Querido Zé,
neste sono quieto que traduz os seus dias, você ainda não sabe, mas chegou a um mundo ambíguo. Um lugar perigoso e sublime. Melhor aprender a driblar a crueldade e se deslumbrar com as maravilhas.
Prepare-se para ver e ouvir umas coisas cor-de-chumbo, mas, nessas ocasiões, lembre-se que há Mozart (amarelo-ovo), Vivaldi (cor daqueles dias de chuva e sol, casamento de espanhol), sonhos de Kurosawa (feitos de arco-íris), Van Gogh (um ruivo colorido que pintava com raios de sol, corvos bem negros e fortes trovões) e Villa-Lobos. Este é especial. Ao ouvi-lo você entenderá o que é sinestesia, pois acreditará que são verde-amarelas as cantilenas, modinhas, cantigas, serestas, concertos e sinfonias. Nelas, haverá aroma de café preto, ruído de trem, viola caipiria, lua nascendo diante de dois amantes e um uirapuru cantando na grande Floresta do Amazonas.
Em resumo, preste atenção em violoncelos, violinos, pianos, telas, fotografias, filmes, museus e – atenção, pois isso é importante – livros.
Livros são algo muito especial. Há magia dentro deles. Aparentemente, são apenas umas folhas de papel cercadas de capa mais dura. Entretanto, ao abri-los, todas as maravilhas da terra se revelam. E lá, bem dentro da gente, faz-se um milagre: os personagens ganham vida, caras, vozes. Cidades se constroem, sentimentos se enovelam, a gente ri e chora, anseia e se frustra. Como lhe disse, é sortilégio. Descubra-o.
Tem uns livros, muito sisudos e gorduchos, que ensinam a entender o mundo. Foram escritos por homens sábios, que conseguiam ler os segredos da Natureza, decifraram o caminho das estrelas, intuíram o mistério dos números, explicaram bichos e plantas e descobriram coisas que deixam o corpo são.
Há também os livros dos inconformados, um tipo que existe há milhares de anos. Antigamente caminhavam eles com os alunos, fundavam academias, dormiam em barris, tinham jardins e até bebiam cicuta por causa de suas ideias. Um deles ensinou que tão emocionante quanto o céu pontilhado de diamantes é a lei moral que se abriga no coração dos sábios. Viveram com o cérebro repleto de perguntas e, inquietos, espiaram bem dentro dos seres humanos a fim de descobrir seus segredos mais densos. Uns pesaram a mão na análise, outros chamaram a transformar em lei universal a ação individual. Escolha o seu favorito, sabendo que todos instigam as mentes a reflexões. É imperativo conhecê-los. Categoricamente.
Por fim, aprenda desde logo que no mundo existem poetas. Por vezes criam versos, mas também adoram uma boa prosa. São igualmente inquietos. Uma força dentro deles os obriga a escrever. Conta-se que, se não o fazem, morrem murchos e ressecados. É que os sentimentos se acumulam na alma dos poetas. Vão inchando no peito, pesam e consomem. Só há uma forma de cura: transformá-los em palavras que se acotovelam no papel. Aí, menino, é catarse pura, redenção e sonho. E quem os lê também aprende o que se passa na tragédia e na comédia humanas.
Já ia esquecendo de dizer: daqui a alguns anos você notará que a sua família tem peculiaridades. Nela há um amor que inunda as manhãs, estende-se pelas tardes e jamais adormece, mesmo à noite, quando todas as luzes da casa se apagam. Nem todo mundo tem isso, saiba. Talvez seja assim na sua casa porque você, menino sortudo, tem duas mães.
Aqui neste mundo que lhe recebe agora, mães são sinônimo de amor. Há exceções, claro, mas a regra geral é que quando um filho brota na Terra, as mães são tomadas por sentimentos sem par. Uma torrente, que toma o peito da gente com ruído forte, espuma clara e força descomunal. Com as crias nasce também um medo de tudo. Picada de inseto, queda de árvore, gente perversa e acidente de carro são apenas quatro itens de uma lista que – dizem os cientistas, os inconformados e os poetas – é absolutamente infinita. Bem, não quero ser portadora de más notícias, mas você tem duas mães. Du-as. Em caso de emergência, quebre o vidro e pegue a máscara onde está escrito: “Para meninos sob intenso bombardeio amoroso”. Respire e agradeça.
Assim, se algum dia pessoas cor-de-burro-quando-foge lhe disserem que sua família não é igual às outras, sinta compaixão, pois quem diz tais coisas jamais morou numa casa como a sua, com pomares de afeto, hortas de abraços e jardineiras onde brotam beijos estalados. Não dê atenção, portanto, mesmo que a frase esquisita venha de algum amigo ou ser amado.
Um dia você vai ler um poeta brasileiro, tão triste, que lhe ensinará sobre a mão que afaga ser a mesma que apedreja. Registre a lição apenas para não cair no grave erro da ingenuidade e ser apanhado de surpresa. O mundo mói os ingênuos e você não está aqui para ser moído. Minha sugestão é que você treine a milenar arte do esquivamento. Se alguém lhe apedrejar, esquive-se e siga. Você sairá ileso e o apedrejador ficará com a mão suja. Mas, à mão que afaga, destine um holofote. Deixe-a visível na galeria de honra dos seus afetos ou naquela caixa dourada onde se guarda alegrias.
Seja feliz.