“O Brasil é muito impopular no Brasil” – Nelson Rodrigues

Lembro ainda hoje: a tarde, num parque de Montreal, estava adorável. O público se esticava no gramado, esperando a apresentação das três principais orquestras da cidade. Mais de 400 músicos e cantores no palco. O sol se punha, pincelando de rosa e laranja o céu clarinho. Vivaldi, Leonard Cohen e Orff enchiam o ar. De repente, o coração deu um salto, veio até a boca e sussurrou algo nos meus ouvidos: os primeiros acordes de uma cantilena. Carregava consigo uma voz de uirapuru, peixes coloridos e a lua surgindo sonhadora e bela em meio às árvores da Amazônia imensa.  A Bachiana número 5, de Villa-Lobos. E o Brasil encheu a terra canadense com seu canto doce e suave. Nos meus olhos, a saudade se fez líquida.

Ah, o Brasil, que mania terrível ele tem: fica escondidinho dentro da mente e, de repente, zás, dá um pulo, agarra o coração da gente e sai correndo, dando saltos e risadas. Uma vez fez isso comigo no meio de uma loja de Montreal: bastou uma plaquinha inocente, onde estava escrito “Fabricados com amor no Brasil”, para eu derreter.

O danado do Brasil tem lá seus emissários, artistas treinados na milenar arte de nos fazer sentir saudades: Heitor Villa-Lobos, Elis Regina, Cecília Meireles, Pixinguinha, Tom Jobim e Machado de Assis. Se sair do Brasil, fuja deles. Finja que não viu o Vinicius escrevendo tristíssimas cartas de amor para a terra distante e ignore a Cecília contando, em poesia sentida, os dissabores da Inconfidência Mineira. Nem pense em ouvir as Bachianas e concertos do Villa. Fique longe do Trenzinho do Caipira, da Melodia Sentimental e da Alma Brasileira. Cuidado com perigos como a Mooca no sotaque do Adoniram, a cadência bonita do Ataulfo, a poesia de Bandeira e o orvalho caindo na cama de folhas de jornal do Noel. Sem choro nem vela. Não ouça Elza Soares e Paulinho da Viola – esses aristocratas musicais são agentes muito hábeis nas artimanhas de sequestrar corações. E nem cogite ler o velho bruxo do Cosme Velho ou aquela prosa encantatória do Guimarães Rosa.

A nossa terra brasileira é como mãe: a gente briga, reclama, mas ela está lá, impressa no DNA e nas memórias. Diante dela, difícil ter atitudes mornas: ou a criticamos ou a idolatramos com loucura. Uns acham que é perfeita, outros apelam para interpretações freudianas e a culpam por todos os azares que enfrentamos. Coitada, uma vítima de nossa passionalidade. E se ela falta, como dói.

Sou uma brasileira meio atípica: não sei sambar, não sinto saudade de feijoada e me adapto super bem em qualquer lugar que more. Mesmo assim, bastam uns poucos meses longe do Brasil, ainda que acompanhando todo dia o desenrolar infinito das nossas mazelas, conflitos e tragédias, para eu me apanhar às lágrimas diante uma plaquinha de loja ou de uma soprano cantando Villa-Lobos… em francês.

Ultimamente tenho pensado no Brasil associando-o à teoria das janelas quebradas (leia aqui). Diz essa tese que se as janelas quebradas de um prédio não forem reparadas, a tendência é que vândalos quebrem outras. Após algum tempo, estes poderão entrar no edifício, ocupá-lo, degradá-lo e incendiá-lo.

Observo como janelas partidas o crescente desânimo com que falamos do país e o êxodo dos cansados que escolheram deixar para trás a corrupção endêmica, a malandragem, a má educação, o lixo jogado nas ruas, a suspeita de desonestidade permeando cada serviço contratado. Já não suportamos a baba odienta dos embates políticos, a mediocridade que se apossou do cenário cultural e o medo de ser assassinado espreitando a cada esquina. E dizemos isso diariamente. Trombeteamos a toda hora nossa insatisfação.

Abatidos pela falta de incentivo à ciência, pelo cenário adverso e pelo cansaço, nossos melhores cérebros deixam o país. Cientistas sem apoio à pesquisa, professores de universidades públicas que mal suportam as agendas político-partidárias e o mastodonte da burocracia contaminando o processo educativo, médicos atemorizados que preferem deixar carreiras bem sucedidas para reiniciar do zero em outros países. A diáspora é uma gota a mais no nosso cálice de amarguras.

Cada manifestação de ódio e exaustão, cada episódio de violência ou escândalo de corrupção é uma janela que se quebra no edifício brasileiro. O conjunto de críticas é reinventado a cada dia. Ele nutre o sentimento de que nosso país não tem mais jeito. E me pergunto o quanto temos de responsabilidade no cenário geral de desesperança, já que oferecemos apenas a reclamação e não o gesto para reverter o quadro?

Penso que talvez nos falte amor à terra. Sinto um pouco de inveja, admito, cada vez que vejo o orgulho com que alguns outros povos falam “meu país, minha pátria, nossa Nação”. Sinto ali amor diferente, do tipo que se emociona com a terra em que nasceu, mas que se ergue e trabalha pelo bem estar coletivo.

A arte de amar um país não inclui cegueira e comodismo. Ao contrário: faz parte do processo amoroso saudável manter os olhos abertos e o senso crítico aguçado, mas sem cometer a ingratidão de atribuir a toda a Nação o que é responsabilidade de alguns de seus habitantes. Não fazemos isso, como também não ultrapassamos os limites do ativismo de teclado para mudar o cenário que nos incomoda. Veja, por exemplo, a questão do voluntariado.

Voluntariado, no Brasil, é quase sempre uma atividade religiosa ou está limitada à distribuição de alimento a mendigos ou a visitas periódicas a asilos. Em outros países, a população se engaja em atividades que ajudam a reduzir as desigualdades sociais, a estimular a reflexão e o estudo, a preservar a cultura, a limpeza e a ordem do ambiente. Há voluntários em museus, parques, zoológicos, escolas públicas, clubes e hospitais.

O espírito do voluntariado é o de trabalhar ativamente e dar um pouco de si para a coletividade. Sem esperar retorno, agradecimentos e elogios públicos. Faz-se por espírito de cidadania, por desejar de fato construir algo positivo para o seu bairro, cidade e país. Por isso há grupos que dão aulas para crianças, aposentados engajados em ensinar algo no qual se especializaram, gente que colabora fazendo jardins e hortas públicas, atua como guia turístico na cidade, explica sobre arte nos centros culturais. Cada um  oferta a excelência que cultivou ao longo da vida, disseminando a cultura do trabalho, do estudo, da organização, da pontualidade, do senso de dever.

No dia em que deixarmos a falsa visibilidade da mera reclamação na internet para trabalharmos em favor de nossa comunidade, talvez um raio vívido, de amor e de esperança, desça novamente sobre a nossa terra tão sofrida. O Brasil espera que comecemos a reparar as janelas quebradas. Não os políticos, não os ocupantes transitórios de governos. Apenas nós, tomando nosso destino nas mãos.

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Foto: Manoel Neto. Rio Oiapoque. Fronteira do Brasil com a Guiana Francesa”.

Foto: Manoel Neto. “Rio Oiapoque. Fronteira do Brasil com a Guiana Francesa”.