Sonia Zaghetto
Alberto nasceu com asas invisíveis pregadas nas costas. Desde pequeno, o menino pássaro sabia que poderia voar. Conhecia tudo de aves. Falcão, gavião, andorinha e beija-flor não tinham segredos para ele. Durante horas observava asas, apreciava vôos e acariciava penas. Há aqui uma ciência – pensava.
Alberto também amava as máquinas. Consertava tudo: máquina de costura, tear e câmera fotográfica. Às escondidas do pai dirigia loucamente a locomotiva que levava o café da fazenda para a cidade.
Em meio a árvores e ninhos, lá ia Alberto sentindo saudade dos céus. Olhava montanhas ao longe, imaginava a copa das árvores vistas de cima, sonhava com nuvens.
– Se até besouro voa, por que eu não posso voar?
– Porque gente não voa, oras. Pessoas não têm asas! Responde a Maria, doceira de mão cheia, com sua lógica implacável.
– Pura bobagem, pensa Alberto. – É só uma questão de jeito.
Seus olhos de menino acompanham a fumaça que sobe do tacho onde Maria faz a geleia. O rolo esfumaçado escapa em direção ao céu.
– Um dia irei também… Um dia.
Os anos passaram. Um fiapo de barba começou a surgir no rosto de Alberto.
– Meu filho, você agora é um rapaz. Vou mandá-lo estudar em Paris. Professores particulares ensinarão a você a rainha das ciências, o futuro da humanidade: a engenharia mecânica. — disse Henrique Dumont, todo sisudo.
O pai nem havia acabado de falar e a mente de Alberto já voava longe. Lembrava daquela tarde de primavera quando viu pela primeira vez um balão. Imenso, cheio de gás, balançava-se suavemente em meio ao parque de exposições. Olhos pregados nas cores incríveis daquele instrumento de voar, Alberto decidiu na hora: aquele era o seu destino.
Brasil foi o nome de seu primeiro balão. Pequenino e valente como o próprio Alberto. De repente, ali estava o céu. Lastro solto, sobe e segue. Mergulha no azul profundo. Afinal, o menino das asas invisíveis estava voando em algo que ele mesmo construíra. Abriu as narinas e sugou todo o ar que podia. Um vento forte revirou os cabelos de Alberto, o balão oscilou perigosamente. Ele sorriu.
– Não importa, estou em casa.
Muitos balões e dirigíveis depois, Alberto tornou-se perito na arte de voar. Já havia desabado sobre as torres do Trocadero e até sobre o jardim bem cuidado do Barão de Rothschild. Enquanto recolhia a lona do balão, após queda espetacular, uma princesa brasileira mandou-lhe uma cesta de frutos e doces. Dentro, um bilhete dizia “Rezo a Nossa Senhora para que lhe proteja, senhor Alberto”.
Numa tarde, foi arrastado pelo vento para o alto mar, em Mônaco. O mar agitado tentava alcançar o cesto do balão com suas garras feitas de onda. Raios e trovões rugiam para assustá-lo. Em vão: andar entre nuvens – mesmo as cinzentas – era o ambiente de Alberto.
Voava diante de reis e plebeus, duques, princesas e mendigos. E agora até ditava moda! Alguém achou incrível o modo como arrumava o chapéu para impedi-lo de ser levado pelo vento. No outro dia, os parisienses copiaram o estilo. O relógio de bolso era desconfortável? Alberto pediu uma adaptação ao Sr. Cartier e o usou no pulso – moda que atravessou os séculos.
Alberto dominou a arte de controlar balões. E os balões – que conheciam as asas invisíveis de Alberto – o obedeciam sempre.
– Quero voar em torno dessa torre. E vou fazer isso com absoluto controle!
Fez!
O Prêmio oferecido por um certo Sr. Deutsch – 100 mil francos – foi distribuído alegremente entre operários e mendigos de Paris. Alberto não queria mais dinheiro. Para ele, bastava voar.
Até que um dia Alberto decidiu: chega de balões. Algo mais pesado que o ar poderá voar também. Desenhou dia e noite, mergulhou em palavras difíceis como aerodinâmica, deixou fluir a paixão pela velocidade, estudou o segredo dos motores. Construiu algo que era parecido com uma prateleira voadora. Testou, caiu, não funcionou, insistiu.
No outono, a prateleira – que tinha recebido o nome de 14 BIS – foi testada no campo da Bagatelle, em Paris. Alberto pedalou a geringonça, pôs força no embalo e, de repente a invenção, forrada de seda e feita com hastes de bambu, decolou. Voou 60 metros e pousou de novo.
Quem assistia ficou mudo de emoção. Depois daquele silêncio que durou alguns minutos, cartolas e chapéus foram atirados para o alto. Um grito coletivo de alegria escapou do peito da multidão assombrada: “O homem voa!!”. Alberto foi carregado em triunfo. Mocinhas piscavam os olhos para ele, rapazes o invejavam.
Logo, ele abandonou a prateleira voadora e criou um modelo novo. La Demoiselle – a libélula – era um avião-menina. Graciosa e pesando apenas 56 quilos, a Demoiselle flutuava sobre os céus de Paris, com suas asinhas delicadas.
Alberto estava casado, enfim. Encontrara a alma gêmea naquele avião elegante que se tornou modelo para todos os demais aviões do mundo. Saía para passear e levava a Demoiselle no banco de trás do carro, para espanto de toda gente. E, quando queria, pousava-a suavemente no jardim do castelo dos amigos. O avião estacionado à porta era o auge da paixão pela arte de voar. Paixão tão grande que ele jamais quis cobrar direitos autorais pelo uso da patente: todo homem deveria ter o direito de ter asas – mesmo que artificiais.
No Brasil, Alberto construiu uma casa de pássaro só para ele, empoleirada numa rocha íngreme. Mas algo começava a se partir no seu coração de menino: seu avião às vezes caía. E quando despencava lá do alto matava as pessoas e feria algo muito profundo no peito de Alberto. Ele não suportava a ideia de que pessoas perdessem a vida por causa de sua máquina de voar. Alberto começou a murchar.
Quando as guerras vieram e os aviões despejaram bombas sobre jardins e meninos, Alberto encolheu-se em sua casa encantada. Quando irmãos passaram a usar seus aviões para matar uns aos outros, a mente de Alberto se escondeu em um lugar muito escuro. Agora poucos se lembravam dele: aviadores mais jovens se destacavam e a invenção do avião foi dada a outros. Alberto não resistiu. Numa tarde de cinzas, abriu as asas invisíveis e partiu sem olhar para trás.
Se olhasse, veria a mim, que sonho com asas invisíveis. A mim, que te abraço nos longos vôos, quando o colchão das nuvens me espreita pela janela do avião. Ou quando ouço o ronco dos jatos da Esquadrilha da Fumaça e te reverencio, encharcada de orgulho. Ou simplesmente quando um vento sorrateiro me revira os cabelos num dia brilhante de verão e eu abro os braços, fingindo voar sobre ondas e casas, em um balão que divido contigo, meu Alberto.