Em 28 de junho de 1969, a polícia invadiu o bar Stonewall Inn (leia aqui) em Nova York. Os abusos registrados deram início a uma vigorosa reação da comunidade LGBT+. Ali, no coração de Greenwich Village, os homossexuais norte-americanos se ergueram contra um cenário de perseguição explícita e, em seis dias de violentos motins, fizeram de Stonewall um marco na luta por seus direitos.

Cinquenta anos se passaram desde então. Esculturas de George Segal assinalam o lugar onde tudo começou, mas ainda há muito a conquistar, tanto em termos de garantias individuais como no âmbito dos relacionamentos pessoais.

Em pleno século XXI, forçoso reconhecer, ainda há uma camada grossa de preconceito regendo parte destacada da sociedade mundial. E ela desagua nas casas, nos grupos familiares, nas relações de amizade, abrindo abismos, provocando dor desnecessária, levando a suicídios e a sentimentos despedaçados. Tudo evitável.

Não quero fazer deste artigo uma peça associada a qualquer grupo político – como tem sido frequente no Brasil. Isso não me interessa. Aqui estou para abordar a dimensão humana, o motor da exclusão, as dores internas, a agonia de quem se percebe fora do sistema. Estes são meu objeto de reflexão.

Acho espantoso que cinco décadas após Stonewall ainda haja uma enorme quantidade de gente que não consegue lidar com a sexualidade alheia e se disponha a montar guarda sobre o corpo de amigos, parentes e desconhecidos. Convenhamos: por que raios alguém se vê obrigado a ter de lidar ou se acha no direito de aceitar ou criticar a sexualidade dos outros? As respostas são várias e resultariam num manual de antropologia e psicologia.

Somos uma espécie esquisita, nós, os humanos. Narcisos convictos, temos por hábito construir cercas. Não aquelas que emolduram as casinhas de filmes românticos. Falo das cercas construídas com material gosmento, pútrido, feitas para separar, isolar, exilar. Do outro lado da cerca, ficam os que foram eleitos inimigos no momento, enquanto, do lado de cá, situa-se aquele que deseja ver afastada de si até a sombra do indesejável que o espia do outro lado da linha.

Quando o pária ensaia ultrapassar a cerca, atira-se sobre o ousado o lobo raivoso da intolerância. Um lobo que não vem só: costuma chegar acompanhado de livros muito sagrados, de pessoas piedosas e zelosas da moral. Também vem atado ao cabo de aço do pavor. Pavor de quê? De qualquer coisa, pessoa ou situação que ameace a estrutura organizada que encontrou ao nascer e que ele morre de medo de ver caída ao chão, estilhaçada com suas crenças miúdas e seu coração atemorizado.

Escrevo essas coisas movida não por revolta ou ódio, mas por um sentimento de solidariedade. É que lá, do outro lado da cerca que nos foi imposta, vejo – cobertos por rótulos que lhes escondem o rosto e a alma – os que têm negado o direito de viver de acordo com seus sentimentos, escolhas, erros e acertos. Não só os vejo. Empresto a eles minha voz. Isso vale para uma infinidade de situações e grupos, mas aqui, neste artigo, falo especificamente dos homossexuais e de sua exclusão, em particular a induzida por motivos religiosos.

São os homossexuais uma subcategoria do grande grupo de párias que a nossa sociedade finge que aceita. Duvida? Acha exagero? Natural, já que algumas coisas não são óbvias de imediato. Para vê-las é preciso sair da bolha ideológica e pensar com alguma liberdade, ler entrelinhas, enxergar subtextos. Ou examinar números.

Vamos lá, comecemos por esta pesquisa do Ibope Inteligência. Ela apontou que 73% dos brasileiros aceitariam gays como amigos ou companheiros de trabalho, mas, destes, 55% se declararam contrários ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Dez anos depois, apenas 55% dos brasileiros são favoráveis ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (leia aqui). Ou seja, os “tolerantes” até “aceitam” que um gay faça parte de seu círculo social, desde que se mantenha invisível, com sua sexualidade fora do alcance dos puríssimos olhos das pessoas. Que mecanismo faz com que esses 18% supostamente “tolerantes”, que aceitariam amigos e companheiros de trabalho gays, neguem a essas mesmas pessoas, tão próximas, o direito de ter uma família perante a lei e a sociedade?

Aliás, quem lhes deu o poder de arbitrar sobre isso? Tolerância é uma palavra-armadilha neste caso. Corresponde a um gesto magnânimo: eu tolero que você exista! A frase guarda ares de superioridade, condescendência. O mesmo vale para o verbo “aceitar”.

O homossexual é, repito, um pária, a quem se permite que exista, desde que não deixe sua sombra “contaminar” os que se aboletaram nas castas superiores. Este, infelizmente, ainda é o pensamento de uma expressiva parcela de nossa população planeta afora.

Vamos a outros números e dados. Em 2019, a prática homossexual consensual ainda é crime em 70 dos 193 países que fazem parte da ONU. É punida com prisão, chibatadas públicas e torturas diversas. Em todos eles, as razões são religiosas. Quatro países aplicam pena de morte: Arábia Saudita, Irã, Iêmen e Sudão – além de regiões da Nigéria e da Somália. As execuções são brutais: apedrejamento, enforcamento em praça pública ou, à moda do Estado Islâmico: atirando as pessoas do alto de prédios. Levantamento do site Spotniks elencou os quinze países onde as leis homofóbicas resultam em punições de rara crueldade (leia aqui). 

Diante de tal realidade, é forçoso refletir sobre o tema. Haverá de fato quem ache justas tais punições? Trazendo o debate para o cenário brasileiro: será correto que um filho seja espancado, um amigo desprezado ou um ser humano agredido e morto por sua orientação sexual?

Combater esses excessos não é uma luta vã. Basta lembrar que graças a denúncias e reivindicações diversas, desde o ano 2000 várias leis que criminalizam atos homossexuais foram revogadas na Armênia, Azerbaijão, Bósnia-Herzegovina, Cabo Verde, Geórgia, Nicarágua, Estados Unidos, Panamá, Nepal e Fiji. O caso da Índia é o mais espantoso, pois revogou uma lei da época do Raj britânico. Em outras palavras, a moral vitoriana tornou crime algo que a milenar tradição hindu não discriminava, como mostram a história e a literatura.

Para enxergar tais coisas, entretanto, é necessário fazer um expurgo interno e arrancar da alma a erva daninha do preconceito, que toma o lugar das mudas de compreensão, solidariedade e respeito ao outro. É inadiável despir-se de algumas armadilhas mentais consolidadas. Estas minimizam o sofrimento dos homossexuais, desdenham de sua luta e não se comovem com as estatísticas. Imaginam que há uma estratégia globalista para instalar uma suposta “sociedade gayzista” e isso lhes move a fúria.

Um dos focos de intolerância disfarçada está expresso em frases do tipo “Ah, nada contra os gays, desde que não seja na minha frente”. E do que estamos falando? De sexo explícito nas vias públicas? Não. Falamos de andar de mãos dadas, abraçado ao parceiro, beijando o companheiro na praça de alimentação do shopping ou no escurinho do cinema. Qualquer casal heterossexual pode fazer isso sem causar uma comoção – mas experimente comportar-se assim com alguém do mesmo sexo! Imediatamente entram em ação as frases fatais: Não na minha frente; não em público, não, não, não e não! É aí que rolam as máscaras.

Por que não? Por que longe dos olhos? Vale a pena refletir na razão porque baixamos os olhos diante de algo. É porque nos incomoda? Revira o estômago? Choca, desconcerta e nos deixa sem graça? Seja o que for, é essa a prova cabal de que o assunto ou situação não estão resolvidos. Permanecem como sujeira embaixo de algum tapete esperando que a reflexão madura venha expurgá-la.

O mais dolorido é constatar que uma boa parte desse preconceito tem por base a religião. A experiência mostra que, no nascedouro, todas as religiões são belos sonhos de igualdade, fraternidade e liberdade – pequenos botões de flores que encerram promessas de alegria e paz nos corações. Porém, no exato instante em que se tornam organizações humanas, com estruturas de poder, bens, imóveis e uma imensa multiplicidade de interesses a administrar, todos esses sonhos transformam-se em uma realidade dura, na qual os ideais são sufocados. E as belas flores, frescas e delicadas do ideal, são encerradas em um livro muito velho, onde secarão entre poeira e traças. A letra morta prevalece sobre o espírito vivo.

Este é um assunto delicado, bem sei. Nele só toquei a fim de lembrar, aos que lerão esse texto até o fim, que é com o nome divino nos lábios que se arrancam lascas de carne do lombo alheio. É defendendo os bons costumes que se viola a ética e a dignidade ao negar ao outro o direito de se relacionar com quem lhe aprouver. De boas intenções, diz o provérbio, o inferno anda lotado. Cassa até o direito de amar – e quem o caça são aqueles que julgam agir em nome do amor, da família e até – imagine a pretensão – do próprio Deus.

A propósito, gosto de imaginar como Jesus – aquele mesmo que se tornou modelo de conduta para grande parte dos habitantes deste nosso mundo – agiria perante um homossexual. Não o concebo brandindo chicotes. Creio que talvez enxergasse apenas a graça única que cada um carrega na alma, como fez com todas as vítimas de preconceito com as quais se deparou: prostitutas, adúlteras, publicanos. Mas essa é uma parte das escrituras que poucos parecem ler. Preferem os trechos mais rigorosos, os que abrem abismos em lugar dos que constroem pontes entre os seres humanos.

Sei que de nada adianta argumentar com o fanatismo, uma vez que o fanático encontra justificativa plena para todas as barbáries. Estão aí as guerras santas, os mártires de Alah e a inquisição a provar o argumento. Pobres homens, que caminham como cegos, escravizados por coisas que acreditam ser verdades absolutas. Alguém lhes disse que é assim e eles creem. Sem questionamentos, sem reflexão.

Muita gente nesse mundo baseia a vida em textos manipulados ao longo dos séculos, em traduções bizarras, em opiniões de líderes medíocres ou de aproveitadores com objetivos de vantagens pessoais. Ao adotar uma religião formal, compram junto um pacote de pensamentos-prontos, de direcionamentos e de ideologias que passam a reger a vida. A partir de então, quase tudo o que pensam passa a ter o selo do “aprove-se” religioso. Passa-se a percorrer um caminho programado por outros e não o ditado por suas próprias convicções, fruto da reflexão de sua mente livre.

Ao longo desse caminho de pensamentos pré-moldados acumularam-se os cadáveres de anônimos e famosos. Aos anônimos espancados pelos pais, torturados pelas línguas ferinas, agredidos nas ruas, ameaçados por demônios e mortos pelo delírio salvacionista juntam-se as sombras tristes de poetas, cientistas e príncipes obrigados a contrariar a própria natureza a fim de atender aos anseios de outrem.

Posso ver Oscar Wilde gemendo nos calabouços da prisão de Reading e Alan Turing – um dos maiores cientistas de nosso tempo – lançando mão de cianeto por não mais suportar a castração química, as injeções de hormônio e tudo o mais que a mente humana foi capaz de engendrar para punir os párias que ousam ultrapassar a cerca. E me pergunto: até quando?

Até quando teremos a pretensão de impor regras à sexualidade e ao sentimento alheios? Tolos são os que se imaginam capazes de penetrar a alma do outro e fazer dela seu terreno.  Cruéis são os que lançam mão de seu poder para negar ao outro a possibilidade de construir um lar, de criar uma família, de nutrir filhos e de vê-los crescer, de envelhecer ao lado do parceiro escolhido. Quem somos nós para negar isso? Quem nos deu o poder de escolher com quem o outro faz sexo ou quer passar os dias que lhe restam sobre a terra? Que orgulho insensato nos faz pensar que podemos arbitrar sobre o amor alheio?

As coisas são mais simples do que supõe a nossa conturbada mente afogada em convenções. Uma atitude aberta talvez seja o que precisamos nesse instante em que os preconceitos se acumulam e o planeta mergulha cada vez mais no lamaçal dos extremismos. Algo como a reação da criança deste vídeo, que, ao ver pela primeira vez um casal gay, registrou o estranhamento da novidade, mas, logo em seguida concluiu, sabiamente: “Se estão juntos, se casaram, é porque se amam”. Ato seguinte: “Vou jogar ping-pong. Se quiserem, vocês podem vir”.

Vejo isso e tenho vontade de estender a todo mundo o convite feito de despretensiosa inocência. Vamos brincar juntos, todos nós? Só por um dia, de armas baixas, de coração leve, olhando nos olhos uns dos outros e enxergando neles aquele brilho verde a que demos o nome de esperança?

Talvez seja mais fácil do que imaginamos. Ali, do outro lado da cerca, estão filhos, irmãos, amigos. Aguardam, pacientes, por um gesto de amor.