Entardecia em 25 de julho de 1890. Nós dois, escondidos naquele beco, tínhamos apenas 20 anos e aguardávamos pela chegada do louco da cidade. Sob os nossos pés, a terra da cidadezinha francesa.  O sol ainda estava alto, pois era verão, quando ele surgiu na rua estreita, curvado sob o peso das coisas que carregava. As roupas muito gastas, os sapatos já deformados pelas caminhadas.  Parecia triste, com um ar cansado. Desviou-se das pedras que alguns moleques lhe atiraram. Você pôs os garotos para correr.

Entrou no albergue e pediu uma sopa. Comia entre a voracidade e a exaustão, com o caldo escorrendo pela barba. Limpou o excesso com as costas das mãos e pudemos ver as unhas sujas de tinta e de terra.

Nós nos entreolhamos e você me empurrou levemente: “Vai. Agora”.

Lembro de haver me aproximado com as mãos suadas e a boca seca.  Sentei diante dele, com calma, e olhei diretamente para o louco. Rugas fundas num rosto de pouco mais de trinta anos, alguns fios de cabelo grudados na testa ainda molhada de suor. Ele ergueu a cabeça, curioso, e eu me perdi naqueles olhos verdes de mar e de paixão mal contida.  Sorri, sorrimos. Sustentei o olhar dele por longos minutos. Ele franziu a testa, intrigado. Catei toda a doçura possível e coloquei na expressão dos meus olhos. Ele relaxou.

Estendi as mãos e toquei as dele. Mãos grandes e bonitas, com veias azuladas sob a pele muito clara. Inspirei e propus:

– Temos observado você quando pinta. São tão belas as suas flores, vasos, estrelas, raízes e árvores. Tenho aqui 2 mil francos. Dou tudo a você se passar dois dias passeando comigo e com o meu amigo aqui. Iremos a um restaurante, conversaremos sobre arte e depois te deixaremos em casa. Que tal?

Ficou em silêncio. Tentou sorrir, mas fez apenas uma careta amarga.

– Eu? Eu sou o que fala sozinho, o que se fere no meio dos surtos, o que nunca tem dinheiro, o que grita de ódio e de medo. Eu sou o que casou com a prostituta e acreditou quando ela disse que estava grávida e eu era o pai da criança. Eu sou o que não parou em qualquer emprego e o que põe a mão no fogo para que uma mulher aceite casar comigo (e mesmo assim ela recusa). Eu sou o que não toma banho, o que sai em caminhada pelo mundo, pois andar alivia as minhas dores. Eu sou o que bebe até cair, o que não tem amigos, o que não conseguiu ser pastor de almas. Eu sou o que vê miragens e as coloca nas telas, mas todos dizem que não sei pintar, que não aprendi sobre perspectiva e cor, que minhas pinceladas são grossas e feias e minha mente tudo distorce. Eu? Eu sou o fracasso vivo, a vergonha da família, aquele que os amigos abandonam. Não, vocês não me querem.

Nós o ouvimos, de mãos dadas. Você rompeu o silêncio e disse, com esse seu jeito objetivo de falar as coisas.

– É você mesmo que nós queremos. Só tenho uma exigência, amigo: você vai tomar um banho. Não dá para andar com quem cheira mal feito gambá estressado. Acrescento mais 100 francos se você trocar essa roupa por algo menos suado.

Ele riu.  Desceu meia hora depois, supostamente de banho tomado.

Você coçou a cabeça e cochichou no meu ouvido:

– Esse aí desaprendeu a arte do banho, sinto dizer.

– Shhh, fica quieto.

Rimos como sempre. No Café de La Nuit, pedimos comida farta e vinho mediano enquanto falávamos de todo mundo. Começamos pela pintura acadêmica, discutimos os impressionistas, as cores e ousadias de Gauguin, de Corot, de Pissarro, de Monet e o desassombro de Manet. Invejosamente concluímos que Renoir tinha igual talento como gestor de carreiras e pintor.

Fizemos um brinde (com absinto) ao Lautrec. Não resisti a dizer que achava uma injustiça da vida a doença dele. O louco riu: “Ele vive e se diverte mais do que vocês dois juntos. As meninas de Montmartre podem testemunhar”.

Após uma discussão acalorada sobre qual a melhor tragédia de Shakespeare, tomei coragem e  disse a ele o quanto amava Jean-François Millet. A esmeralda do olho dele faiscou: “Sabe, uma vez, quando entrei no Hôtel Drouot, onde estavam expostos desenhos de Millet, senti algo parecido com: ‘Tire os sapatos dos seus pés, pois o lugar em que você está é terra sagrada’. Sim, o texto da Bíblia veio inteiro na minha cabeça perante o trabalho de Millet”. Não resisti e o abracei forte (tenho mania de abraçar pessoas que dizem coisas belas e inesperadas, mas isto você já sabe).

Estávamos bastante bêbados a esta altura e a fada verde do absinto nos fez enxergar duendes, bruxas, donzelas e vilões de Shakespeare entrando no salão. Ele berrava que era Oberon e que buscava a sua Titania. Puck saltava entre as mesas, Prospero fazia mágicas e nós tentávamos esbofetear Iago ou avisar Desdêmona. Você tentou abraçar Ophelia, mas ela escapou na direção das águas. De longe ouvimos que cantava enquanto entrava no regato.

A noite era longa e a bebida forte. Gargalhamos até as lágrimas e depois choramos abraçados, unidos por um sentimento comum: o de nos sentirmos estranhos neste mundo inóspito. Adormecemos sobre a mesa do café e fomos expulsos perto da hora do almoço.

Corremos até o rio e mergulhamos de roupa e tudo nas águas tranquilas. Depois, nos secamos na grama, com capim entre os dentes, espiando as lavadeiras a esfregar roupas nas pedras. O louco estava pronto para filosofar sobre a solidão do artista: “Vejam, se alguém tem um grande fogo em sua alma, ninguém chega para se aquecer nele. Os transeuntes não vêem nada além de um pouco de fumaça no alto da chaminé e depois seguem seu caminho”.

Dissemos a ele que nós, os amigos, reconhecemos o fogo criativo na alma um do outro. Ele sorriu, condescendente e nos deu conselhos: “Isso é raro. Para tê-lo é preciso amar de um jeito íntimo,  elevado e sério, com força, com inteligência”. Enquanto ele falava, pensei na nossa amizade como se fosse uma obra de arte: o rascunho se tornou um esboço e este se tornou pintura. Das mais bonitas.

Passamos horas – agora sóbrios – falando a sério e com emoção sobre a beleza transcendente da escrita de Shakespeare. Nós três amávamos o velho bardo e ele volta e meia voltava à pauta. O louco dizia que ninguém é tão misterioso quanto o mestre dos dramaturgos e que sua linguagem é como um pincel tremendo de excitação e êxtase. Ouvimos quietos, pensando na ignorância do mundo que desconhece tais belezas. E o louco, que conhecia a fundo as almas, acrescentou docemente que, para entender um artista como Shakespeare, era preciso aprender a ler (de verdade, bebendo palavras até que elas inchem na boca e no espírito), assim como se deve aprender a ver e a viver. Louco encharcado de lucidez, esse.

Eu disse no teu ouvido: o velho poeta inglês é mesmo um assombro. Mais de 400 anos depois e ainda traduzindo as emoções que nos devoram e o sentimento que nos eleva. É tanto amor por essas histórias que dá vontade de beijar os livros. Você gostou da imagem, mas me advertiu que preciso parar de tentar abraçar e beijar objetos, até porque tenho alergia a quase tudo.

À noite, cansados e felizes, voltamos para o albergue. No quarto despimos o louco e decidimos lhe dar um banho. Na tina de água morna, ele ficou mergulhado. Esfreguei os cabelos de fios vermelhos e dourados. Depois, no chão do quarto, abracei-o com quem nina um filho. Pousei a mão direita sobre os ossos que apontavam sob a pele cheia de sardas e beijei seus olhos fechados, pesados de sono. Várias mechas do meu cabelo escuro caíram no rosto dele quando o abracei. Ele se aconchegou, tão frágil, tão doce. Você cantou algo bonito e ele perguntou em que língua era a canção. Português, uma língua-flor, nascida no Lácio, transplantada para terras onde há brisa de mar e areia clara, onde há sol, onde tudo nasce fácil, onde se encontra amigos para amar de um jeito impossível e único.

Ele sorriu e antes de adormecer nos contou que muitas vezes ganhou sua própria casca de pão, mas que, outras vezes, um amigo a deu, como ocorria agora. Admitiu ser verdade que havia perdido a confiança de tanta gente, que suas finanças estavam em um estado lastimável, que o futuro parecia bastante sombrio. “É verdade que eu poderia ter feito melhor, é verdade que eu perdi tempo quando se trata de ganhar a vida, é verdade que meus estudos estão em um estado lamentável e terrível, e que minhas necessidades são maiores, infinitamente maiores do que meus recursos. Mas eu pinto e ponho nas telas o meu sangue, a minha alma, a seiva da minha existência. Isso é não fazer nada, como me acusam?”.

Parecia tão perdido, tão menino, que juntos o embalamos, lhe dizendo palavras de amor, sussurrando que os grandes gênios por vezes são invisíveis neste mundo de dinheiros e vaidades; que a arte por vezes consome, subjuga e enlaça a gente em teias tão doces quanto fortes. Uma sereia que nos devora e redime.

Ele adormeceu e da porta, antes de sair, olhamos para seu rosto pela última vez. Parecia sereno. Quem diria que no dia seguinte ele surgiria com uma bala no estômago, arrastando-se ensanguentado pela rua, tropeçando nos canteiros?  O tiro ecoaria pelos campos de trigo, fazendo levantar o voo dos corvos. Ele se encolheria no colo do irmão, o único lugar do mundo onde gostaria de estar, enquanto a tesoura de alguma deusa cortaria o fio de sua curta vida.

Perto da janela, as pétalas dos girassóis se desprenderiam e cairiam, gotas de lágrimas douradas, sobre o meu coração e o teu.

Sim, essa é a tua carta, Cláudio Chinaski, a de número 4.

Brasília, 24 de março de 2019.

Com todo o meu carinho,

Soninha

P.S. Te dou esse quadro de Vincent van Gogh. Não preciso explicar.

P.S. 2. Na próxima viagem, vamos visitar Will e suas histórias de amor impossível, lutas insanas pelo poder, a linda Ophelia afogada, o mouro destruído por um falso amigo, terríveis naufrágios, mercadores, megeras, o amor de Benedict e Beatriz recitado pela Emma Thompson?

P.S 3. Te dou esse Vivaldi. Quando reler esta carta (você sempre lê mais de uma vez), faça-o ouvindo esta lindeza: https://www.youtube.com/watch?v=kkJC8p48g6g

Links para as nossas cartas anteriores

Uma carta para Sonia, 1https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2357870504245938&id=100000690339463

Uma carta para Claudio, 1: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2504998216182088&id=100000158018771

Uma carta para Sonia, 2
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Uma carta para Claudio, 2
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Uma Carta para Sonia, 3
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Uma Carta para Claudio, 3 

Uma Carta para Sonia, 4