Decidi dar a Montreal a chance de ela mesma se revelar a mim. Obviamente li um pouco sobre a cidade, mas já sei que os lugares podem ser bem diferentes do que imaginamos ou as outras pessoas os percebem. Assim, esse diário é sobre as minhas impressões acerca da cidade na qual vou morar por um ano.

Aqui não sou turista nem moradora definitiva: estou no limbo. Portanto, a casa deve ser mobiliada com parcimônia. É uma bela experiência viver com menos. Minha casa no Brasil tem milhares de livros, dezenas de roupas de cama e mesa, alguns aparelhos de chá e centenas de objetos indianos, chineses, japoneses e gregos – minha caverninha de Aladim, repleta de pequenas quinquilharias que brilham. Aqui será diferente.  Aproveito para exercitar o desapego.

Ao chegar, trazia 22 livros, dos quais oito de literatura (todos russos: quatro Turgueniev, um Tolstoi, um Dostoievski, um Gorki e um Tchekhov), dois sobre crítica literária (Harold Bloom e Christopher Vogler) e os demais relacionados à pesquisa para o meu livro. E me sinto um tanto perdida sem meus livros, filhos e a Loni, meu cocker spaniel louquinho. Parece uma outra vida.

Nessa nova existência há calçadas cheias de neve, um silêncio profundo, vizinhos quase invisíveis e esquilos na janela (dei-lhes o nome de Tchekhov e Gorki; e descobri que vivem pouco: quando eu deixar Montreal eles terão chegado ao fim de sua curta vida). Do Brasil vêm os ecos distantes de um país despedaçado. Olho para a bandeirinha minúscula sobre minha mesa e me vem uma súbita vontade de, como Vinicius de Moraes, beijar os olhos de minha pátria tão maltratada, de niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…

Dia 1. Diante dos clichês: o frio canadense

Gorki, mon ami!

Óbvio que a primeira coisa que encontrei foi o frio. Na chegada, -8 graus. Os casacos que eu trouxe do Brasil e mesmo um velho casaco europeu não serviriam. Alex me esperou no aeroporto com uma parca. No dia seguinte compramos um sapato adequado. Problema resolvido: você anda pela rua sem sentir frio no corpo ou nos pés. O sapato (comprei numa das promoções que existem por aqui nessa época do ano) é forrado, muito macio, bem quentinho e – o melhor de tudo – está preparado para enfrentar até 25 graus negativos. O dono da sapataria, um canadense simpaticíssimo, nos ensinou que é necessário usar um impermeabilizante em spray para a minha botinha e uma cera (Dubbin/Graisse) para proteger os sapatos masculinos. É que o sal que é jogado nas ruas para derreter a neve (leia aqui sobre o processo completo) também estraga os assoalhos e os sapatos. Estes ficam com uma camada branca e aspecto de gastos. Com o tempo, racham e quebram. A cera os deixa novinhos em folha.

Andar na rua é ruim por causa do vento que agride a pele. Se você estiver disposto a  abrir mão da vaidade, tem uma espécie de touca ninja que resolve completamente o problema. É só escolher: você quer ficar bonito na rua e fazer selfie com o rosto machucado ou quer parecer um japonês da época feudal, mas confortável e feliz? Optei pela proteção nipônica.

Quanto às casas, são aquecidas. Ninguém passa frio.

O que aprendi hoje: A porta das residências do bairro em que moro é dupla e entre elas há um pequeno espaço de mais ou menos um metro de comprimento. Se for visitar um canadense, não esqueça: abra a primeira porta, tire os sapatos (a neve vai molhar o chão), feche a porta e só então abra a segunda porta. Isso evita que o calor escape e permite que você possa retirar os sapatos sem correr o risco de transformar seu lindo pé num picolé com cinco dedos. Em seguida, tire o casaco pesado, pendure-o no local adequado e alegre-se, pois você está num ambiente bem quentinho.

Dia 2. Francês, québécois ou inglês?

Entendo no máximo 50% do francês falado no Quebec, um idioma anasalado e com ritmo mineiro. Acostumada aos franceses, que reviram os olhos à menor pronúncia incorreta, fui agradavelmente surpreendida pelos canadenses de Montreal, que não se sentem nem um pouco ofendidos com a pronunciação diferente (ooops, lembrei que eles também sofrem bullying dos franceses por causa do sotaque). Quem fala inglês troca facilmente para o outro idioma e a vida segue.

O que aprendi hoje: É óbvio que nem todo mundo é assim tão bacana. Nesses tempos em que aderir a uma postura desagradável parece ser uma epidemia mundial, já ouvi histórias de um grupo minoritário que adora dificultar a vida dos estrangeiros.

Dia 3. Comida!

Fomos a um mercado ótimo! Situado no coração de Little Italy, o Marché Jean-Talon é um dos mais antigos mercados públicos de Montreal. Inaugurado em maio de 1933, ele inicialmente era chamado de “Mercado Norte” antes de se tornar, em 1983, Jean-Talon, em homenagem ao primeiro intendente do mercado da Nouvelle-France.

O local já foi eleito por mim como meu paraíso particular: uma quantidade imensa de verduras e legumes lindos, enormes, coloridíssimos. Brócolis verde-escuros, endívias, cogumelos frescos de todo tipo, aspargos, rabanetes rubros, pimentões verdes, amarelos, alaranjados e vermelhos, cenouras coloridas e batatas idem. Me deu fome imediatamente. Fiquei com água na boca apreciando tangerinas cheirosas, peras suculentas, mangas, melancias e maçãs, além de frutas vermelhas (morangos, mirtilos, cerejas e framboesas). No Jean-Talon reúnem-se as banquinhas de produtores locais de frutas e legumes, além de muitas lojinhas de azeites finos, queijos e sucos orgânicos de maçã e cranberry, carnes especiais e frutos do mar fresquinhos. Apesar de ser um dos maiores mercados da América do Norte, a atmosfera é a de uma feira de aldeia, um lugar familiar e muito aconchegante. Ao redor do Jean-Talon, dezenas de lojas de produtos orientais. Há de tudo, de molho tailandês e sojas deliciosas temperadas à moda indiana a produtos japoneses, cambojanos, vietnamitas e chineses.

Gastamos 60 dólares canadenses (aproximadamente 150 reais), enchi o carrinho de compras e calculo que essa comida vai ser suficiente para a semana toda. Cozinhei me sentindo uma espécie de Jamie Oliver tabajara: os tomates enormes e bem vermelhos caem na panela e rapidamente se tornam molho sugo para a massa: desmancham-se igual a mim diante de Shakespeare. Mas, voltando à comidinha, jantamos também cogumelos na manteiga, cortados bem fininhos, aspargos, salada de rabanetes e mäche (a folha verde que eu amo e jamais encontrei no Brasil). Alguns a chamam de alface de cordeiro. Tem um sabor de noz bem característico, cor verde escura e textura macia. É maravilhosa. Quase chorei ao encontrá-la. De sobremesa, as frutas vermelhas que comprei com um iogurte grego que é quase sólido e muito saboroso.

😉

O que aprendi hoje: Acho que no Canadá é possível comer bem e emagrecer. 

Para ver fotos do Marché Jean-Talon, clique aqui.

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Texto publicado em 5 de fevereiro de 2017.