Há um tempo em que a flor se encolhe, a cor se apaga e uma sombra estrangeira se ergue entre o olho e o sol. Ela veio, sombra indesejada, com seus dedos nodosos, para arrancar de dentro do peito que arfava, na solidão de uma UTI, a alma de minha mãe. Três dias depois, decidi superar a dor e manter a viagem à Índia cuidadosamente planejada um ano antes.
Em vez da excitação alegre, a viagem veio envolvida em luto – visitante inesperado que me roubou as doçuras de um sonho acalentado há tanto tempo. Talvez por isso os gregos acreditassem que, diante de uma felicidade exuberante no humano coração, os deuses invejosos pesavam a mão contra os felizes da Terra. Foi assim comigo – em parte.
Só em parte, porque a Índia é bálsamo que cura as almas. Um mundo extraordinário onde caem por terra os planos cuidadosamente feitos, as expectativas e desejos. Sua diversidade é tal que força o visitante a esquecer-se de si mesmo, de suas dores e amores, e mergulhar na descoberta do universo novo que se abre diante dos olhos deslumbrados. E foi assim que a Índia me abraçou após a morte de minha mãe.
Quarenta dias depois, deixei o País de Gandhi. Na mala trazia quinquilharias; no coração, a paz. Este diário de viagem é a mistura de guia turístico, dicionário e fonte de informação sobre a Índia. Mas é, sobretudo, a crônica de um viajante sem pressa. Divirta-se!
Advertência aos viajantes sonhadores
Não imagine que chegará na Índia e descobrirá, num passe de mágica, que você era indiano numa vida anterior. Deixe de lado essas fantasias que, nem com toda a boa vontade do mundo, você poderá comprovar. Se ficar ensimesmado elucubrando sobre a Índia e sua vida como possível inspirador(a) do Taj Mahal, perderá a melhor parte da viagem, que é viver (de verdade) na Índia.
Assim, em vez de devaneios, aí vai meu primeiro conselho: abra os olhos,a boca, os ouvidos. E vá em frente na feliz descoberta de sabores, aromas e cores da Índia. Coma de tudo (inclusive na rua), tussa e chore com a pimenta, experimente comprar coisas nos mercados, pechinche com vontade e ande pelas feiras e ruelas.
Ah, é lógico que para os ocidentais o padrão indiano de ruas é um horror: em geral há muitas gambiarras a título de instalações elétricas e bastante sujeira – mas a Índia guarda um ar de séculos passados. Veja tudo isso antes de sair reclamando.
Chegada em Delhi Depois de vinte e três horas de viagem, o avião da British Airways desceu suavemente no aeroporto Indira Gandhi, em Nova Delhi. Duas horas da madrugada. Arregalei os olhos para apanhar tudo de uma vez: saris, turbantes, dhotis e kurtas desfilavam em meio às raras roupas ocidentais.
Eu estava exultante, aquilo era o máximo! Não haviam se passado trinta minutos e a bolha explodiu. Tomei meu primeiro choque de realidade: minhas malas tinha sido extraviadas. Diante do posto da British, um caos. Minha primeira descoberta: fila indiana não é típica da Índia. Quem gosta de fila é brasileiro; indiano gosta de empurra-empurra. E de furar fila.
A multidão de sem-malas se espremia, berrava e agitava papéis diante de uma funcionária impassível. A moça atendia, sem se alterar, dezenas de pessoas que reclamavam, pediam, solicitavam, imploravam e preenchiam formulários. Além de não haver fila, qualquer homem era sempre prioritário no atendimento. Engoli a chateação e despachei meu marido Alexandre (surpreendentemente calmíssimo, quase irônico) para resolver o assunto.
Uns quarenta minutos depois, a moça explicou que minhas malas ainda estavam… no Brasil! O chão se abriu sob os meus pés quando ela acrescentou que a expectativa era chegassem em … hum… bem… cinco dias! Estou literalmente do outro lado do planeta e sem roupa para trocar? Expliquei que iríamos deixar Delhi dois dias depois. Ela limitou-se a um “I am sorry, madam” e estendeu um formulário que parecia me dizer: seja bem vinda à tão falada burocracia indiana. No caso anglo-indiana.
Toda a tensão de acompanhar minha mãe numa UTI por quinze dias até a morte dela explodiram num ódio ancestral. Meu mau humor atingiu picos nunca antes registrados. Em vão: a moça afivelou no rosto a máscara do eficiente indiferente e ficou por isso mesmo. Lembrei da frase fatal do professor de Yoga, meses antes: “Quando a gente chega na Índia, caem por terra as nossas defesas. Há algo naquele solo que faz eclodir o que há de mais escuro em nós”. Dito e feito. Lá estava eu rosnando para o mundo, pensando em como iria viver quase uma semana sem nada além de uma camisa, um jeans e algumas peças íntimas (Dica 1: jamais viaje sem um socorro imediato na bolsa de mão, que é o que sempre faço).
Diante da vaga lembrança de uma palavra básica no vocabulário oriental – desapego – eu quis, literalmente, esganar alguém. Suspirei, engolindo a raiva. Saímos do aeroporto afinal. E começou a saga do táxi. Com a demora das malas, o motorista enviado pelo hotel havia debandado. Alex procurou aqueles conhecidos e bem arrumados estandes, encontráveis em qualquer aeroporto, onde se paga por um táxi seguro e limpo. Não na Índia. Achou uma casinhola feiosa, poeirenta e estranha, que não recebia cartão de crédito – só dinheiro vivo. Agradeci a todos os deuses do panteão indiano por ter tido a ideia de trocar, no aeroporto de Londres, meus dólares por rúpias. (Dica 2: não entre na Índia sem rúpias. Não achei rúpias no Banco do Brasil e nem em casas de câmbio de Brasília. Assim, se não achar as rúpias, compre dólares e euros e aproveite a parada em Londres, Paris ou Dubai, etc., para trocar o dinheiro). Mal sabia eu que as coisas espantosas só estavam começando…
O táxi
Entramos no táxi: antigo, sujinho, sem cinto de segurança. O motorista era bem jovem e não falava inglês. Alex passou vários minutos tentando explicar a ele o nome do hotel: Blue Saphire. Algo semelhante a “bru-sarufaru” era o mais próximo que o taxista conseguia pronunciar. Até hoje estou sem saber como os dois se entenderam, mas o certo é que o táxi seguiu.
Pelo caminho, um cheiro de poeira, um perfume de terra foi tomando minhas narinas. Estava frio, havia muita neblina na madrugada e nada do motorista encontrar o hotel. O táxi se afastava das ruas mais amplas e ia entrando em umas vielas que, aqui no Brasil, receberiam rapidamente o título de “lugar sinistro”.
Eu – mesmo após o estresse do aeroporto – ri da situação absurda: estávamos num subúrbio esquisito de Delhi, de madrugada, com um motorista perdido e que não falava inglês. Como sempre ocorre quando estamos juntos em alguma aventura, Alex apertou minha mão e rimos juntos. Quase 4h30 da madrugada e o motorista estava pedindo informações ao piloto de um tuk-tuk, que surgira embrulhado até os olhos em um cobertor sujo e sacudia a cabeça negativamente.
Seguiu o táxi. Alex estava preocupado com a aparência da vizinhança e eu mal escondia uma incontrolável vontade de rir. Não foi sem alguma inquietação que vimos o táxi entrar em um bairro de aspecto ainda mais assustador. Com os olhos e o coração acostumados às favelas brasileiras, associávamos ao que víamos à possibilidade de violência, assalto, sequestro-relâmpago.
Alex, que é muito mais prático que eu, ficou nervoso. Eu, não. Estar na Índia era algo maior do que qualquer temor. Por alguma razão misteriosa e absolutamente desprovida de sentido, eu me sentia em casa, segura e feliz.
Finalmente achamos o hotel. Cinco da manhã, cansadíssimos. No check-in, o gerente sonolento e mal-humorado pediu nosso passaporte (Dica 3: leve cópias do passaporte, pois os indianos exigem cópias e, se for à noite, reterão seu passaporte até de manhã). Alex nem dormiu direito, tal a preocupação…
O Hotel
A entrada no quarto despertou em nós dois uma crise de riso. Poeira, poeira, poeira. Lençóis com jeito de usados ou guardados há muito tempo, banheiro encardido. Meu lado mulherzinha se agitou: não quero encostar em n-a-d-a! Em vão: depois de 24 horas de voo e mais dez horas em aeroportos, dormi feito pedra – enrolada no cobertor poeirento.
Lá pelas 8 da manhã acordamos. Um corvo grasnava na janela do quarto. Abri as janelas e vi a rua: dia nublado, uma mulher varria o chão com uma vassoura pequena, tipo piaçava (que acabaríamos por ver em vários lugares da Índia). Diante de nossa janela, uma padaria árabe vendia pães feitos na hora. Fiquei durante alguns minutos vendo os homens prepararem a massa super fina e colocarem no forno subterrâneo – uma espécie de buraco. Descemos, excitadíssimos só de pensar em ver tudo à luz do sol.
O hall do hotel era bem colorido. Nas paredes a foto de um guru e uma estátua de Ganesha (o deus com cabeça de elefante) estavam sendo cuidadosamente limpas. Logo, os funcionários da casa colocaram incensos que perfumaram todo o ambiente.

E então veio uma das melhores partes do dia: o café da manhã. Pedimos masala chai e aloo paratha, uma panqueca de batata e trigo, deliciosa. Tudo isso acompanhado de chutney e pickles ultra-apimentados (Dica 4: para tirar o ardor da pimenta: deixe para o final o iogurte que acompanha os pratos. O ardor some como mágica). Não deixamos nem migalha no prato.
Ao terminar, Alex resolveu pôr as xícaras e pratos juntos. Foi interrompido por um dos garçons, quase ofendido: “Não, senhor, por favor: aqui o Sr. é Deus! Eu trabalho, o Sr. não”. Meio constrangido, Alex largou os pratos imediatamente. Foi nosso primeiro contato com a hospitalidade de que tanto se orgulham os indianos.
Que linda crônica, Sônia. Conseguiu me levar pra lá. Parabéns!
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ÉExatamente como eu comentei no FB, é um choque chegar na Índia. Eu que fui sozinha , em Délhi era um custo pegar táxi na rua, nenhum parava. Tive que me conformar com os tuk tuk que corriam como loucos
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