Por que foi que cegamos? Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão.Queres que te diga o que penso? Diz. Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem.

José Saramago. Ensaio sobre a Cegueira.

Sinto um inequívoco cheiro de oportunismo no ar. Do tipo guloso, que esconde mercadorias debaixo do balcão, que se esquiva ao sacrifício coletivo na reforma da Previdência, que estaciona em fila dupla e implanta próteses vencidas nos corpos dos doentes. 

Sinto um aroma de egoísmo no ar. Do tipo que só se importa com a barriga forrada de comida, indiferente aos que caem de fome na casa ao lado; que abastece o carro até o limite do tanque, sem se incomodar se a fila atrás de si tem quilômetros de extensão e a hora avança; que se prevalece do desespero alheio para lucrar mais. E ainda admite tudo isso em entrevista na TV. Candidamente.

Sinto odor de fanatismo no ar. Do tipo que elege um herói troncho a cada episódio, mesmo que este devore coisas muito mais sagradas, como o direito à saúde, à vida, à escola, à opinião livre – patrimônios inalienáveis que se não deveria admitir serem ameaçados por quem quer que seja. Por dinheiro algum.

Sinto cheiro de ideologia barata no ar. Do tipo que concorda em apoiar qualquer coisa, desde que atenda às suas (geralmente estreitas) visões de mundo. Do tipo que é nutrida por dezenas de sites e pessoas que alimentam a hidra do ódio, que é avessa a análises profundas das causas e inimiga de soluções decentes (que dão trabalho para construir e exigem firmeza moral e paciência por parte dos que as buscam), que elege um inimigo para centralizar todos os males, que só consegue compreender e aplaudir o que é rasteiro, imediatista e soa como um slogan de décadas passadas.

Sinto aroma de cegueira no ar. Do tipo que atribui aos inimigos políticos aquilo que é responsabilidade de seus ídolos. Do tipo que manipula, inverte, desvirtua a realidade para convencer a si e aos outros que seu grupo monopoliza a virtude e a ação correta. Do tipo que não se envergonha de defender criminosos e atitudes vis.

Sim, pagamos impostos escorchantes. Sim, é bom ver o brasileiro dizendo ao governo, em alto em bom som, que já não aceita passivamente ser extorquido. Sim, é necessário enviar mensagens firmes a uma classe política corroída pelos escândalos de corrupção e adoradora do próprio umbigo. Sim, é inadiável exigir o retorno dos tributos em serviços dignos.

Não, políticos populistas não são a salvação da lavoura, mesmo que o infalível sebastianismo pátrio eleja periodicamente um novo herói a cada ciclo.

Não houve um só governo, na história recente do Brasil, sem evidentes falhas nas decisões ou livre de chantagens, interesses ocultos, lacunas de informação, desvio de recursos. Os governantes brasileiros costumam ser desatentos ao caos que recorrentemente se anuncia com antecedência. Não raro voltam atrás perante as crises, optando por soluções que soam como remendos, transferindo a conta para o cidadão brasileiro e, quando a raiva ganha as ruas e quebra tudo como vaga descontrolada, recorrendo à força policial/militar para “resolver” o problema via bombas de efeito moral. Sem pejo, desviam as Forças Armadas de sua função primordial e consolidam-nas  como multitarefa, pau-pra-toda-obra e coringa de uma nação despedaçada.

Reféns estamos. De caminhoneiros, de políticos, dos berros que emergem das redes sociais. Especialmente, somos reféns de um pensamento para o qual não faltam adjetivos: barroco, acanhado, miúdo, patético, selvagem. É uma espécie de vírus que espalha a doença cujo principal sintoma é a ausência de senso de coletividade, aquele brilho interno que faz o homem se sacrificar pela sua comunidade, pensar no bem comum, exercitar a compaixão,  compartilhar o pouco que tem com seus vizinhos, amigos e os desconhecidos irmãos-compatriotas.

Falta-nos amor por esta nossa terra e maturidade para viver nela. Falta-nos valorizar o chão mais que generoso que enchemos de dejetos físicos, mentais e morais. Um país-continente, riquíssimo, de clima ameno, mas habitado por uns brutos. Culpa deste nosso ethos vadio – filhote de macunaíma a flertar com a irresponsabilidade.

O Brasil é um país que se traveste de romance do Saramago. Ensaio sobre a Cegueira. Basta algo ameaçar as regras sociais para que o caos se instale por aqui. Paramos de enxergar de imediato a necessidade do outro para nos adorarmos no altar de nós mesmos.

É humano, bem sei, mas aqui ultrapassa o limite da normalidade. A pandemia de corrupção nacional não me deixa mentir. Aí está ela, democraticamente enraizada em todas as classes sociais, etnias e profissões, escondida em qualquer nicho mínimo que possa sugar, como mosca varejeira, o sangue verde dos cofres públicos.

Que importa se pessoas morrerão nos hospitais, se faltará comida, se os remédios desaparecerão? Enquanto tudo isso ocorre, alguns se deliciam com o colapso, amantes da anarquia irrestrita, ansiosos por ver o circo arder. Riem-se estes das chamas, esquecidos que, dentro delas, há gente inocente e amiga cuja carne queima. E que a lona destruída pelo fogo é a cobertura de sua própria casa.

Sinto um cheiro de falência moral. E ele me angustia.

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—Ilustração: A Parábola dos Cegos (ou Cego guiando cegos). Pieter Bruegel, o Velho.