“A última cena de todas,
Que encerra esta estranha e agitada história,
É a segunda infância e o mero esquecimento,
Sem dentes, sem olhos, sem gosto, sem coisa alguma.”
William Shakespeare – As you like it
O que morre primeiro? O homem ou o mundo ao redor?
Gene Hackman morreu antes de seu coração parar de bater.
Teve fome. Teve sede.
E ninguém veio.
E então Gene Hackman, o grande Gene Hackman, morreu. Não de doença, não de fome. Morreu de esquecimento. Qual a verdadeira morte? A do último suspiro ou a do instante em que ninguém percebe a sua falta?
Gene Hackman morreu sozinho. Um dia, todos nós estaremos solitários no momento do encontro com o nosso destino final. É inevitável. Mas para Gene a morte chegou de um jeito mais lento, mais esquecido e doloroso. Ninguém bateu à porta. Nenhum amigo ligou. Nenhum familiar estranhou a ausência.
Betsy, sua esposa, morreu primeiro. Hantavírus. Uma doença rara, transmitida pelo pó das fezes de roedores. Pouco antes ela foi à farmácia e levou o cãozinho ao veterinário. Não sabia que aquelas eram suas horas finais, que seria abatida por algo mortal carregado pela poeira invisível, das coisas que existem e não se veem. Um dia ela estava ali, no outro não. Talvez tenha passado a manhã dobrando roupas. Talvez tenha planejado o jantar. E então veio a febre, o cansaço, o nada. De repente, o fim. Fulminante, sem aviso, sem tempo para despedidas e providências.
Gene ficou sozinho, sem entender. Por sete longos dias, perambulou pela casa sem saber o que fazer, sem lembrar como agir. Aos 95 anos, o Alzheimer já havia apagado parte de sua memória e a capacidade de pedir ajuda. Talvez tenha, no fundo da mente, sentido o vazio. Talvez tenha chamado por Betsy. Mas isso não se soube ou saberá, porque ninguém estava lá.
Ninguém veio.
O que acontece quando um homem se torna invisível?
Gene Hackman foi um dos maiores atores de Hollywood. Um ícone. O rosto duro, a voz grave, o talento bruto. Interpretou presidentes, assassinos, heróis. Foi duas vezes vencedor do Oscar, amado pelo público, respeitado pelos colegas. No auge da carreira, era forte, imbatível, voz que não tremia. Mas o que isso significa quando se tem 95 anos e se está sozinho e desamparado em casa? Quando a memória se apagou, o corpo está fragilizado e os amados ausentes?
A fama é um engano que o tempo desfaz.
O que resta quando o telefone para de tocar? Quando as pessoas presumem que você não quer ser incomodado? Quando a casa grande e confortável se torna um território de esquecimento?
De que vale um nome célebre quando se está idoso, doente e só?
A solidão não chega de repente. Ela começa no dia em que ninguém mais pergunta como você está. No dia em que as pessoas supoem que você já tem tudo, que está bem. O esquecimento vem devagar. Constrói-se aos poucos, como uma casa onde ninguém entra.
Gene – que não se dava ares de celebridade – buscou se distanciar de Hollywood. Escolheu o isolamento, apostou que a esposa, trinta anos mais jovem, o assistiria até o final. Acreditou que não precisava de um cuidador, enfermeiro ou outros empregados. Porém, o que durante muito tempo foi bênção, converteu-se em armadilha. A casa grande ficou menor. O silêncio ficou maior. A porta ficou fechada.
Ninguém bateu.
E o homem um dia visto por milhões, partiu sem que ninguém olhasse.
A solidão dos que vivem muito por vezes me assusta. A velhice é um país estrangeiro e inóspito. Ninguém quer visitá-lo sem garantias e medidas de segurança, mas poucos são os que ousam pensar no que acontecerá quando os dias se tornarem longos demais e as noites silenciosas em excesso. Raros são os que tomam decisões conscientes para que a vida não se dissolva quando não houver mais reuniões de trabalho, estreias, jantares com amigos, idas ao cinema.
Recolho em mim cada lição dessa tragédia: morrer é um caminho sem testemunhas; a fama, uma ilusão que se desmancha na poeira; o sucesso, um eco que não se sustenta; e escolhas para a velhice devem considerar vários cenários, pois a vida é mutável e imprevisível. Ela nos surpreende em uma esquina qualquer, com a sua maleta transbordante de espantos.
No fim, somos casas sem luz se não há quem bata à porta.
Uma reflexão
O que aconteceu com Gene Hackman e Betsy não foi apenas uma tragédia pessoal, mas uma advertência dolorosa para a coletividade. Um retrato do que pode acontecer quando envelhecemos, o mundo segue adiante e nós ficamos para trás, presos em nossas decisões.
A solidão da velhice não escolhe classe social. Assim, é imperativo adequada preparação para o momento em que se pode perder a autonomia. Pôr em ordem a documentação, estabelecer rotinas de checagem e de alerta se ocorrerem acidentes ou doenças; informar família e amigos sobre o que devem fazer em caso de perder o controle da própria mente.
Reflexão profunda e importante para todos nós que passamos por esse período da envelhescência e muitas vezes não percebemos que aquele desejo de ficar sozinho e não ser incomodado pode nos trazer uma sentença de morte, solitária e, talvez, carregada de medo.
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GRANDE VERDADE.
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Absolutamente espetacular sua crônica, seu texto, sua sensibilidade. Qdo soube desta história foi exatamente o que me veio em mente: a perplexidade com o esquecimento – não da doença de Alzheimer – das pessoas ali existentes! Onde estão famílias, amigos, vizinhos?! Que solidão, isolamento, distanciamento transformam vidas em tamanha invisibilidade?? Não façamos isso com nossos idosos, e nem idosa é a mulher, que foi abandonada à própria sorte, cuidando de outras vidas… tristíssimo!!!
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Dura realidade. O isolamento do próprio idoso para não incomodar, e acreditar que não é mais importante leva as pessoas a se afastarem acreditando que eles se isolam porque não quer ver ninguém,.não ter contato . Os idosos sentem falta das pessoas queridas, se isolam em geral porque sentem que não sao mais tão importantes como antes, nas conversas, visitas, convites. Cada vez mais o idoso se sente desnecessário, o etarismo está cada vez mais evidente
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Excelente, crônica. Muita clareza e lucidez sobre os riscos da velhice descuidada por si e seus familiares e amigos.
Parabéns Sônia!!
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Parabéns, soninha. Cheguei a vislumbrar as cenas…Cláudio Tadeu Daniel-RibeiroEnviado do meu iPhone
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Bim dia,
esse texto é de Ivone Junges ou de Sônia Zaghetto???
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O texto é de Sonia Zaghetto
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Seria uma tristeza, não fosse saber o que nos acontece nos ultimos tempos de nossas vidas.
Como podemos ser tão incrédulos a ponto de achar que que tudo termina com nosso corpo material?
Deus seria uma ilusão? Seria nossa justificativa para acreditar em alga coisa?
Sejamos sensatos! Imaginar que a cultura nos faz conhecedores de tudo sobre o mundo, é, no mínimo, orgulho, egoísmo e uma dose imensa de presunção.
Tudo em A Natureza é perfeito! Principalmente, a infinita bondade de nosso criador.
Se achamos uma tristeza a morte da matéria, que pertence ao planeta. Saibam que o nascimento no mundo dos desencarnados pode ser uma alegria indescritível! Digo pode porque depende de como aproveitamos nossa última oportunidade na Terra.
O momento é de otimismo, agradecimento e MUITA espera.
Por favor, pensem nisto!
JJ
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esperança
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Importante reflexão, porém ficam os questionamentos, onde estavam seus familiares? Não tinham cuidadores ou serviçais? Com tantos recursos que a fama trouxe, não se prepararam para velhice? Ainda mais num país de primeiro mundo! Hoje tem casas de convivência de idosos, principalmente para quem tem condições financeiras, que prestam todo tipo de serviços. É lamentável o abandono que se encontravam!
@Sonia Zaghetto
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Excelente texto. Capturou bem o sentimento acerca deste horror.
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Profundo. Dolorido. Senti na alma a essência da solidão. Aos 61, começo a preparar com mais afinco a mala que deixarei para que não pese àqueles/as que já me esqueceram ou que em breve, esquecerão. Respeitar meus momentos de solitude, de descanso, de cansaço não é abandonar-me mas é mais fácil culpar-me do que buscar fazer estágio do que por certo será o último curso de cada um. Se eu tiver um ultimo desejo: só quero que a morte me chegue assim, de supetão e me leve assim, sem tempo para despedidas vãs. Que ela, a morte, me encontre bem viva.
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Nossa… que triste… Mas não foi um pouco exagerado? Ele não tinha filhos? Família?
Enviado do Yahoo Mail para iPhone
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Desculpe, o texto não descreve apenas a experiência do Ator, usa o Ator como uma instancia de reflexão… ela traz sim uma reflexão a nossa vida !
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Texto espetacular, muito profundo e cheio de verdades. Muito orbigado por trazer esta reflexão, precisamos nos cuidar, pois, ao final, todos seguimos o mesmo caminho na segunda infância !!!
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Realmente a única certeza que temos da
vida é a morte. Esse texto é para nos advertir. A solidão vem na nossa vida quando estamos sozinhos (as). E nem
sempre podemos contar com alguém ao
nosso lado.
Muito triste 😢
Já estou me preparando tbm.
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Texto p reflexão profunda…
A velhice, se pensada ao longo da vida, pode ser diferente!!!
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Não somos preparados para entender e aceitar a Morte, mesmo ela sendo ponto final nesta vida material para todo e qualquer ser vivo.
O mais triste de tudo, é que na maioria das vezes somos nós mesmos que escolhemos dia a dia como e as circunstancias de morrer sem ao menos perceber.
Muitos escolhem a solidão para não ver os que amam tristes quando são amados de verdade. Outros escolhem para não ter perto a realidade da indiferença e falta de amor.
Que eles estejam em paz!
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Talvez eu comece pelo fim e o fim me despertença… Não, não te esqueças de mim quando o tempo, esse presente que é às vezes o esquecimento por escolha, escolher pausas de ti em ti mesma. Lembra de cada um no teu caminho como bem quiseres. Talvez, falando do esquecimento não saibas o quanto é importante para tantos, o quanto faz tantos crerem que existe ainda algum valor bom nesta humanidade. Queria tomar chá da tarde com teu coração e perguntar com que cores pintarias o teu jardim, mas talvez eu já vislumbre a flor de cerejeira na lágrima que me rola. A internet que tem esta capacidade de conectar pessoas à distância traz mais coisas maravilhosas e é para elas que olharei além de todos os esquecimentos. Recordo teu primeiro livro, que guardo como tesouro, ainda pensando no chá, eu sei, às vezes estive distante. Eu vou ali recolher os fragmentos de letras que observo dos mestres do tempo para ver se me encontro. Eu me encontrei neste domingo, assim como me encontro neste instante, mágico em que te escrevo e afirmo que a vida me trouxe tantos presentes e permitiu ver tantos fenômenos. Dentro desta retina verde “chorante” a licença poética diz: não temas a borboleta. Elas são flores indefesas que voam com a mesma rapidez que a vida esquece o bom e o mal.
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Texto importante e de grande sensibilidade. Muito obrigada, querida Sonia, por sempre nos brindar com leitura da mais alta qualidade.
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A vida se repete . Só somos importante , nesta vida , quando somos úteis para alguma coisa ou alguem ; depois somos esquecidos . Precisamos voltar a época aonde todos vivem juntos na mesma casa . Casa da familia , aonde várias gerações vivem e convivem , disseminando afetos , cultura , tradiçoes e cuidados .
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Nunca li nada tão lindo, profundo e tão raro que me encantasse tanto e me fizesse chorar de encantamento, emoção e tristeza. O texto foi escrito com força, criatividade, encantamento, sabedoria. Que coisa linda. Que reflexão profunda. Jamais serei o mesmo depois desta leitura. Perdi os 70 anos que pra mim já passaram. Antes tarde do que nunca. Gratidão, Sônia por ter produzido este encantamento todo. Não cabe nas palavras a gratidão que eu sinto.
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