criticando ou se afastando do grupo, Regina me irritava! Eu e um amigo que também não se sentia bem perto dela brincávamos: a gente pede pra Buda pra ter paciência, mas ele podia ter mandado um desafio mais levinho, né?

Houve conflitos nas filas de segurança dos aeroportos, no check-in dos hotéis, com os guias, nas reuniões de grupo, no ônibus (ela sempre se sentava no primeiro banco e achava ruim se alguém se sentasse ali antes dela), nos passeios… Deus do céu.

Em um dos templos, o grupo ficou esperando de pé mais de 20 minutos porque ela não estava no ponto de encontro e o guia teve medo de que ela tivesse se perdido. E eu afirmando que não: com certeza, já devia estar lá embaixo. Descemos para o estacionamento e, adivinha, lá estava ela. Entramos no ônibus e eu, muito brava, briguei com a Regina. Uma amiga disse, rindo, que estava pronta para nos separar!

Depois disso, dentro do possível, eu ficava longe. Mesmo assim, lá estava Regina sempre por perto, mas sem cara feia pra mim. No dia em que parei, por acaso, para oferecer uvas para umas crianças que brincavam na rua (neste texto eu já contei esse história), era ela quem estava passando na hora e parou para tirar umas fotos, que ficaram lindas. Fiquei agradecida pela gentileza. Será que eu teria feito o mesmo? Assim, os dias e os perrengues foram passando: evita, reclama, se irrita, se afasta, tá por perto… Até que chegamos no último passeio da viagem: a subida ao Ninho do Tigre.

Como contarei mais pra frente, caminhei muito tempo sozinha, mas, a partir de um determinado trecho, estávamos eu e Regina juntas. Quando parei num lugar especialmente bonito para rezar, ela me viu de longe e fez uns registros lindos… Então, finalmente, chegamos no restaurante que marcava o início das escadas, a quase dois terços do caminho. Regina parou, pegou seu celular, abriu em uma foto, olhou para mim emocionada e pediu: você pode tirar uma foto minha com a minha família? Nesse momento, meu coração derreteu. Segurei seu rosto com as duas mãos, encostei minha cabeça na dela e respondi emocionada: “Claro, meu bem!” E nos abraçamos chorando.
Regina passou a habitar meu coração com seu jeito de ser, o lado difícil e o lado doce. Eu também tenho tantos lados!
Sou grata por ter tido a oportunidade de desconstruir barreiras e encontrar o Amor.
Nessa vida, a gente pode crescer.

O Ninho do Tigre

A subida ao Ninho do Tigre aconteceu no nosso último dia no Butão e eu vou relatar aqui, além das minhas vivências, as histórias maravilhosas que nos foram contadas pelos guias locais!

O Ninho do Tigre é um lugar lindo e mágico, que deve viver no imaginário de muita gente pelo mundo, sendo considerado um dos lugares mais sagrados para os budistas.
Quando a gente chega na entrada do Templo, precisa deixar todas as coisas nos armários e é proibido entrar com celular. Por isso, as fotos serão apenas do exterior do Ninho, da trilha e da paisagem!
Durante a caminhada, encontrei turistas de várias partes do mundo, mas, principalmente, muitos indianos. Tinha gente de todas as idades e algumas pessoas com dificuldade de locomoção subiam devagar.
Achei a trilha difícil porque é muito íngreme e, na parte final, há cerca de 900 degraus, entre subidas e descidas. Precisamos passar pela encosta de uma montanha e descer um vale, antes da última subida que, finalmente, chega ao
Templo. Fora isso, o Ninho está a mais de 3.000 metros de altitude, o que também faz com que nos cansemos mais.

Os guias são uma história à parte. Enquanto a gente sofre com tantos degraus, eles sobem num ritmo constante, muitas vezes falando ou vendo coisas no celular na maior tranquilidade. A guia extra que ajudou o grupo, por exemplo, estava usando a Kira, o traje típico butanês, e segurava a ponta da saia longa para não tropeçar. Ainda assim, subia com facilidade, parando sempre para esperar alguém. Ela comentou que já havia feito o trajeto mais de 30 vezes. Deve ser muito treino mesmo!

Para quem tem mais dificuldade, é possível alugar cavalos no começo da trilha. Eles levam as pessoas até cerca da metade do caminho, quando começa a parte só com escadas. No nosso grupo, ninguém quis: ou subimos com nossas pernas e condições ou não subimos. E assim foi.

Nosso grupo foi dividido em três: os mais rápidos na frente com o guia Wan; com o pessoal do meio, nossa guia extra; e, com os mais lentos, duas pessoas: Rinzin, o guia do outro ônibus, e Buda, nosso motorista. Eu fiquei no grupo do meio na subida, parando muitas vezes para tirar foto ou fazer minhas orações. Na descida, vim com o último grupo. Na maior parte do tempo, caminhei sozinha, concentrada.

Um trekking é sempre uma incógnita. Como no Caminho de Santiago ou como na subida do Anapurna, no Nepal, a gente não tem certeza do que pode acontecer. Podemos amanhecer com dor de barriga, podemos torcer o pé, o sapato pode machucar… Será que a montanha vai nos permitir chegar até o cume? Num lugar sagrado, ainda mais variáveis podem acontecer. Não temos controle e, nesses
momentos, a consciência dessa verdade fica mais forte. A gente se entrega ao caminho. A gente pede permissão. A gente tem fé que cada um vai receber aquilo que precisa.

Por que e como o Ninho do Tigre foi construído naquela montanha? Os guias nos contaram.

No século VIII, o Guru Rinpoche ou Padmasambhava, considerado uma encarnação de Buda, trouxe o Budismo do Tibete para o Butão. Naquela época, o Butão estava assombrado por demônios e seres do mal, contra os quais o Guru lutou.

Especialmente nessa montanha, morava uma dessas forças do mal que assustava o povo que morava no vale. Rinpoche, então, tomou a forma de uma espécie de ave, com chamas pelo corpo, e subiu na sua consorte, deidade feminina que tinha vindo com ele do Tibete. Ela, por sua vez, tinha tomado a forma de um tigre. Eles voaram juntos até o topo da montanha e, ali, travaram uma luta com a entidade do mal, convertendo-a ao bem. Por isso, o Templo é conhecido como o Ninho do Tigre.

Após isso, Rinpoche meditou numa caverna na montanha durante 3 anos, 3 meses e 3 dias. A peregrinação ao local foi se tornando famosa ao longo dos anos. Os seguidores do Guru trilhavam o mesmo caminho do mestre até o topo e também meditavam na montanha. Assim, lá no alto, em 1692, foram construídos o mosteiro e o templo. Segundo nos contaram os guias, o Templo já pegou fogo duas vezes, tendo sido restaurado, pela última vez, em meados dos anos 2000.

A caverna onde o Guru Rinpoche meditou é um dos três lugares mais sagrados do Templo. A sala onde fica a entrada da caverna é bem pequena, com estátuas do Guru Rinpoche, da sua consorte e de outras entidades na parede do fundo. Do lado direito, há uma janela que ilumina a sala e, do lado esquerdo, uma pequena porta de metal que é a entrada da caverna. Essa porta é aberta apenas uma vez por ano, numa festividade específica, quando milhares de peregrinos fazem a trilha para ter a oportunidade de ver esse lugar santo.

Dentro da caverna, dizem que há 108 dorjes, um dos objetos sagrados para o budismo, que tem o poder de cortar a escuridão.

Enquanto eu estava lá dentro, entrou um monge segurando um bule com água numa das mãos e um japamala – um cordão com contas, usado para meditar – na outra, entoando mantras. Ele derramava um pouco da água sagrada nas mãos de quem quisesse. A gente então toma um gole e passa as mãos com a água pela cabeça. Fechei os olhos e fiquei ali de pé meditando, enquanto ouvia as orações do monge, num tom grave e contínuo, que fez com que eu saísse por alguns momentos do tempo e do espaço.

Depois dessa pequena sala onde está a caverna, seguimos para outra sala maior, acima da primeira, onde se encontra a “estátua que fala”, o segundo lugar mais importante do Ninho. A estátua que fala é uma escultura do Guru Rinpoche, que fica no centro do altar desse segundo Templo, em que estão inúmeras outras figuras do Budismo Tibetano. Grande e dourada, imponente, o guia nos contou que a estátua tinha sido doada há muitos anos por um dos seguidores do Guru. Por ser muito pesada, teve que ser carregada montanha acima por 10 homens, para ser colocada no interior do Ninho. No entanto, num determinado ponto da trilha, eles não conseguiam mais carregar a estátua e pararam para discutir o que poderia ser feito. Decidiram, então, que quebrariam a estátua em pedaços menores que pudessem ser transportados e, chegando ao Templo, colariam os pedaços, restaurando-a. Nesse momento, a estátua falou: “Não me quebrem, deixem-me aqui e voltem amanhã de manhã”, ao que os homens
prontamente obedeceram.

Na manhã seguinte, quando voltaram, a estátua havia desaparecido. Ao subirem para o Ninho, a encontraram no lugar em que está hoje. Quem teria levado a estátua tão pesada até lá em cima? Aquela entidade que habitava a montanha e que era do mal, mas que foi convertida pelo Guru!

Numa outra ocasião, pretendiam fazer uma reforma no Templo e resolveram que mudariam a estátua de lugar. Mas antes que fizessem algo, a estátua falou novamente, pedindo que a deixassem exatamente onde estava – o mesmo local em que permanece até hoje. Não é muito interessante?

Nessa sala, como já tinha visto em outros templos, havia um monge sentado, entoando mantras num canto. Algumas pessoas estavam ajoelhadas na frente dele e, uma a uma, se aproximavam, abaixavam a cabeça e o monge as benzia com orações e com um dorje ou com uma pequena estátua dourada do Buda, que ele segurava.

Eu me ajoelhei por perto, quietinha, sem saber se era algo combinado com aquele grupo ou se eu também poderia receber a benção. Quando ele terminou, olhou para mim e fez sinal para que eu me aproximasse. Me curvei em reverência na frente dele. Ele encostou o Buda na minha cabeça, entoando suas orações, e eu chorei.

Um dia desses, quando falávamos de memórias doloridas, uma amiga sábia me disse: coloque essa lembrança num pequeno baú e o feche. Então, pense em alguma coisa que você queira colocar sobre o baú para cuidar dele até que possa lidar com essa situação. Na mesma hora, me veio a imagem desse pequeno Buda, que ficou ali, cuidando das minhas memórias sofridas.

O terceiro lugar mais importante do Ninho é uma sala ainda maior do que a anterior, já próxima à saída, onde se encontra uma estupa grande, talvez com uns 3 metros de altura. Nela, estão as cinzas de um dos seguidores famosos do Guru, um monge que havia feito a peregrinação inúmeras vezes e também havia meditado no templo por 3 anos, 3 meses e 3 dias. Esse lugar, muito visitado, é conhecido como o templo da estupa que realiza os desejos, com um altar bonito e cheio de oferendas e de imagens na sua frente.

Caminhando e rezando…

Acredito que a subida até o Ninho do Tigre tem tantas histórias e significados quanto as pessoas que decidem fazer a peregrinação. A gente não sabe se vai conseguir, ou o que pode acontecer… Eu fui com fé, com sonho, em busca do sagrado.

Fui andando devagar, rezando, agradecendo.

Enquanto caminhava, ia falando o nome das pessoas que habitam meu coração: minha família, meus amigos da academia, do trabalho, conhecidos de quem gosto… Fui falando os nomes, às vezes, relembrando um pouco da história daquela pessoa. Meus pais, meus antepassados, meus filhos, irmãos, sobrinhos, primas… Tanta gente que sei que está vivendo alguma batalha para sobreviver. Num determinado instante, resolvi gravar um vídeo para meus filhos: para eles eu oferecia meu
caminhar. Naquele lugar lindo, exuberante, o coração batendo forte, comecei o vídeo. E chorei de emoção. Primeiro de muitos choros nessa subida cheia de significados.

Num outro momento, de frente para uma paisagem de extrema beleza, parei para rezar. Mãos unidas no peito, rezei para que o amor libertasse e curasse qualquer ferida ou trauma das dores passadas, para que pudéssemos seguir livres e libertos. Mais leves. Rezei, rezei, pedi. Uniões rompidas, laços ou correntes… Pedi que as dores fossem curadas. Segui caminhando. Passo a passo e a cada lágrima, sei que lavei minha alma e talvez tantas outras por graça e bênção do caminho sagrado.

Era dia 31 de outubro. Se estivesse vivo, meu pai faria 101 anos. Dia 31 de outubro, dia do Diwali, a festa das luzes na Índia, dia em que mais de um bilhão de pessoas celebram a vitória da Luz sobre as trevas. Dia também em que subi a montanha do Ninho do Tigre. Nas minhas orações, pensei em todos nós. Nas minhas orações, meu pai estava comigo nas montanhas. E eu usava as meias que minha mãezinha me emprestou para não machucar meus pés. Tudo pode ser sagrado. Tudo pode ser tão bonito.

O cacho e a montanha

Há alguns anos, ouvi um Podcast que me inspirou de múltiplas formas. Foi com Jai Dev, meu então professor de Kundalini yoga, e Wasfia Nazreen, a primeira mulher nascida em Bangladesh a escalar os sete Summits: as montanhas mais altas em cada continente.

A história dela é espetacular e, além de montanhista, ela ainda esteve com o Dalai Lama e com o Kamarpa, em Dharamsala, onde viveu durante alguns anos. Quando ela relata a escalada ao Everest, ou a Montanha-Mãe, ela conta que tinha o cabelo comprido até a cintura e que, antes de partir, conversou com a Montanha: se você me permitir pisar na sua coroa, eu vou cortar meu cabelo e oferecer a você.
O cabelo, que contém nosso DNA, é considerado sagrado em várias religiões e, para ela, isso não era diferente. Pisar na coroa, estar no cume, no lugar mais alto… E assim foi. Ela subiu e, lá em cima, chorou e agradeceu. Ao descer, numa cerimônia especial num dos Templos, cortou e entregou seu cabelo, conforme havia prometido.

Inspirada na história de Wasfia, pensei numa forma de também fazer a minha oferenda. Na véspera da caminhada, cortei, com cuidado, um cacho do meu cabelo e o guardei no bolso da calça que eu ia usar.
Ao descer o Ninho do Tigre, comecei a procurar um lugar que me parecesse especial para fazer minha entrega. Eu tinha completado a subida, tinha ganhado esse presente! Escolhi parar numa pequena fonte de água que descia pela floresta e comecei a procurar nos meus bolsos o pacotinho em que tinha guardado o cacho do meu cabelo. Naquele momento, eu caminhava sozinha e vinha apenas uma menina um pouco atrás de mim, que me viu parada na fonte e veio conversar comigo. Contei a ela que, na noite anterior, eu havia cortado um cacho do meu cabelo com a intenção de entregar ao caminho, caso conseguisse subir até o topo. Assim, eu estava deixando meu cabelo naquela fonte em agradecimento.
Ela olhou pra mim sorrindo e disse: “Agora, você faz parte dessa montanha.”

Rose, Buda e o Ninho do Tigre

Rose é uma médica pediatra que tem asma, está um pouco acima do peso, não é muito alta, quase morreu de Covid e recentemente perdeu um irmão para a dengue. Rose é daquelas pessoas adoráveis que a gente quer ter por perto, que adora séries e milho, não necessariamente nessa ordem. Rose queria subir até o Ninho do Tigre e não fez nosso primeiro trekking no Anapurna, quando estávamos no Nepal, para se poupar. Ela tinha uma intenção, uma oferta: pensava no irmão. Como contei lá no começo, nosso grupo se dividiu em dois ônibus no Butão, cada um com seu guia butanês: Wan e Rinzin. Eu era a intérprete no nosso ônibus e nosso motorista se chamava Buda. Você deve lembrar que acima eu contei que, apesar do nome Buda, ele era Hare Krishna e eu ouvia a prece que ele fazia antes de começar a dirigir: Ram Ram. Hare Krishna. Hare Hare… Acho linda a devoção e vi muita devoção nessa viagem.

Na subida ao Ninho do Tigre, Rose estava no último grupo, o que iria mais devagar. Buda e o guia Rinzin seguiam com ela e mais duas colegas. Rose, com toda a sua dificuldade, começou a subida. Seu remédio para asma na mão, tossindo o tempo todo. Devagar, parando, usando a bombinha. Ela me contou que Rinzin e Buda iam atrás dela, cantando, conversando, incentivando o grupo, e que a puxavam para cima nos degraus mais altos. Suas pernas curtinhas, bombinha na mão, a tosse que não parava. Várias vezes, Buda olhou para ela e perguntou se ela queria voltar. Sem falar, ela só apontava para cima: é para lá que eu vou. Ele entendia. E seguia com ela.

Buda ia fazendo suas orações, Rose escutava e fazia as suas próprias, lutando contra as dificuldades, a longa escadaria, a altitude, sua respiração. O Ninho lá no alto, o irmão no coração.

Chorei, ouvindo ela contar que só conseguiu chegar ao Templo por causa da ajuda dos dois, da força da fé que eles tiveram em seus deuses e nela: uma mulher amorosa, determinada, guerreira.

Ao terminar a caminhada, Buda pediu para que eles cinco, os últimos a chegarem, dessem as mãos numa roda e fez suas orações de agradecimento em inglês, pausadamente, para que todos entendessem. Sim, eles tinham conseguido.
Sonhos, vitórias, promessas, força, fé, Amor, emoção.
Rose e Buda viraram heróis em meu coração.

O banho de pedras após a subida

O banho de pedras quentes é muito antigo e tradicional no Butão. Na vila temática, visitamos a réplica de uma casa tradicional em que havia uma banheira de madeira, objeto comum nas casas de antigamente.

Os guias nos falaram dos benefícios medicinais na véspera da subida ao Ninho do Tigre e, quando terminamos o trekking, eles nos levaram para experimentarmos o famoso banho de pedras quentes.

Seguimos então com os guias e Buda para uma pousada na área rural, onde, na casa ao lado, estavam as salas de banho. Uma casa simples com vários quartos e telhado vazado, com pequenas aberturas para o lado de fora, onde ficava a parte de trás da banheira de cada quarto.

A banheira de madeira tem um cercadinho numa das pontas, onde colocam as pedras quentes pelo lado de fora do quarto. Na água, também adicionam várias ervas. O guia nos explicou que os minerais liberados pelas pedras especiais, trazidas das montanhas, mais as ervas, retiram as dores do corpo.

Foi muito divertido! Eu conversava com minha amiga Rose no quarto ao lado: “E aí, Rose, já entrou na banheira?”

“Nãoooo, Eugênia, a água tá muito quente!”

“Rose, eu já me sentei!”

“Eu não!!! Tá quente demais!!!”
O povo devia estar se divertindo com nossa conversa! Para o lado de fora, estava a parte da banheira em que as pedras poderiam ser recolocadas e, de tempos em tempos, o rapaz perguntava: mais pedras? E a gente gritava: nãooo!!!

Ficamos meia-hora ali de molho. Acho que baixou minha pressão, pois eu levantava os braços e eles “escorregavam” de volta para a banheira! Só sei que o banho foi maravilhoso! Sem dores, sem cansaço e, no dia seguinte, estávamos novinhas em folha. Rimos muito e falávamos para todos que o banho de
pedras era milagroso!

Veja, abaixo, as fotos dos quartos de banho e das banheiras; da placa da pousada, para quem quiser ter a experiência de se hospedar no meio das plantações de arroz e viver no ritmo dos butaneses; e outras duas com os guias Wan e Rinzin , comigo e com outra colega de viagem, a Marilene, que disse que ficaria ali de molho mais uma hora ! Bem que podia ter desses banhos aqui no Brasil.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, quero agradecer à Sonia Zaghetto, essa amiga generosa que me convidou a publicar esse relato no seu blog, me incentivando todo o tempo. É uma honra, amiga, e espero estar um pouco à altura da sua escrita e não fazer feio por aqui!

Agradeço também aos meus colegas de aventura, especialmente aos citados aqui, que autorizaram que eu publicasse seus nomes nas histórias vividas com eles. Por fim, quero informar que a agência que organizou esse roteiro incrível foi a Govinda Turismo (Instagram: govinda.turismo) e só tenho a agradecer por toda dedicação de sua equipe: Mohan, Rebeca, Babu, Jamil, Érica, Bebel e Thiago!