O dia era 20 de dezembro de 2008. Chegamos em Kolkatta (Calcutá), capital e maior cidade de West Bengal (Bengala Ocidental). A metrópole situada às margens do rio Hugli reúne nada menos 14 milhões de habitantes em sua região metropolitana. É muito poluída, tem um trânsito conhecido por não perdoar os distraídos e um distrito que é o resumo da miséria humana em termos de pobreza e exploração sexual de mulheres e crianças: Sonagachi (foto aqui). Expectativa desta sonhadora que vos fala: conhecer a terra onde floresceram os mais requintados artistas indianos e a capital do Raj Britânico. Mas a Índia parece existir para cumprir a máxima do Buda de destruir desejos e expectativas.
Atravessamos a cidade em um táxi do tipo vai-desabar-a-qualquer-segundo. Mais de 30 minutos de táxi e a miséria indiana finalmente nos encontrou. Trinta minutos de cenas chocantes: gente revirando lixo, centenas dormindo nas calçadas, mendigos de todas as idades numa exibição despudorada da pobreza onipresente e avassaladora. Para nenhum lugar que o olho siga, encontra alívio. Ficamos calados o tempo todo no táxi, fizemos o check-in no hotel quase mudos e, quando a porta do quarto se fechou, desabei numa crise convulsiva de choro.
Sou jornalista e, obviamente já havia visto a face da pobreza, inclusive aqui no Brasil. Na Índia é impossível não vê-la. Ela estava em Delhi e Agra, mas em Calcutá é indescritível: miséria dolorosa, agressiva, intimidadora. A pobreza no restante da Índia é aquela dos que vivem sem acesso a coisas que consideramos essenciais, mas Calcutá é a dor. Uma bofetada certeira. Eu me preparei para ver isso na Índia, mas o fato de, antes, termos visto uma pobreza grande, mas sem tal agressividade, me fez baixar um pouco a guarda. Erro grave, porque o que eu havia esperado inicialmente chegou sem aviso, sorrateiro.
Só em Calcutá se tem a noção do trabalho de Madre Teresa. Estávamos em um enclave – um hotel excelente, com internet, quarto limpo, um banheiro simpático, comida deliciosa, mas do lado de fora havia pessoas miseráveis, catando lixo, ruas feíssimas (nunca tínhamos visto nada igual na Índia, repito, e olha que já havíamos visitado várias cidades) e um transporte público literalmente se desmantelando. No meio disso tudo joalherias com peças que pareciam saídas da caverna de Aladin, vitrines com sáris rebordados de pedras preciosas, restaurantes finos com ar condicionado e outdoors anunciando produtos de luxo e lançamentos de filmes. Um completo paradoxo.
Estávamos planejando visitar a casa de Rabindranath Tagore (poeta bengali, Prêmio Nobel de Literatura de 1913, e que me fala diretamente ao coração) e a obra social de Madre Teresa, mas não conseguíamos pensar em sair à rua, pois a sensação de insegurança não nos abandonava ao lembrarmos da paisagem dolorosa que aguardava do lado de fora de nossa porta.
No quarto do hotel, minutos depois de chegar, encolhida observei o tumulto de sentimentos que se agitavam dentro de mim. Lembrei do professor da Escola de Yoga recomendando, nessas horas, observar o que se está sentindo. Foi o que fiz, pois a Índia desperta coisas imensas dentro de nós, inclusive nos esmaga com a constatação de que a dor do mundo é muito maior que nossa capacidade individual de combatê-la, apesar de toda a nossa vontade de colaborar. Lá, a fome onipresente, o enorme desamparo, essa multidão de batidos pela miséria nos empurram para reflexões profundas sobre o sentido da vida e os mistérios do mundo.
Apesar dessa mão que aperta o peito, a Índia só me desperta mais e mais amor. Lá, cada gesto de atenção desperta uma reação positiva impressionante – como se as pessoas fossem sedentas de afeto. Retribuem de forma plena. Cada criatura despertava a maternidade no meu coração. Uma simples foto era razão para uma festa, uma alegria imensa por ter atraído a atenção de alguém que eles julgavam muito importante. Um motorista juntou as mãos com tanto carinho no olhar simplesmente porque eu sorri para ele e disse “namaskar”; e o boy do nosso hotel em Bhubaneswar ficou tão comovido com nossa atenção que ligou do celular dele para a casa do pai, apenas para que Alex (o estrangeiro, professor da universidade, hóspede do hotel em que o rapaz servia café) pudesse dizer ao pai que havíamos gostado muito do filho dele. Eu gostaria de abraçar cada uma dessas pessoas. Sei que o amor as aguarda em algum lugar – mas, mesmo assim, eu gostaria de abraçá-las, delicadamente e em silêncio. Apenas para sussurrar baixinho: ” Eu me importo”.
Lembrei muito de um outro trecho de Jean-Claude Carrière advertindo que várias pessoas desistem da Índia ainda no táxi em que vêm do aeroporto de Calcutá para o hotel. O dia seguinte serviu para aliviar o choque. Conseguimos andar por ruas menos impactantes (as larguíssimas avenidas feitas pelos ingleses) e notamos que algumas partes de Calcutá são mais bizarras que outras. Até hoje me pergunto, também, se meus olhos apenas se acostumavam ao que viam. Por isso aqui vai mais uma dica. Não julgue precipitadamente. Fiz questão de transcrever tudo o que sentimos ao chegar em Calcutá justamente para mostrar que primeiras impressões podem ser muito fortes e impedir que, algum tempo depois, a gente desfrute algumas das surpresas mais agradáveis da vida.
Visitamos o Victoria Memorial, que os indianos juram que os ingleses construíram para rivalizar com o Taj Mahal. Interessante tese, já que a construção, que hoje é um Museu, incorpora elementos da arquitetura mongol. Não esqueça, Calcutá é a capital cultural da Índia. Lá viveram alguns dos mais extraordinários artistas do subcontinente: poetas, pintores, músicos e cineastas. Assim, apelo: não permita que a miséria atual ofusque a memória da arte.
Também visitamos uma feira livre, onde legumes e frutas são vendidos ao ar livre – a maior parte exibidos sobre plásticos no chão. Ali, o que mais me chamou a atenção foi o quanto Calcutá ainda parece ser a mesma dos tempos de Tagore. Os homens usam dhotis e as balanças manuais me lembraram um personagem da mais encantadora peça teatral do escritor: The Post-Office. Foi a manhã mais divertida de minha vida: bastava apontar a Câmera para alguém e lá vinha um sorriso. Houve gente que chamou o amigo para ser fotografado junto; quem sorrisse timidamente; quem até mostrasse o crachá do novo trabalho e quem exibisse orgulhosamente seu trabalho na rua mesmo. Foi o caso de um homem que datilografava, em uma máquina de escrever manual, as cartas e bilhetes que as pessoas queriam enviar para os parentes.
De volta ao hotel, mais calmos, inauguramos um novo hobby: sentamos no sofá na entrada do hotel e ficamos nos divertindo ao ver entrarem os novos turistas com sua cara de aterrorizados – iguaizinhas às nossas no primeiro dia…:-)
Na casa de Tagore, no dia seguinte, vi o quarto onde o poeta deu seu último suspiro. Admito que meus olhos ficaram cheios de água quando vi a escrivaninha e as largas janelas que dão para os jardim da senhorial casa vermelha, cercada de belos jardins. Enquanto olhava para a cama onde morreu Tagore, não pude evitar recitar mentalmente esse poema abaixo, que revela com precisão o sentimento de quem muito viveu com os olhos postos em algo maior, numa vida além de ossos e carnes. Para ele, a morte era uma amiga de olhos doces que conduzia a alma-noiva para um encontro de amor.
Death / Morte
O thou the last fulfilment of life,/ Ó tu, última realização da vida,
Death, my death, come and whisper to me! / Morte, minha morte, venha e sussurre para mim!
Day after day I have kept watch for thee;/ Dia após dia eu tenho aguardado por ti;
for thee have I borne the joys and pangs of life./ por ti tenho suportado as alegrias e dores da vida.
All that I am, that I have, that I hope and all my love /Tudo que eu sou, o que tenho, o que espero e todo o meu amor
have ever flowed towards thee in depth of secrecy./ sempre fluiu na tua direção em profundo segredo.
One final glance from thine eyes / Um último olhar dos teus olhos
and my life will be ever thine own./ e minha vida será eternamente tua.
The flowers have been woven / As flores foram trançadas
and the garland is ready for the bridegroom./ e a guirlanda está pronta para o noivo.
After the wedding the bride shall leave her home / Após o casamento a noiva deve deixar sua casa
and meet her lord alone in the solitude of night. / e encontrar seu senhor, sozinha, na solidão da noite.

Na cozinha, que ainda guarda os objetos da época de Tagore, minha imaginação voou longe. Prometi a mim mesma que, da próxima vez que visitar Calcutá, quero ficar lá por um tempo bem longo, desfrutando da brisa e do jardim e do ballet das champas (umas flores que acho lindas por causa de uma história infantil indiana). As champas desprendem-se das árvores e caem devagar sobre a relva, em um movimento poético e bailarino. Também prometi a mim mesma que dedicarei mais tempo à apreciação das obras de arte feitas pelo irmão de Rabindranath, um pintor talentoso chamado Abanindranath, e pelos estudantes de sua escola de arte. São telas delicadas, de traços refinados e cores espetaculares. Muito me impressionou o mais belo Vishnu que já vi retratado. Belíssimo, montando um Garuda impressionante. Foi feito por Pran Krishna Pal, discípulo de Abanindranath Tagore
Os dias passaram e aos poucos nos acostumamos com a paisagem de Calcutá, o trânsito insano e o caos das ruas. Caminhando pela cidade, notamos os mendigos e trabalhadores que tomam banho nos hidrantes toda manhã. Não apenas tomam banho: lavam as roupas, torcem, secam e lavam utensílios. Tudo na calçada, à vista de todos. Talvez por isso a super poluída Calcutá quase não tenha mau cheiro.
Último dia em Calcutá e decidimos visitar a missão de Madre Teresa. O guia dizia a rua em que se localizava, mas não tínhamos mapa e o jeito foi perguntar na rua. Sem falar bengali, a arte de obter informações é quase impossível. No caminho, havia um açougue. Nada de carne de vaca: coelhos, frangos, bodes. Vi um cabritinho com um lenço branco atado no corpo, como um lençolzinho. Achei que ele estava com frio e alguém cheio de compaixão o havia agraciado com a pequena coberta. Uma graça! Brinquei com ele e o deixei deitadinho no chão, comendo uns cravos-da-Índia.
Depois de andar por mais de uma hora, afinal encontramos o local da sarani de Madre Teresa. Efervescente, com as freiras apressadas e as longas filas de pessoas pedindo algum tipo de ajuda, comida ou atendimento médico.
Entramos no prédio da Missão onde ficam o túmulo de madre Teresa e um pequeno espaço museológico. Um oásis. Tudo limpo, o chão brilha, o silêncio domina e algumas pessoas aproveitam para ler ou meditar. Tiramos os sapatos e entramos no local onde está o túmulo branco enfeitado por rosas e cravos alaranjados. O pequeno museu guarda os hábitos puídos e remendados da freira, suas cartas e cadernos, pôsteres e outros poucos objetos, como uma bolsinha bem antiga e as sandálias franciscanas. Ali também está o quarto dela, preservado.
Ficamos um tempo desfrutando daquele local de tranquilidade. Na volta para o hotel, eis que vimos de novo o açougue e nele, em destaque, a cabeça do pobre cabritinho com quem eu havia brincado horas antes. Arregalo os olhos e relembro, num átimo, porque sou vegetariana.
No início da noite visitamos a Missão de Swami Ramakrishna e a universidade criada por outro dos grandes gurus indianos: Vivekananda. Belos prédios, que transpiram organização e disciplina. O lugar traduz perfeitamente o espírito da Índia: estudo e espiritualidade.
No hotel, fizemos as malas em direção ao meu maior sonho indiano: os jardins de chá de Darjeeling, a cidade que produz o melhor chá do planeta.
Sonia, vou parar agora, estou chorando e sentindo dor no peito com o que li. Mas volto para ler os outros dias desta sua viagem à India, um país que ainda quero viajar e conhecer. beijo!
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