Entrei no Jardim Botânico de Montreal com os olhos arregalados. Alamedas limpas, iluminadas pelo sol, cobertas de canteiros.  Na minha imaginação, trazia meu amigo Túlio Mendhes comigo. Imaginação eu disse? Diante de um roseiral, ouvi uma voz risonha, com sotaque mineiro: “Parece um quadro de Fragonard ou os canteiros de Maria Antonieta em Versailles, não?”.

“Túlio?”

“Em carne, osso e cadeira de rodas para servi-la, madame”.

“Não é possível. Minha vida virou um filme de Kurosawa”.

Túlio já estreou no passeio contando piadas, ouvindo histórias e fazendo cara de impressionado. Olhamos juntos as rosas brancas, as vermelhas como sangue, as amarelo-ouro e as róseas que brotavam de cercas, grades e enormes vasos. Um perfume delicado carregado pela brisa. Túlio quis colocar uma rosa atrás da orelha. Não deixei: “Tá maluco? Vão nos expulsar daqui!”. Ele riu.

Logo em seguida, surgiu o jardim japonês. Tinha uma casa de chá, fontes, lanternas tradicionais, pedras e árvores vindas de longe. Uma delas dobrava-se até o chão, como uma criança travessa. Sob a ponte encurvada que sempre lembra a casa de Monet, carpas vermelhas nadavam junto aos patinhos. Tcha, tchac, batem as asas dos patinhos. Cluc cluc, fazem as boquinhas das carpas. O vento revira os cabelos da gente enquanto olhamos a água despencar das cascatas sobre um lago verde-azulado. Mais tarde, enquanto admiramos a casa envidraçada que parece integrada à natureza, Túlio fala: “Vamos voltar para assistir a cerimônia do chá, né?”. Vamos sim. No sábado.

Encontramos a Hideko na casa de chá. Depois de gastar nosso francês durante uns 20 minutos ela nos perguntou de onde éramos. Brasil! Eeeee, festa, abraços. Hideko nos contou histórias lindas e surpreendentes. Há 35 anos em Montreal, ela, formada em História da Arte, com especialização no Japão, nos explicou sobre os métodos de fabricação e preparo do chá segundo a tradição japonesa. Descobrimos que o arroz “japonês”que consumimos no ocidente na verdade é plantado e colhido na Califórnia e que o verdadeiro macha é caríssimo e pouco tem a ver com o produto que bebemos. E a raiz forte? Também falsificada: tem tudo ali naquele pozinho, exceto wasabi. Coisas do governo do Japão, que controla a produção e o comércio de arroz e demais produtos com mão de ferro. Segundo Hideko, arroz japonês de verdade, só no Japão mesmo. E o sabor é inteiramente diferente. Por isso os japoneses pagam caríssimo pelo seu arroz. Quanto ao produto californiano, ele existe no Japão também: custa quase três vezes mais barato e é basicamente usado para biscoitos e outros produtos.

Hideko nos contou, ainda, sobre seus antepassados, que foram enganados pelos governos brasileiro e japonês. Convencidos de que vinham para o paraíso, renderam dinheiro ao Japão e tiveram retidas suas cartas com pedidos de socorro aos parentes. Muitos não sobreviveram às saudades de casa.

Ainda impressionados, caminhamos mais um pouco e nos deparamos com árvores que lembravam bonsais e vimos folhas tão grandes que pareciam sombrinhas! Logo surgiu uma cena que parecia uma estampa japonesa viva. Um belíssimo lago, cercado de verde. Cenário de sonho e de encantamento, tradução da paz.

Foi difícil deixarmos o jardim japonês, mas havia outras aventuras. Logo em seguida, um bosque das primeiras nações do Canadá. Os caminhos eram estreitos com árvores nativas, milhares de espécies de bordo (a árvore símbolo do Canadá), pinheiros de todo tipo, flores selvagens e frutinhas (framboesa, mirtilo, cerejas). Fechamos os olhos e, em meio àquele silêncio de mato, os passarinhos piavam e um som de água correndo encheu o nosso coração de serenidade de novo.

Debaixo das altas árvores é tão refrescante. Vimos no meio da mata uma exposição de canoas, cestas e bonecas dos Inuits e dos outros povos que habitavam a região canadense mais gelada. Antigamente chamavam a eles de esquimós. Hoje esse é um termo considerado de mau gosto. Também vimos como os povos indígenas construíam a base de cedro das pitis (as tendas em formato cônico) e como amarravam as madeiras todas juntas lá no alto. Assistimos a um documentário muito triste sobre a degradação cultural dos povos tradicionais. Tulinho, sempre cavalheiro, me estendeu um lenço.

Alex dormia com a cabeça recostada numa pedra, quando eu e Túlio decidimos experimentar um chá (na verdade uma tisana) que era bebido pelos povos nativos. O guia nos explicou: é feito com uma erva facilmente encontrada por aqui e quase todo mundo, nos tempos modernos, acha que é apenas uma espécie de grama. Bebemos. Estava geladíssima, mas tinha gosto de nada. Zero. “Parece água”, falei. “Ah, mas tem notas delicadas de floresta canadense e de espírito dos antepassados, além de um sabor quase oculto de tempo-que-não-volta-mais”, anotou Tulio solenemente. Sim, tem razão.

No jardim Alpino, as florezinhas surgiam delicadas ao longo de um caminho acidentado e cheio de pedras. Umas pareciam parentes de espigas de milho, outras eram azul-royal, umas pareciam umas rosinhas verdes e suculentas, e algumas pareciam pequenos sinos pendentes. Tivemos de carregar a cadeira de rodas porque um aviso dizia: “Flores muito frágeis. Cuidado! Fique na trilha” Paciência. Chegamos a uma cascata artificial e nos aboletamos no banco estrategicamente situado em frente à queda d’água. Estávamos lá, em silêncio, desfrutando o som da água despencando, quando ouvimos risinhos. Uma família chinesa chegava. A menina tinha longos cabelos escuros e vestia um vestidinho de verão, leve e esvoaçante. Sorria muito e riscava o chão com um graveto. Atrás dela a mãe, observando tudo, e um irmãozinho que não tirava as mãos dos bolsos mesmo quando subia em uma pedra e lutava para manter o equilíbrio. Por fim chegou um rapaz, magro e bonito, com uma câmera fotográfica. Junto com ele, um casal idoso. O rapaz pediu a eles que posassem diante da cascata. A senhora arrumou os cabelos e o homem empertigou-se e a abraçou. Sorriram.

Sentados no banco, nos entreolhamos deliciados com a cena. Consegui ver o rapaz, daqui a muitos anos, olhando aquela fotografia e lembrando-se de um longínquo domingo em que todos estavam vivos e felizes.

A próxima etapa foi um jardim de lírios, com lagos e gramados verdes onde havia românticos banquinhos. Sentamos lá e ficamos por um bom tempo de olhos fechados e canelas bem esticadas, pegando sol no rosto. Uns camaleões. Ou gatos, sei lá. Vamos ver o grande lago? Sim!

O lago coberto de lótus e ninfeias estava lindo no meio da tarde. Sentamos num banco entre dois salgueiros. Um silêncio enchia o momento de solenidade e de harmonia. Lá de longe, sapos coachavam e a brisa despenteava a gente. Ficamos por um longo tempo contemplando aquele cenário de sonho. O tronco do salgueiro tem veios em espiral, como se algum modelador divino o tivesse torcido, daquele jeito que se faz com as roupas molhadas. Fui espiar de perto, pois adoro bisbilhotar a infinita diversidade da pele das árvores. Lindo, decretei. Túlio sentou-se numa grande pedra dentro do lago e ficou olhando os juncos e ninféias. Uma delas estava se abrindo para a vida. Parecia uma estrela. Alex tocou, com a ponta dos dedos, as folhas que boiavam e elas resistiram a afundar. Os lótus e flores em meio à água escura e lodosa me lembraram de Krishna, no Bahagavad-Gita: é uma bela metáfora a de viver em meio à lama do mundo preservando a pureza e a extraordinária beleza da alma.

Empurramos a cadeira do Túlio pelas alamedas largas. Numa ligeira descida, fizemos uma corrida louca, eu me apoiei numa parte qualquer e derrapamos ladeira abaixo, gargalhando e tremendo de medo. Nos estabacamos no fim da rua. Ninguém quebrou nada.

Ainda rindo, atravessamos o portão de saída. Alex conferiu no celular o número de passos: 19.170! Cadê o Túlio? Estava treinando tango em cadeira de rodas com uma guapa argentina que conheceu enquanto comprávamos os tickets do metrô. “Vão na frente, amigos. A gente se encontra no próximo passeio!”.

Para ver as fotos do passeio, clique aqui: https://www.facebook.com/sonia.zaghetto/media_set?set=a.1791385924209991.1073741853.100000158018771&type=3&pnref=story