Bhubaneswar nos surpreendeu de várias formas. Uma Índia mais “arrumada” (para os padrões ocidentais) e um hotel realmente limpo – o Ginger, do Grupo Tata. Vou fazer uma pausa na narrativa para falar do conglomerado Tata, que é onipresente na Índia. Duvida? Veja isso aqui (em inglês) ou isso aqui (em português) e deixe seu queixo despencar. Mr. Tata está comandando tudo: produção de remédios e carros, aço, energia, companhias aéreas, comida – e o que mais a sua imaginação autorizar.
O Ginger é um hotel de padrão ocidental, serviço sem luxo, porém competente, com Internet provida pelo grupo Tata. Alex puxou conversa com o faxineiro, que nos deu ótimas informações e quase desmaiou quando eu o cumprimentei e estendi a mão para ele. Ele nem sabia cumprimentar apertando a mão de uma pessoa – ainda mais mulher. Ainda mais em Orissa. Ficou meio que acariciando a minha mão, curtindo o momento. Não esqueça, na Índia as pessoas não ficam se tocando. E o contato entre homens e mulheres em público é raríssimo!
O primeiro dia foi de matar de rir. Alex participou do Congresso de Engenharia, apresentou seu artigo e fomos ao zoológico, coisa que na Índia se torna uma experiência única. O orangotango chamava-se Vini e adorava turistas. Sério. O nosso guia (cujo nome era Vishnu) informou sobre a preferência do animal pelos visitantes. Duvidamos, claro. Mas dito e feito: havia dúzias de indianos e o macaco totalmente indiferente a eles. Bastou a gente chegar para ele descer da árvore e vir, todo serelepe. Era enorme, castanho, bem velhinho e ator de primeira. Fazia que não ligava muito para nós, virava o rosto, mas, quando nos distraíamos, ele ficava mostrando a ponta da língua e fazendo gracinhas. A gente chamava “Viniiiiii” e ele reagia, ficava nos buscando e imitando as caretas que fazíamos. Nós e todo mundo no zoo ríamos sem parar. Aliás, nós dois éramos mais uma atração no zoo. O pessoal parava de olhar para os bichos a fim de olhar os dois únicos ocidentais naquele lugar.
Era terça-feira, dia consagrado a Hanuman, o macaco amigo do deus Rama na epopéia Ramayana. Alex, que adora Hanuman, foi o escolhido do dia: um macaco preto o atacou. O tal macaco, que era da mesma raça do Hanuman, de repente saiu de um matagal, berrando feito louco, pegou no braco do Alex e mostrou os dentes. Nosso guia entrou em cena, deu uma corrida no macaco e o perseguiu até a árvore onde o bicho se refugiou. A cena de pastelão se formou ali mesmo: o macaco (que na verdade era líder de uma gangue de símios assaltantes) guinchava encurralado na árvore, com o guia tentando acertá-lo com um galho enquanto uma rodinha de torcedores assistia a tudo. O guia pulava, o macaco se esquivava, os indianos torciam e a gente caía de rir.
Mais tarde, recuperados, vimos algumas das espécies mais lindas da fauna da Índia: um tigre albino gigante (incrível), crocodilos enormes, uma píton (que havia comido uma galinha e estava com o corpo meio moldado na forma da ave), cheetas (leopardos) e elefantes. O guia nos mostrou as cheetas, chamou uma delas com um assobio e foi incrível: o leopardo se aproximou da grade, esfregou a cabeça nas barras com a maior cara de gatinho. O rapaz foi até junto dele, fez um carinho caprichado e o gato crescido ronronou alto.
Mas como era o Monkey Day e Alex estava sob algum tipo de punição de Hanuman (minha tese era que ele estava sendo castigado por não ter ido ao templo de Delhi fazer oferendas quando eu o convidei), novas emoções o esperavam ao chegarmos à jaula do babuíno (não aqueles babuínos molengas do zoo de Brasília, mas um legítimo e muy macho babuíno). O guia nos alertou para não sorrirmos, pois os macacos entendiam o ato de mostrar dentes como um desafio bélico. Também informou que o bicho e ele eram inimigos declarados. Verdade. Mal viu o guia, o babuíno saltou na grade, mostrando uns dentes enormes e um olhar sanguinolento. O animal mexia no próprio pênis, em seguida mostrava a mão para o guia (concluí que certos gestos masculinos são anteriores à experiência humana) e mordia a mão com força. Segundo o guia, ele estava demonstrando que iria pegar o guia e mordê-lo! Impressionante, ainda mais porque o babuíno claramente estendia seu ódio ao Alex. Assim, aviso de tia Soninha: nunca provoquem um babuíno e sempre façam oferendas a Hanuman na terça-feira.
Por fim fomos visitar uns templos do século 1 aC. Estavam desativados e agora só eram atração turística. Só por isso pudemos entrar, pois em Orissa (um Estado bastante ortodoxo e onde o sistema de castas é levado muito a sério) não tínhamos a menor chance de entrar num templo que ainda funcionasse.
Em um dos templos antigos que os turistas podiam visitar, um velhinho se ofereceu para ser guia, mas não falava uma só palavra em inglês e desatou a falar em Oryia (a língua local). Sem sucesso para demonstrar que não estávamos entendendo coisa alguma, só nos restou fazer cara de inteligentes, concordando com tudo e balançando a cabeça.
À noite fomos a uma feira cultural ao lado do hotel, a Toshali National Craft Mela. De estrangeiros somente nós dois. Assistindo às apresentações de dança e música, famílias inteiras. Comecei a brincar com umas criancinhas muito fofas. As pessoas – claramente de castas baixas – eram adoráveis: quando fizemos fotos, elas ficaram visivelmente felizes e pediram mais. Sorriam quando mostrávamos as fotos na câmera. O pai de uma das crianças nos perguntou de onde éramos. Quando falamos Brasil, foi uma festa: “Football, Ronaldo, Ronaldinho” e até do Roberto Carlos (o jogador, claro) lembraram. Todo mundo berrava ” Brazil, Brazil” e um sikh se empolgou totalmente entoando um Brazilllllllllllllllll em ritmo de canção de Bollywood.
De repente, uma dançarina de Bharat Natyam… e toda a beleza do mundo surgiu naquela feira. Só quem já viu uma dançarina de Bharat Natyam pode avaliar minha emoção. É a perfeição do ballet e do yoga de mãos dadas. Fiquei completamente sem fôlego ao vê-la dançar o Bho Shambo. Ali, diante dos meus olhos deslumbrados, ela se tornou o próprio Shiva Nataraj, o dançarino cósmico – senhor do yoga, da meditação e do mundo. Shiva é a personificação de um poder muito masculino, que tem como um de seus símbolos o lingam (pênis, em sânscrito). Nos templos, o lingam é enfeitado com flores, banhado em leite e reverenciado – representado junto a uma yoni (vagina) que, com ele, traduz a união das energias masculina e feminina. Shiva é fascinante, eletrizante. Traz a lua nos cabelos revoltos – cabelos que, diz a lenda, acalmam as águas do Ganges quando o rio desce do céu para a terra. Serpentes estão enroladas em seus braços, as pernas musculosas apontam o tempo dedicado à prática do Hatha Yoga. Nas mãos, o tridente (trichula) representa os três gunas, as qualidades da natureza material que ele supera por ser inteiramente devotado às austeridades e sacrifícios próprios do Yoga.
Quando dança, Shiva é Nataraja (Dançarino Real, em sânscrito). Dentro de um círculo de fogo, ele segura, em uma de suas quatro mãos, o Damaru (tambor em forma de ampulheta com o qual marca o ritmo da criação e produz o som cósmico original). Na outra, traz uma chama, símbolo do conhecimento e da destruição de tudo o que é material e, consequentemente, passageiro e ilusório. Na palma da outra mão direita, um mudra (gesto), o abhaya, que basicamente significa o domínio sobre o medo. A outra mão de Shiva aponta para o chão, onde ele pisa sobre as costas do anão Mulayaka, símbolo das paixões arrebatadoras e escravizantes que devem ser subjugadas. Gosto demais da frase com que Jean-Claude Carrière define uma possível fala de Shiva sobre essa quarta mão: “Veja, pela força de meu espírito, já tirei um dos meus pés do chão. A dança me leva, meus desejos se queimam nas chamas cósmicas. Dance comigo”.
Um funcionário do hotel bateu à porta, oferecendo-se para ser guia pela cidade no dia seguinte. “Quanto custa?”. “Nada. Se vocês estão felizes, eu também estou”. Aceitamos, sabendo que ele esperava a gorjeta. No dia seguinte, 5 da manhã, finalmente passeamos de tuk-tuk pela primeira vez. Sem cinto de segurança, lá fomos nós em meio a uma névoa de proporções londrinas. O frio terrível, agravado pelo fato do carrinho não ter portas e “voar” pela estrada esburacada fazia o vento gelado chegar até os ossos. Sabyasachi, o garoto do hotel, levou uns flocos de arroz apimentados e nós devoramos com muita vontade. No fim da rodovia, um templo budista, inteiramente branco, construído pelos japoneses para assinalar um dos locais sagrados do budismo.
Na entrada, uma das famosas pedras do imperador Ashoka, nas quais se lê as leis do país e as regras de conduta determinadas por Ashoka. Em Orissa ocorreu a famosa batalha de Kalinga, que de tão devastadora foi decisiva para transformar Ashoka de sanguinário guerreiro em expoente do Budismo. Nas pedras, as regras são claras: compaixão com todos os seres humanos e animais, ética obrigatória para os homens públicos. Inspirou a Constituição da Índia milhares de anos depois. No local, os japoneses construíram um belo templo branco, com belas esculturas que narram as diversas fases da vida de Siddartha Gautama, o Buda.
Ao sair, deparamos com uma cachorrinha que acabara de dar à luz. Olhei os peitos cheios de leite, a cara de fome e foi instantânea a lembrança de Ashoka. Em honra do imperador, alimentei o bichinho com os meus salgadinhos – para completo horror de Sabyasachi.
Na volta fomos tentar ver o mais famoso conjunto de templos de Orissa, no qual domina o Lingaraja Temple, dedicado a Shiva e cuja forma não deixa dúvidas sobre a razão do nome ser pênis real (de rei), que é tradução exata da palavra sânscrita lingaraja. Proibidíssimo para estrangeiros. Ali vivenciamos nossa experiência como dalits (párias) e posso dizer com sinceridade: é dolorido. Os estrangeiros são intocáveis e por isso igualmente impedidos de entrar no templo. Tivemos de nos contentar em subir numa plataforma e e espiar dentro do complexo.
Aproveitamos o restante do dia para conhecer as famosas cavernas de Udayagiri e Khandagiri, um importantíssimo sítio arqueológico de Orissa. Lá, colaram em nós três pessoas que claramente queriam ser amigos dos únicos turistas ocidentais que (pelo visto) estavam na cidade. Alex, a essa altura, desconfiava de qualquer gesto de suposta amizade porque sabia que teria de pagar. Mas os novos amigos só queriam mesmo ser gentis. Conversaram e ainda nos pagaram um refrigerante indiano, que foi a coisa mais doce que provei nesta vida (depois de Guaraná Jesus, é claro).
No dia seguinte fomos para Calcutá, onde o horror nos aguardava. Mas, antes de passar a um assunto tão chocante, veja esse vídeo de uma apresentação de Bho Shambo, com uma dançarina poderosíssima (não-indiana!). Aqui você terá uma ideia do que vi em Bhubaneswar.
Deixamos Orissa e fui tomada por um sentimento de amor. Nosso motorista nos leva para o aeroporto e pelo retrovisor vejo seus olhos. São de um tipo raro, mas sempre me emociono quando vejo um. Eles têm um brilho castanho, impregnados de algo doce e bom, amoroso e frágil. Inexplicáveis e belos. Olhos de Sachi, de Vishnu, de Suresh… Diante daqueles olhos algo se aperta no meu coração. É que lembro que a Índia está tomada por programas evangélicos (a maioria norte-americanos) dublados em hindi, inclusive o do pastor brasileiro R. R. Soares, no qual um toll-free oferece medalhas.
No caminho vou pensando no quanto a TV indiana é paradoxal. Ao mesmo tempo que restringe qualquer conteúdo que remotamente lembre algo sexual (abraços e beijos nem pensar!) e qualquer forma de violência, vez por outra vejo uns gangsta style swamis pregando e cantando gospel rap em hindi ou as dancinhas eróticas de Bollywood que deixam Alex incomodado: “Quer dizer que não posso andar de mãos dadas com você, mas essas mulheres podem rebolar desse jeito na TV, simulando a dança do acasalamento?”. Outras coisas da TV: muita gente orando de manhã (sikhs, hindus, hare krishnas, etc.), muito jogo de críquete (muito mesmo) e programas jornalísticos que repetem tudo milhares de vezes (vi a sapatada no Bush pelo menos umas 50 vezes – e ri em todas, admito).