Acordou atordoada. Mal dormira na noite anterior, os sonhos povoados pela imagem dele.  Uma aurora de róseos dedos abria as cortinas da noite quando ela saiu, pisando suavemente para a ninguém acordar. Em seu caminho evitou esmagar as flores recém-nascidas que pontilhavam de branco o verde-escuro da grama ainda molhada de orvalho.

Carregava seus potes, embalados com cuidado. Bálsamos, óleos, ervas aromáticas. Ela haveria de cuidar do que dele restava – pela primeira e única vez. Ao entardecer o vira morto, momento exato em que uma agulha – dessas compridas e de fina ponta – se cravou lentamente no seu peito. A ausência dele abriu-lhe um abismo. Em silêncio, pusera-se a observá-lo. Demorara o olhar em cada detalhe das quase imperceptíveis rugas no rosto, das mãos bonitas e dos cabelos escuros, fios delicados que ela adorava tocar com a ponta dos dedos quando ele estava distraído.

Agora, pelo caminho, rememorava os dias em que seu coração se fez em festa. Ele chegara com um amor novo, inesperado e único – e ela jamais foi a mesma. Sem muito esforço, esmagou uns demônios que moravam dentro dela e apontou, uma a uma, as jóias que fazia questão de ocultar nas dobras do vestido. Quantas vezes indagou a si mesma sobre a natureza daquele  sentimento que se instalou devagar e agora a tomava inteira, fazendo brotar estrelas nos seus olhos quando o via?

Era impossível não notá-lo. Cuidava de corpos e de almas com a mesma habilidade. Enfermeiro de flor, de bicho, de gente. Prostitutas, adúlteras e todos os desprotegidos do mundo recebiam dele compreensão e acolhimento, sem julgamentos sumários, sem risos de escárnio. Percorria longos caminhos, meio sozinho (mesmo quando estava acompanhado de outros) e guardava o chicote da língua para os hipócritas e os arrogantes.  Zombava deles com gosto, provocando-os até o limite. Ela costumava acompanhar tais cenas com prazer, mal contendo o riso.

Um arrepio de frio a fez abrigar-se, apertando a roupa contra o corpo. Rememorou todas as vezes que se viram e cada palavra que ele disse, com aquele jeito simples mas direto, capaz de chocar os incautos, fazer inimigos, desarmar os adversários. Estes jamais o conheceram de fato, mas alguns de seus amigos se dispuseram a mergulhar fundo o suficiente para ver sua real natureza. E o amaram.

Ele também a amou, bem sabia. De vez em quando notava que os olhos dele ficavam fixos nos seus por alguns segundos breves, quando um universo inteiro surgia entre eles. Abismavam-se e, embora seus lábios jamais tivessem se tocado, partilhavam as mesmas palavras, o mesmo pensamento, a mesma rota. Sonhavam juntos, enquanto construíam mundos novos onde a mensagem era um sonho quase utópico, delicado e bom, um flerte com a fantasia. Com ele, plantara uma flor de amor divina, cercada dos espinhos da realidade.

Ela gostava de ouvi-lo falar. Uma voz profunda e doce que rapidamente se convertia em enérgica se a ocasião exigisse. Para estar com ele, abandonou coisas muito preciosas de outros tempos. Com ele aprendeu a ler em par o livro da natureza, apurando os olhos para a poética delicadeza que se ocultava sob nuvens, formatos exóticos de folhas, poças de água estagnada ou as patas de minúsculas aranhas em teias quase invisíveis.

Tanto amor assim não poderia deixar de ser notado. E de despertar ciúmes. Os dois percebiam, mas nada diziam, compreendendo a limitação dos amigos. Ela mesma sentia que o queria só para si, para estarem juntos por muitos anos, bebendo cada palavra da boca um do outro. Não teve coragem, ele era precioso demais para ser isolado. Conformou-se. Já era bastante grandioso saber que partilhavam algo secreto, que só eles conheciam. Um universo de palavras não pronunciadas, de sonhos compartilhados, de amor que não cabia em si e não fora feito para a terra.

O disco do sol surgiu no horizonte no exato momento em que ela avistou o campo dos mortos. Ele estaria lá, quieto na sua solidão, e ela lhe lavaria os pés. Certamente estariam com pequenas feridas das longas caminhadas pelo mato e pela terra vermelha. Não importava nada disso. Talvez ela lhe beijasse as feridas ou as cobrisse de essências raras. Talvez lhe enxugasse os pés com a seda de seus cabelos, vendo os fios deslizarem entre os dedos dele.  Talvez lhe percorresse o desenho da curva dos lábios, pensativa. Talvez lhe beijasse o rosto, colando a boca na pele fria. Despedida de dor lancinante, de saudade crua.

Ensimesmada, não viu o jardineiro a capinar o mato alto. Ele a avistou e lhe sorriu divertido, mas ela estava apressada e seu coração vagava atormentado: nem o notou.

Logo estava diante do túmulo. Inspirou profundamente e fechou os olhos por alguns segundos. Ao abri-los, notou que nada mais restava ali. A ausência dele se materializou no lugar abandonado, árido. Onde estaria? Certamente vagava agora por outros mundos, a dizer coisas que encantariam os homens. Quis chorar, mas em meio àquela dor sem nome, percebeu que um desses mundos, naquele instante, se agitava, quase incontrolável, dentro do peito dela. Algo novo surgia.

Com calma e segurança, retirou a agulha cravada e a deixou cair na grama úmida. Olhou para os potes que carregava. Inúteis. Depositou-os no chão. O homem amado não era mais ausência a ser lamentada. Vivia agora, na casa que lhe fizera, construída entre o corpo e o espírito dela. Ergueu-se e sorriu, o sol lhe iluminando os cabelos naquela manhã gloriosa.

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Pintura: Lamentation over Dead Christ. Sandro Botticelli, 1490-1492. Alte Pinakothek, Munich.