“Embora a neve de Yoshino esteja amontoada em seu caminho, não duvide que onde seu coração está, seus passos seguirão sua rota”. (Lady Murasaki)

Caía uma chuva fininha quando atravessei o portal do santuário onde viveu Lady Murasaki, em Kyoto. Permaneci ali, sem me mover, olhando as árvores, o jardim e as gotas que pareciam cair lentamente, como num sonho.

Uma emoção mansa me tomou : eu estava na casa em que a lendária dama da corte imperial japonesa há mil anos desafiou as convenções e escreveu o Genji Monogatari, o primeiro romance literário do nosso mundo.

O que se sente ao pôr os pés no território sagrado dos sonhos realizados? Parece casamento de raposa: sol e chuva, lágrimas e  doce alegria.

Minutos antes eu caminhara sozinha pelos jardins do palácio imperial de Kyoto. Trazia um coração partido e a decisão de parar de escrever. Mas veio o vento e depositou folhas em forma de estrelas vermelhas na sombrinha. Havia uma tal beleza que eu me senti abençoada. Meu ciclo de vida se cumpria. Plenitude e bem-aventurança ao alcance do corpo.

Era muito cedo, mas eu e alguns japoneses idosos estávamos imersos naquela beleza.

Lentamente entrei na casa de Lady Murasaki. Hoje é um templo budista. Um bordo japonês debruçava-se sobre a entrada. No quintal, vi flores recolhidas pelo inverno e ervas aromáticas adormecidas à espera da primavera.

O templo se abria para um jardim zen. Havia um perfume de silêncio, uma doçura de incenso. Ali Lady Murasaki refletiu sobre as paixões e os caminhos tortuosos da vida humana.

Naquele instante eu soube que faria este texto inspirada pelas palavras da Dama: “A arte de escrever é fruto da experiência do contador de histórias com os homens e as coisas. Experiências nos movem para uma emoção tão apaixonada que não se consegue mais mantê-la trancada no coração”.

A paz enfeitou de flores o meu mundo. Sentei na varanda, fechei os olhos e chorei. E pelo meu rosto deslizaram, suavemente, líquidos poemas de amor.

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(Textos e fotos de Sonia Zaghetto. As duas ilustrações de Lady Murasaki foram criadas por Sonia Zaghetto utilizando a ferramenta de Inteligência Artificial da Meta)

Lady Murasaki venceu as adversidades de seu tempo

Não é segredo meu amor pela literatura e pelo Japão. Lady Murasaki é, acima de todos os demais escritores japoneses, a minha preferida. Há mil anos essa mulher extraordinária teceu um romance que nada fica a dever aos modernos.  Primeira pessoa a escrever um romance na Terra, dessa intelectual vigorosa sequer se sabe o nome verdadeiro. Nascida em um período no qual as mulheres eram proibidas de ter acesso à educação e produção intelectual, ela figura hoje entre os grandes escritores da literatura universal. Seu Genji Monogatari é um clássico da literatura japonesa e mundial.

Com um texto rico, fluente, intimista e por vezes irônico, Lady Murasaki Shikibu (紫式部) criou uma obra de arte que se iguala aos romances modernos em elementos como enredo atraente, coerência, arco dramático e personagens dotados de profundidade psicológica. Incluída pelo crítico norte-americano Harold Bloom entre os 100 maiores gênios da literatura mundial, Lady Murasaki já foi comparada a Jane Austen, Virginia Woolf e Marcel Proust.

Estima-se que Lady Murasaki nasceu por volta do ano 973 ou 978 e faleceu entre 1.014 e 1.031. Romancista, poeta e dama da corte imperial durante o período Heian do Japão, é a autora do Genji Monogatari (“A História de Genji” ou “O Conto de Genji ), escrito aproximadamente entre o”s anos 1.000 e 1.012.

Murasaki Shikibu não era seu nome real. Este é desconhecido, embora se acredite que seja Fujiwara Takako (Kyōshi), um nome mencionado no Diário da Corte de 1007 como uma das damas. Na era Heian, o uso de nomes não seguia o padrão moderno. A dama da corte, era conhecida pelo título de seu cargo, se houvesse, ou assumia um nome referente à posição ou título de um parente do sexo masculino. “Shikibu” não é um sobrenome, mas refere-se a Shikibu-shō, o Ministério de Cerimoniais onde o pai da escritora servia. “Murasaki”, é um nome adicional possivelmente derivado da cor violeta de seu kimono.

As mulheres da corte japonesa, embora desfrutassem de muitos privilégios, estavam sujeitas a uma série de regras. Viviam isoladas do mundo externo e não tinham permissão para aprender o chnês, então a língua culta, ou ter acesso à literatura sofisticada. Estavam autorizadas a falar apenas o Kanabungaku, um dialeto do qual se expurgou as influências das  ricas palavras chinesas.

Essa primeira barreira, Murasaki Shikibu venceu com louvor. Filha de um erudito, desde cedo demonstrou brilhante inteligência e uma forte aptidão para a língua culta. Lia fluentemente os textos chineses. Ela mesma narra em seus Diários o que ocorreu: “Quando meu irmão era criança e estava aprendendo os clássicos chineses, eu tinha o hábito de ouvi-lo e tornei-me extraordinariamente proficiente na compreensão das passagens que ele achava muito difíceis de entender e memorizar. Papai, um homem muito culto, sempre lamentava o fato: “Que destino o meu! Que pena ela não ter nascido homem!” Gradualmente percebi que as pessoas diziam: “Já é bastante ruim quando um homem ostenta seu conhecimento de chinês; ela nada conseguirá”, e desde então tenho evitado escrever até os caracteres [chineses] mais simples. Minha caligrafia é terrível”.

O segundo grande desafio veio após a consagração do Genji Monogatari. Lady Murasaki escrevia ficção, um estilo de literatura que, na época, era desprezado. Embora ficção e escrito por uma mulher, o romance se impôs pela extrema qualidade e tornou-se um clássico da literatura mundial.

Estima-se que Lady Murasaki tenha se casado aos 26 anos, um pouco tardiamente para os padrões da era Heian, com um rico parente distante, muito mais velho, Fujiwara Nobutaka, que, assim como o pai dela, servia no “Shikibu-shō” (Cerimonial).  Com ele, a escritora teve sua única filha (a poetisa Daini no Sanmi).

O casamento de Murasaki com Nobutaka parecia ser feliz. Os poemas dela nesse período transmitem uma doce felicidade, uma alegria que não durou por causa da peste que devastou o Japão entre o inverno de 1000 e o verão de 1001. Em 25 de abril de 1001, Nobutaka morreu, aos 50 anos. A escritora registrou em seu diário: “No palácio também a primavera traz luto; O próprio céu está escuro, tingido de preto com a tristeza de tudo.”

Acredita-se que ela começou a escrever o Genji Monogatari após ter ficado viúva. Em 1005, Lady Murasaki foi convidada a servir como uma das damas de companhia da Imperatriz Fujiwara no Shoshi, provavelmente por causa de sua reputação como escritora e intelectual.

No seu diário está registrada a perversidade dos que a atacavam e a forma como a viam. Referindo-se a si mesma, ela escreveu: “Ninguém gostava dela. Todos diziam que ela era pretensiosa, desajeitada, difícil de abordar, irritadiça, apaixonada demais por suas histórias, arrogante, rabugenta e desdenhosa; mas quando você a conhece, ela é estranhamente mansa, uma pessoa completamente diferente!”. O tempo veio em socorro da fundadora do romance literário.  Mas antes disso, ela mesma se defendeu: “Há momentos em que sou forçada a sentar-me com eles e, nessas ocasiões, simplesmente ignoro as suas críticas mesquinhas, não porque eu seja tímida, mas porque considero que são inúteis tais críticas. Como resultado, eles agora me consideram uma idiota. É inútil conversar com quem não entende e é incômodo conversar com quem critica por sentimento de superioridade”.

Após tornar-se viúva, Lady Murasaki aspirava tornar-se monja budista.  Seu Diário e seus poemas estão repletos de referências ao desejo de evitar evitar relacionamentos românticos e deixar a corte, para viver dedicada à vida espiritual. “Não me importo muito com o que os outros dizem. Decidi confiar em Amitabha [Buda] e mergulhar na leitura dos sutras.” No entanto, acrescentou ela, hesitou em dar os passos finais.

A sabedoria de Lady Murasaki. Conheça frases do Diário e do romance

“Pessoas unilaterais são problemáticas. Poucas são talentosas em muitas artes e a maioria se apega estritamente à sua própria opinião”.

“Nenhuma arte ou aprendizagem deve ser praticada sem entusiasmo. Qualquer arte que valha a pena aprender recompensará generosamente, de alguma forma, o esforço feito para estudá-la”.

“As coisas reais na escuridão não parecem mais reais que os sonhos.”

“Incessantes como as vozes intermináveis dos grilos, durante toda a noite até o amanhecer minhas lágrimas correm”.

“Se ao menos meus apetites fossem mais mundanos, eu poderia encontrar mais alegria na vida, talvez recuperar um pouco da juventude e enfrentar este mundo mortal com equanimidade”.

“[A arte do romance] não consiste simplesmente em o autor contar uma história sobre as aventuras de outra pessoa. Pelo contrário, isso acontece porque a própria experiência do contador de histórias com os homens e as coisas, seja para o bem ou para o mal – não apenas o que ele passou por si mesmo, mas mesmo eventos que ele apenas testemunhou ou dos quais lhe contaram – o levou a uma emoção tão apaixonada que não consegue mais mantê-la fechado em seu coração”.

“Nunca pensei que houvesse muito a ser dito a favor de alguém se arrastar pela vida depois de todos os amigos terem morrido”.

“Não se deve ser cruel com uma mulher apenas por causa de sua simplicidade, assim como não se deve ter o direito de tomar liberdades com ela simplesmente porque é bonita”.

“Não pense que vim em busca de flores comuns; mas sim lamentar a perda de alguém cujo perfume desapareceu do ar”.

“Será que eles realmente me consideram uma coisa tão tola? eu me pergunto. Mas eu sou o que sou”.

“Já há alguns anos que eu existia dia após dia de forma apática, prestando atenção às flores, aos pássaros cantando, à forma como o céu muda a cada estação, à lua, à geada e à neve, fazendo pouco mais do que registrar a passagem do tempo. Como tudo acabaria? A ideia da minha solidão contínua era insuportável e, no entanto, consegui trocar cartas solidárias com pessoas de pensamento semelhante – algumas contactadas através de ligações bastante tênues – que discutiam comigo as minhas histórias insignificantes e outros assuntos; mas eu estava apenas me divertindo com ficções, encontrando consolo para minha ociosidade em palavras tolas. Consciente da minha própria insignificância, consegui pelo menos por enquanto evitar qualquer coisa que pudesse ser considerada vergonhosa ou imprópria; no entanto, aqui estava eu, saboreando plenamente a amargura da vida”.

O Genji Monogatari

“O propósito do Genji Monogatari pode ser comparado ao homem que, amando a flor de lótus, deve coletar e armazenar água lamacenta e suja para plantar e cultivar a flor. A lama impura dos casos amorosos ilícitos descritos no romance não existe com o propósito de ser admirada, mas com o propósito de nutrir a flor da consciência sobre a tristeza da existência humana”.

(Motoori Norinaga)

Escrito há mil anos, o épico japonês “A história de Genji” é considerado o primeiro romance do mundo. A obra monumental (a mais recente tradução para o inglês tem 1.300 páginas) narra a vida e os romances do príncipe Hikaru Genji. A história chegou ao ocidente em 1925, traduzida para o inglês por Arthur Waley e resenhada por Virginia Woolf para a Vogue britânica.

Com um enredo longo e complexo, requer atenção do leitor devido ao número excessivo de personagens. Genji, o herói do conto, é filho do imperador e de sua concubina favorita. Um sábio coreano prevê um futuro brilhante para Genji, mas sua mãe sofre por causa dos ciúmes dos rivais. Ela adoece e morre. O imperador fica obcecado pela falecida, mas acaba encontrando outra concubina, que o lembra de seu antigo amor.

Como Genji não tem apoio na corte, o imperador o torna um plebeu, designando-o como membro do clã não-real Genji. O filho mais velho do imperador e Lady Kokiden é nomeado príncipe herdeiro.

Genji se torna um jovem extraordinariamente bonito e talentoso, admirado por todos, mas temido por Lady Kokiden e sua família. A primeira parte do romance narra suas façanhas amorosas com muitas mulheres, sua amizade com To no Chujo e casamento arranjado com a irmã deste, Aoi, além do nascimento de seu filho e seu relacionamento inicial com a jovem Murasaki.

O imperador morre e é sucedido pelo filho de Lady Kokiden. As aventuras amorosas de Genji causam escândalo na corte e ele é forçado a deixar a capital e viver vários anos exilado.

Genji retorna à capital e o imperador abdica em favor do filho de Fujitsubo (e secretamente de Genji). A posição de Genji na corte é restaurada e Lady Akashi tem uma menina. Genji se estabelece com Murasaki em sua Mansão. A influência de Genji na corte aumenta e ele é persuadido a se casar com a Terceira Princesa, que dá à luz um filho e logo depois se torna monja budista.

Nos últimos capítulos, após a morte de Genji, a ação muda para a região montanhosa selvagem de Uji e as aventuras do filho e neto do príncipe, Kaoru e Niou, que são amigos e rivais. Alguns estudiosos acreditam que a filha de Lady Murasaki escreveu os capítulos finais.