A Amazônia enorme um dia o pôs no mundo. Filho dileto de Gaia, perambulou, adotivo, entre asfaltos e prédios. Criança, diziam que era Mogli. Ao crescer, virou Tarzan – mas nenhum personagem da literatura o traduziu jamais. Até porque não é de livros, embora domine à perfeição a língua e a escrita dos homens.
Indomável, seu ambiente é entre igarapés, árvores e coisas selvagens. Na profundeza das águas os peixes lhe beijam o nariz. Ele os caça. E come. Prefere degustação à contemplação, mas sua integração à natureza jamais permitiu que matasse animais por prazer.
Impressiona vê-lo no mato, mergulhado no grande ciclo da vida. Sua melhor parceira de aventuras foi Tati, a lontra de estimação que, ainda filhote, o bando deixou para trás no alto rio Iriri. Mergulhavam juntos: ela desentocando os peixes e ele arpoando. Depois de dividirem as refeições, Tati dormia debaixo da rede dele nos acampamentos de selva. Um dia o bando voltou a passar na área e ela se foi. Ele sorriu, divertido: “Sei que ela se deu muito bem com os seus, pois sempre viveu livre comigo. Sabia caçar e sempre esteve em contato com os rios e igarapés“.
Não há pedra, folha ou bicho amazônico que não conheça. Aos dez anos já perambulava pela mata, caçando com seu amigo Có. A floresta não tem mistério para ele. Conhece bem seus segredos, cheiros e sons – e os respeita. Ali trafega com naturalidade – também ele meio bicho. “Ponha a rede acima de dois metros, viu? É garantido que a onça não pulará mais que isso e você estará a salvo“, ensina, sereno, como quem fala de amenidades.
Nadar é verbo que ele não conjuga. Desliza, suave, abrindo caminho pela água. E há tanta leveza em seus movimentos que a gente fica meio hipnotizado, vendo suas mãos acariciarem a líquida parceira.
Decidiu que comemoraria o aniversário de 60 anos nadando seis quilômetros no rio Oiapoque: da cidade brasileira até Saint-Georges, na Guiana Francesa. Alongou-se como fazem os felinos, encostando as palmas das mãos no chão e usando o treinamento em artes marciais. Mergulhou no rio, seu amigo de infância. Este estava na cheia do inverno. Águas altas, inquietas e geladas, cheias dos redemoinhos que assombram os barqueiros. Driblou as grandes pedras escuras que estavam pelo caminho e mal notou quando a tempestade desabou sobre seus ombros largos. Chegou à cidade francesa com a respiração sob controle, rindo da preocupação dos parentes.
Abro seu álbum de fotos e vejo a colagem de uma vida livre. Aqui ele dança turé e bebe caxixi com os índios, ali pilota barcos e, na página seguinte, chega de uma missão, na Serra do Cachimbo, com o uniforme da Aeronáutica completamente destruído pelos cinco meses isolado na selva. Entre risadas e fotografias, conta que desceu de helicóptero em floresta fechada, fazendo rapel; caiu de avião várias vezes, namorou as índias bonitas e sobreviveu a incontáveis malárias. Deu aos dois primeiros filhos o nome do casal de amigos Kayapós: Raoni e Naheri.
Pesca, prepara e assa peixes como ninguém. E seu conhecimento é sempre compartilhado sem ares de sabichão. O nome é uma síntese de sua vida: Ney é uma forma arcaica do francês nouveau (novo) antigamente usada para designar os imigrantes que chegavam ao país. Guarany é nome de tribo indígena, embora entre seus antepassados não haja índios. E Pennafort é europeu. Muito adequado a quem sempre foi estrangeiro nas terras fora dos limites da floresta e, ainda assim, traduz mundos tão diversos.
Vive muito modestamente, mas nunca reclama de coisa alguma. Ao contrário, descobre razões para rir até na escolha do nome de seus cães: Peste do Nilo e Praga do Egito.
Tem a voz mais bonita que já ouvi. E ainda hoje, quando põe seu chapéu estiloso e sai caminhando pelas ruas, sempre lembro dos botos que – diz a lenda amazônica – tomam a forma humana para seduzir as meninas. E as houve. Muitas. Não se pode condená-las.
Frequentemente, esse titã surpreende a gente com gestos de delicadeza, como quando faz bolo de tapioca para os sobrinhos e ensina meu marido a mergulhar em águas desconhecidas. Ou quando responde, com paciência infinita, às mil perguntas que faço sobre a vasta floresta.
_ Tio, que toque de celular é esse?
_ Capitão-do-mato, um passarinho.
_ E aquela planta ali?
_ Aguapé.
_ Dá para comer cobra, tio?
_ Lembrai-vos que em sobrevivência só se dispensa: do ar o urubu, da terra o cururu. Se é cobra, corta-se um palmo da cabeça pra ter a certeza que não vai veneno junto; e do rabo também, pois normalmente tem substâncias tóxicas, como o guizo da cascavel… ou são secos.
_ Ah, mas macaco não dá, não. Meu pai falava que a mãe-macaca mostra o filhote pro caçador.
_ É, tem essas histórias. Eu particularmente jamais matei macaco ou preguiça. Acho covardia. Mas os índios da aldeia Bonna, acima do Jari, oferecem pros brancos a cabeça e as mãos dos macacos, pois sabem da repulsa deles.
_ Macaco tem gosto ruim?
_ Não. Até pega bem um tempero, mas macaco é um dos últimos recursos. Tinha muita coisa melhor na mata.
Melhor não saber…
…
Dizem por aí que agora tem 70 anos, mas nunca ficará velho o meu tio Ney. Um dia vai se cansar dessas cidades cinzentas. E, quando mergulhar de volta em sua floresta, bastará fazer silêncio para ouvir seu coração de menino pulsando na curva do rio.











Este texto faz parte do projeto “Histórias de Oiapoque”.