Desde bem miúda, Benedita equilibrava uma cachola cheia de idéias irreverentes, teimosia crônica e generosidade em doses cavalares. Só não se podia contrariá-la. Aí, amigo, era fim de festa, areia no jerimum cozido, sal no doce de goiaba.A caminho da escola, Benezinha pedia para carregar os livros dos irmãos.– Me dê aqui esses livros. Ande! Quero levar sozinha!– Mas Bené, são pesados…– Me dê logo, que não estou lhe perguntando se é pesado!

Os irmãos olhavam aquela criaturinha indomável e entregavam os livros. Bené vergava com o peso, mas empinava o nariz e seguia, com ar orgulhoso. Um dia, a irmã não se conteve:– Mas isso é promessa, é?Bené riu aquele riso matreiro de quem já nasceu sabendo das coisas.– Todo mundo me olha com esse tanto de livro nos braços e pensa: tão pequenininha e tão inteligente! 

Bené ganhou fama de geniosa aos quatro anos de idade, quando lhe tiraram a mamadeira. Pela primeira vez mostrou à família um traço que a caracterizaria pela vida inteira: a birra. Nunca mais bebeu leite. 

Na escola, um vírus iconoclasta lhe tomava o corpinho magro cada vez que se via diante dos mais velhos. Uma vontade irresistível de provocar um escândalo e desafiar alguma autoridade sonolenta. Errava a tabuada, puxava a fita do cabelo alheio, mostrava a língua. Tudo para ficar de castigo. De costas para a professora e de frente para a janela, olhava a rua e preparava o ataque. Juntava a saliva com gosto, mexendo as bochechas. Mirava e… flupt.. acertava bem na cabeça dos passantes desavisados. Difícil era não rir alto e acabar de vez com a diversão.A caminho de casa, o tal vírus iconoclasta a tomava de supetão. A vítima era o Palácio Karnac, sede do governo do Piauí. Bené se aproximava sorrateira, já antecipando o prazer da travessura. Encarava os guardas com cara de desafio, agachava-se bem junto da calçada e deixava fluir toda a urina guardada durante a aula. Repetida tantas vezes a cena, mal dobrava a esquina e os guardas já diziam, conformados: “Lá vem a menina mijona”.

Sempre dominou as técnicas de ser arteira e generosa. Era a que compartilhava frutas e bolos e a que, ainda criança, costurou sozinha a calça comprida de uma cliente: não podia deixar a mãe  doente descumprir a palavra dada. Um enigma da natureza, feita de compaixão e de risadas.Bené cresceu e se apaixonou. Foi num baile que o conheceu. O som da sanfona, o ritmo da festa, o colorido das roupas, a dança e o rosto do rapaz não lhe saíram da cabeça por semanas. De tarde, banhada e cheirosa, ficava na janela só para vê-lo passar. Ele caminhava devagar e, quando chegava próximo da janela, levantava os olhos timidamente. Era só um olhar, mas Bené sentia que seu coração se desfazia de alegria. Deu um jeito de jurar a ele que ficariam juntos. Promessa que jamais pôde cumprir. O pai a havia prometido ao amigo Toinho. Dessa vez não ousou fazer birra. Casou com ele. Engoliu o choro e abraçou o destino que não escolhera.

Benedicta era o seu nome, mas em razão do casamento aproveitou para corrigir o excesso de letras. “Não sei pra que esse “c” bem no meio do meu nome!”. Tornou-se Benedita ou apenas Bené. Para os mais íntimos, Benezinha. Na rua Bahia todos a conheciam e não mais pelas travessuras: – Bom dia, Dona Maria, acredita que errei a a mão e fiz comida em excesso? Para não estragar, eu lhe trouxe aqui um pouco.

Teve sete filhos com Toinho: Marisete, Mila, Carlos, Tânia, Marcos, César e Fernando. Um mundaréu de meninos, que eram seu xodó, seu bem e alegria. Sem contar os agregados, filhos do coração, amados do mesmo jeito. Bené tinha acabado de dar à luz o sétimo filho quando descobriu que Toinho a traía. Palavras são inúteis para traduzir a indignação da mulher que havia aberto mão de um amor.

– Fique avisado: deste dia em diante você nunca mais vai encostar um dedo em mim.

Toinho achou melhor esperar a tempestade abrandar e concordou, com um gesto de cabeça. Meses depois, numa noite calorenta, resolveu burlar o trato. Como quem não queria nada, deslizou a mão na curva da cintura enquanto a mulher dormia. O que se seguiu foi um espanto. Bené pulou da cama como se perseguida por todas as fúrias e se pôs a berrar: “Socorro, socorro, ladrão, ladrão!”. As crianças correram todas para o quarto do ex-casal, e ela, triunfante, saboreou as palavras: “Eu te avisei que você nunca mais tocaria em mim!”

De fato, Toinho nunca mais encostou nela. Mudou-se para a casa da Cristiane. Viviam lá os três: Toinho, a amante e Silvinho, o marido dela. As más línguas da cidade não descansavam. Diziam que, nas noites mais frias, Silvinho saía pra cortar palha e o Toinho assumia o lugar do amigo. Ele se justificava. – É só por questão de humanidade: faz muito frio naquela casa. Os fofoqueiros se esbaldavam: a casa da Cristiane entrou para a história como o único lugar frio de Teresina.

Os anos correram na esteira do tempo e Toinho continuou exilado da intimidade de Bené. O ostracismo tinhoso parecia não ter fim. Ela guardava no pote do coração não só a lembrança da traição com a lambisgóia, mas a imagem do antigo amor. Este, conformara-se a Bené, não se cumpriria jamais, pois ela não era mulher de aventuras e de aprontar filha-de-eguices com o pai de seus meninos. Sequer lhe pronunciava o nome, jurava que jamais o veria.O caprichoso destino, dado a pregar peças, quis diferente. Calhou da Bené reencontrar seu grande amor. Passeava com a filha mais velha quando o viu. Coração disparado, olhou diretamente para ele. No meio da rua, os dois se encararam em silêncio. Era a primeira vez que se viam após o rompimento. Bené estava muda. Não lhe vinham palavras, um oco na mente diante daqueles olhos acusadores. Ele abriu a boca lentamente, ela prendeu a  respiração. De repente, a voz rouca de raiva ressoou alta. Não falava. Cantava.Mentirosa, fingida. Mentirosa foste tu, que um dia perante Santa Maria prometeste ser fiel. Quem mente perde a razão, acaba de déu em déu: não tem sossego na Terra e nem perdão lá no Céu. A tua promessa faliu, tua jura também se quebrou. Mentiste ao meu coração, mentiste a Nosso Senhor. Eu sei que tu vives bem, sem ter os carinhos meus,  mas não pode ser feliz sem ter a graça de Deus. Mentirosa, fingida…Bené sentiu uma agonia subir por dentro do peito. Já ia transbordar dos olhos, mas ela não era de chorar na rua. Não ela. Arrastou a filha pela mão e entrou em casa batendo a porta. Cozinhou muito nesse dia: caprichou no picadinho com abóbora, na farofa de carne seca e no arroz escorrido. Pôs a mesa ainda sentindo o nó na garganta, ouvindo a voz do Nelson Gonçalves de Teresina proclamando sua vingança em plena rua. Quando a prima ensaiou tocar no assunto, calou-a lhe enchendo o prato:

– Quieta, coma! Pegue mais do picadinho. E coma essa abóbora, que é pra ficar inteligente!

Os anos bordaram pontos em cruz no tecido da vida. Bené seguiu com a mesma língua afiada e veloz. Envelhecia compartilhando tudo o que tinha, mas altiva: não baixava cabeça para gente atrevida. As estripulias da existência lhe ensinaram autossuficiência afetiva: – O único lugar em que a gente encontra a felicidade é no nosso coração, filha. Não imagina que vai achar isso no coração dos outros. Dizia para a neta Ana, que a espiava com adoração nos imensos olhos de castanha e de mel.Quando o marido ficou doente, Bené capitulou: “Traz pra cá que eu cuido: o traste é meu”. Três AVCs tinham abatido o Toinho. Caminhar era difícil. Ele, com medo de morrer, gritava: “Bené, me perdoa!”. Ela, imperturbável: “Eu já te perdoei Toinho, mas vá para os quintos dos infernos”. Ele reagia tacando nela a bengala. Bené agarrava o cabo e o derrubava, sem dó: Abusado! E assim iam os dois, até o dia em que descobriram câncer do Toinho. Bené ali, ao lado dele, fazendo comida, lavando as roupas.

No dia que Toinho morreu, a ambulância chegou para levá-lo. Ele disse com doçura nunca vista: “Me perdoa, Bené.” Ela baixou a cabeça e falou com voz sumida: “Pode ir Toinho. Eu já te perdoei”. Ele entrou amparado na ambulância. Ela seguiu o carro, a pé, até o hospital. Ao chegar lá, olharam-se longamente, ele suspirou, fechou os olhos e deixou de viver.

Vieram mais rugas, mais brancos cabelos, mais pontos em cruz no xale da existência. Quis ela ver o antigo amor. O genro Josino – único a quem ela disse o nome do antigo namorado – o procurou durante meses. Num fim de tarde escancarou a porta e anunciou esbaforido.- Sei onde ele está. Vamos vê-lo agora. Venha, o carro está à porta. Agora é a hora.Bené caminhou lentamente até o espelho. Os dedos percorreram os riscos do tempo na face, os olhos escondidos na pele das pálpebras. Onde estavam o brilho, o viço de ontem, a fartura das tranças? Presos na memória e nos retratos, por certo. Embalados em papel de seda no coração.

Do espelho, a imagem pálida riu um riso acanhado. Lembrou de um outro rosto jovem. Bigode, longas pestanas, corado e rijo. Tão belo.

Abriu a cristaleira, ainda de costas para o genro. Pegou a pilha de pratos. Com a voz ligeiramente trêmula, chamou a neta.

– Vem, Ana, vamos jantar. A noite está vindo e parece triste. Não convém sair e perder os encantos do dia.

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Imagem: A Noiva, de Almeida Junior. 1886. Coleção particular.