O homem mais pobre pode, em sua casa, desafiar todas as forças da Coroa. Ela pode ser frágil, o telhado pode tremer, o vento pode soprar através dela, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o rei da Inglaterra não pode entrar. Toda a sua força não ousa atravessar o limiar do casebre arruinado! “ William Pitt, 1º Conde de Chatham. Discurso na Câmara dos Comuns (Grã-Bretanha, março de 1763).

Eventos recentes me fazem refletir sobre coragem, covardia e manipulação. São os clamores de uma parte da população por intervenção militar.

Tempos sombrios estes que vivemos. Nele, vozes estridentes exigem soluções imediatistas e rasas para problemas de natureza complexa. Espelham um pensamento cuja imaturidade é palpável. “Fomos abandonados pelas Forças Armadas”, “Quem nos salvará?”, resmungam alguns, batendo os pés no chão como crianças contrariadas que apelam aos mais velhos para resolverem seus problemas. Não atendidos, reagem com xingamentos, ofensas e palavrões, tentando mexer com o brio dos militares brasileiros, chamando-os de covardes por não se curvarem aos seus caprichos.

Confundem tudo. Coragem, nesse caso, é se manter firme perante os apelos da turba insensata cuja voz foi ampliada pelas redes sociais. Ser fiel a si mesmo custa caro, enquanto a acomodação é relativamente barata: basta ceder ao populismo de ocasião em vez da consciência superior, que mira valores mais altos.

Bravura é revestir-se da armadura da autoconfiança e permanecer de pé enquanto a ignorância bombardeia com boatos vis e toda sorte de vilanias. Corajoso é o que não se intimida com a porta estreita, o caminho árido e as pedradas da infantilidade.

Curioso é ver como funciona o pensamento mágico: clama-se pelas Forças Armadas, pedindo-lhes que salvem os brasileiros de si mesmos. A ideia é que os militares entrem, façam uma limpeza geral, deixem a casa arrumada e entreguem o poder aos civis. Se vivo fosse, diria Garrincha: esqueceram de combinar com os adversários. É que os entusiastas de soluções miraculosas não se dão conta de que a solução proposta aprofundaria a crise ao atirar o Brasil em uma situação de consequências imprevisíveis, na qual é certa a fuga de investidores e a corrosão da imagem do país no cenário internacional.

Um preço altíssimo para um ato que não resolveria o problema. Obrigatório lembrar que os políticos afogados em escândalos de corrupção não chegaram a  Brasília por geração espontânea. Estão lá porque foram eleitos – e com votações expressivas. Há deputados e senadores, denunciados há décadas, que continuam a ser reconduzidos ao poder. Não é uma intervenção militar que mudará a conduta de grande parte da população que se vende por coisa pouca e, à primeira oportunidade, se lambuza com a onipresente corrupção. Tudo indica que, após alguns anos, tudo voltaria exatamente ao mesmo patamar atual, pois a revolução deveria ser no ethos, o caráter coletivo.

Nossa história comprova isso. O que vemos em 2018 é versão requentada de tempos passados. Há cem anos vivemos episódios muito parecidos, com uma população manipulada por falsificações se lançando às ruas como boiada em fúria. Basta lembrar a boataria que culminou na revolta da vacina ou o episódio das cartas falsas atribuídas a Artur Bernardes nos idos de 1921. Este reagiu colocando o país sob estado de sítio e feroz censura – convém lembrar. Já experimentamos soluções armadas, revoltas, intervenções, revoluções. Presidentes já foram depostos. E o que ocorreu tão logo se restaurou o voto? A mesma incapacidade de escolher homens decentes para conduzir a Nação. Ethos, senhores. Estamos falando de ethos.

A preguiça conduz os que desejam soluções de ruptura institucional. Uma preguiça mental, que impede raciocínio e reflexão. Os de ontem bebiam na fonte de uma imprensa oficialmente partidária – prática que subsiste nos nossos dias, diga-se de passagem. Os de hoje aderem de bom grado à manipulação no meio digital, tornando-se adeptos das soluções baratas e devotos dos disseminadores de boatos ou cultivadores da histeria coletiva. Eles e seus mestres se assemelham aos caricatos personagens de Molière na peça O Doente Imaginário: médicos sem escrúpulos que exploram a hipocondria de Argon. 

E já que falamos em arte, duas obras-primas da literatura traduzem à perfeição como terminam os que cedem aos  manipuladores de almas. Por dar ouvidos à língua venenosa de Iago, o mouro Otelo matou a mulher amada e perdeu a si mesmo. E Dorian Gray, ao contemplar no retrato sua face deformada pelos crimes tenebrosos, recordou-se da volúpia inconsequente com que aderiu ao pensamento decadente de Lord Henry. Oscar Wilde e Shakespeare adorariam o Brasil.

A vocação para ser tutelado é característica da covardia perante a vida.  Viver e pensar como adulto exigem coragem. Um gênero de coragem que não é feito de bravatas e passionalidade, mas de razão e esforços contínuos para assumir a responsabilidade por si mesmo e pelo ambiente em que se vive. 

Covardes terceirizam ações, pensamentos e decisões. Pensam e sentem por empréstimo, sem questionar. Negam-se ao autodesenvolvimento, aferrados a um comportamento imaturo. Limitam-se a repetir calúnias, a semear tolices e a dormir apavorados pelos monstros imaginários que outra mente criou para impressionar ingênuos e alimentá-los com idéias tortas. Vida de escravo voluntário. Vida de gado manso.Por isso mesmo são incapazes de reconhecer a coragem de um homem digno ou a voz da temperança. Sua métrica é a da brutalidade. A covardia os tornou míopes e os impede de enxergar o valor dos que resistem ao canto das sereias que habitam as redes sociais. Aprendi há muito que, para um homem covarde, a coragem soa como estupidez. Sua alma pequena não alcança as grandezas daquele que se auto-sacrifica por um bem maior. A régua curta que carregam os torna incapazes de medir a estatura de quem privilegia a estabilidade da Nação.

Arrisco um vaticínio: jamais compreenderão os versos imortais de William Ernest Henley: sou o senhor do meu destino, o capitão da minha alma. É que tal coragem moral, inabalável em meio à gritaria, é o que diferencia um ser humano de um mero bípede.

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*”The poorest man may in his cottage bid defiance to all the forces of the Crown. It may be frail — its roof may shake — the wind may blow through it — the storm may enter — the rain may enter — but the King of England cannot enter — all his force dares not cross the threshold of the ruined tenement!”. William Pitt, 1st Earl of Chatham. Speech on the Excise Bill, House of Commons (March 1763).

Ilustração: Sandro Botticelli. Calúnia. 1495. A pintura tenta recriar uma obra perdida da Antiguidade, de autoria de Apeles.  No quadro, o rei, com orelhas de burro e de olhos baixos, sem ver o que está à sua frente, ouve as envenenadas palavras que a Ignorância e a Desconfiança lhe sussurram. De pé, um homem encapuzado, a Inveja, estende seu longo braço em direção ao rei. Ele segura a Calúnia pelo pulso e esta arrasta pelos cabelos o homem caluniado. Calúnia carrega uma tocha acesa, como se viesse trazer luz sobre o caso. A Malícia e a Fraude, suas companheiras, a adornam com flores e fitas, procurando disfarçar sua verdadeira natureza. Atrás do grupo, vê-se uma figura vestida de preto: é o Remorso, que contempla a Verdade.