Quando cheguei, meio metro de neve cobria as calçadas. Nas ruas silenciosas, um vento gelado fazia doer os ossos do rosto. A paisagem de cartão de Natal encantou meus olhos tropicais.
Aprendi de imediato que os canadenses são valentes. Inverno é a sua época mais produtiva: todos estudam e trabalham. O frio a ninguém paralisa – faz parte da vida. Os vizinhos não se intimidam de, às 7 da manhã, com o termômetro a -15 graus, saírem, munidos de pás, para praticamente desenterrar os carros e abrir o caminho obstruído pela neve. Trabalho encerrado, colocam a pá no porta-malas e seguem. Hora de trabalhar, deixar filhos na escola, tomar café na esquina.
Quando a neve é alta demais, as crianças menores são puxadas em pequenos trenós. Herdaram a valentia dos pais. Bochechas e narizinhos rosados surgem debaixo de gorros e casaquinhos, mas não choram ou reclamam. À tarde, os maiores voltam para casa com os pais – rindo e atirando bolas de neve. Nos parques, gente patinando, construindo castelo de gelo e boneco de neve, escorregando em trenós.Escrevi durante quatro meses vendo a neve se acumular nos galhos pelados da árvore em frente à janela. De vez em quando, um corvo brincalhão ou um esquilo travesso brincavam na rua. Como os animais amam o inverno! Os cachorros – especialmente os mais peludos – se divertem como se estivessem num playground.
No quintal de Nadine, minha vizinha, uma canoa vermelha coberta de neve aguardava o fim do tempo gelado. As árvores do quintal eram visitadas diariamente por passarinhos e pelos esquilos, que se equilibravam nos galhos fininhos ou nos fios de eletricidade. Verdadeiros acrobatas.Montreal é uma cidade com riquíssima vida cultural e decidimos sorvê-la até a última gota. Nossa programação iniciou em fevereiro e se estendeu ao fim de dezembro. Houve ópera e ballet, shows e concertos nas igrejas e teatros. Beethoven, Mahler, Bach, Mozart, mais Mozart, mais Bach, Villa-Lobos, Tchaikovsky, Zaz e o Queen.
Depois do longo inverno, veio a primavera. Demorou demais a se instalar. Imaginei que um dia acordaria e toda a neve teria ido embora. Não foi assim. A neve derreteu sem pressa, até que os jardins e arbustos apareceram. A cidade se cobriu de flores, mas ainda chovia muito. Dentes-de-leão fizeram um tapete verde-amarelo na grama nova dos parques. Aprendi que há um ciclo para as flores. Primeiro vieram as tulipas, depois os lírios, hortênsias, jasmins, papoulas e cravos. No mercado Jean Talon, uma abundância de mudas. As floreiras das casas se encheram de narcisos e papoulas, azaléias, dálias, cerejeiras, lavanda, flor do campo. Comprei um pé de jasmim, a quem dei o nome de Ivan – homenagem a Turgueniev.
O Jardim Botânico de Montreal reabriu. Um deslumbramento de flores exóticas, mini lagos com lótus, jardins japonês, chinês, alpino e dos primeiros povos. No quintal, Nadine e Patrick prepararam a terra do canteiro, plantaram tomates e pepinos, limparam o chão, semearam a grama e colocaram do lado de fora uma linda mesa de madeira, com cadeiras.
As árvores se cobriram de folhas que iam surgindo timidamente. Acompanhei o nascimento dos brotos na “minha” árvore de bordo. Eram cachos de flores miudinhas e amarelas. Uma lindeza. A árvore que invade a nossa sacada foi a última da rua a florescer. Meu filho achou que suas flores meio avermelhadas eram sinal de doença. Eu a defendi como pude. Logo estava coberta de folhas brilhantes, verde-marrons. Era saudável, além de bela. Ufa.
Sempre amei árvores. Esta recebeu minhas carícias em todas as estações. Senti na ponta dos dedos a textura da casca e tentava imaginar que sob a grossa cobertura transitava a seiva – base do famoso xarope de maple. Sangue de árvore correndo célere nas veias que eu não via. Às vezes sentia vontade de beijar essa árvore – tão bela ela é. Contentei-me em fechar os olhos e acariciar-lhe folhas e o tronco onde os esquilos fazem morada.
Com a primavera, proliferaram pela cidade feiras de produtos usados e garage sales. Os montrealeses colocam banquinhas na porta de casa com produtos para doar ou vender a preço baratíssimo. Faxina e desapego.Passaram as flores e chegou o verão. Depois de meses calçada, pela primeira vez coloquei o pés descalços na sacada. Senti a madeira áspera sob a pele e entendi o frisson canadense pelo verão. De fato é uma sensação de liberdade e de felicidade.
Todo mundo parecia estar na rua. Mocinhas de short curto, aparecendo as polpinhas e calçando sandálias, gente treinando corrida ou tomando sol nas varandas. Nos parques havia piqueniques com balões, toalhas estendidas, cadeiras de plástico, pessoas lendo – só não havia bebidas, já que é proibido beber álcool na rua. Os bares e restaurantes enfeitaram as árvores com pequenas lâmpadas e fizeram terraços para o pessoal aproveitar o tempo bom. Havia sons de risos, churrascos no quintal de Nadine e de toda a vizinhança.
Fui também para a sacada e o vento revirava as folhas de minha árvore, me fazendo lembrar poetas. Os raios de sol a atravessavam e eu fui muito feliz só de vê-la, toda plena, com suas folhas brilhantes se sacolejando. Escrevi muitas páginas do livro com o sol iluminando meu rosto enquanto bebia smothies geladinhos. Ao meu lado, Ivan tomava sol e produzia dezenas de flores perfumadas. Nossa outra planta, Mathilda, havia crescido muito e seus cabelos verdes se arrastavam pelo chão.
Os esquilos sumiram. Vi alguns mortos no chão. Calor, acho. De vez em quando chovia e eu – assim como os demais vizinhos – corria a resgatar as roupas que esvoaçavam no varal.No quintal, Nadine e Patrick começaram a colher os legumes que os esquilos não devoraram. Levaram o barco para passeios em lagos. O jardim cobriu-se de cor: verde das muitas folhas, somado aos laranjas, vermelhos e roxos de flores e verduras. Dentro de casa adotamos uma mini aranha, batizada de Clementine.
Toda semana íamos buscar o panier de legumes orgânicos que compramos de um produtor. Primeiro vieram umas verduras magrelas, mas logo chegariam abobrinhas, brócolis, gordos tomates e uns produtos que nunca havia visto, como chou-rave e bok choy e feuilles de Kale. O milho era bem doce, assim como o feijão. As cenouras eram roxas, alaranjadas e amarelas, assim como as batatas. Tive de reaprender a cozinhar.
A vida seguia rica em descobertas. Assisti a um eclipse do sol na Universidade McGill e a um espetáculo do Cirque de Soleil, pilotamos caiaque, fomos à praia e vi de perto uma gorducha marmota. Visitei museus, parques indescritíveis, com gaivotas e patos nadando preguiçosamente. O velho porto estava mais belo do que nunca, fervilhando de turistas.
No Biodome, ficamos com saudade do Brasil ao nos depararmos com o ambiente recriado da floresta amazônica. Os mesmos cheiros, a mesma calorenta umidade, enfeitada de bichinhos brasileiros, como micos-leões dourados.
Passeamos nas margens do rio Saint-Laurent, observando como havia mudado a paisagem de inverno. A torre do relógio, antes cercada de neve, agora projetava sombra em um trecho da prainha onde as pessoas tomavam sol. Os guarda-sóis azuis, que ali permanecem mesmo no inverno, pareciam agora fazer sentido.Depois veio o outono. As frutas e legumes do panier tornaram-se bonitas, enormes, douradas. Também vieram em ciclos: primeiro abobrinhas e pepinos, depois berinjelas, pimentões, alfaces e couves. Em outubro, surgiram abóboras de todos os formatos e cores. Do amarelo claro ao laranja vivo.
As chuvas chegaram e as folhas caducas começaram a mudar de cor. A cidade se metamorfoseou de novo, com as árvores cobertas de vermelhos, amarelos e ocres. Nos parques, os cenários eram de sonho. Finalmente, começaram as folhas a cair. Quando a primeira folha de bordo toca o chão, soa o alarme no coração canadense: acabou-se o tempo bom. Eu ainda escrevia na varanda, apreciando o silêncio e a solidão deliciosa das tardes, enquanto minha árvore ia se despindo. Recolhi cada folha que ela me deu e enchi meus livros com elas.
No fim de novembro, Nadine e Patrick recolheram a mesa e as cadeiras, assim como a palmeira. A canoa vermelha voltou ao seu lugar e o canteiro foi coberto por um plástico. Já não se estendia roupas no varal. O silêncio começou a retornar.O Halloween chegou com ventinho frio. Distribuímos doces para as crianças e enfeitamos a casa. Vimos a marcha dos zumbis, em que os canadenses demonstram todo o seu potencial artístico e de maquiagem: a impressão que se tem é de estar num filme de Hollywood. É o real carnaval do país.
As folhas caíram mais e transformaram as ruas em tapete. Nos parques, faziam uma camada macia sob os pés.
O inverno trouxe tangerinas, frutas vermelhas, ameixas e blueberries. Quando caiu a primeira neve, meu coração deu um pulo. Era o fim. Calçadas levemente brancas que logo uma chuva lavava. Com a temperatura baixa, a camada de gelo torna-se um perigo: lisa e escorregadia. Minha árvore, sempre retardatária, era a única da rua a ainda ter folhas. E de alguma forma isso me enchia de incompreensível orgulho.
Compramos um pinheiro de verdade, um sapin, para a experiência ser plena. Enfeitamos com adornos baratinhos comprados no Dollarama (um lugar de preços capazes de fazer inveja a lojas de 1,99). Percorremos as igrejas e teatros ouvindo os corais do Festival de Bach, o Oratório de Natal, as muitas cantatas. Passei a escrever dentro de casa e tive pneumonia quando encarei as temperaturas impossíveis da cidade de Québec. Clementine – incomodada com o aquecedor – escondeu-se em algum cantinho da casa. Ivan e Mathilda foram transferidos para a casa de meu filho.
Veio o novo ano. 2018. É minha última semana nesta cidade que aprendi a amar. Olhando o ciclo completo, dei-me conta que o quintal de Nadine e Patrick foi meu recorte particular do ciclo da vida. Ontem o barco vermelho já acumulava muita neve. Quando ela derreter, já não estarei mais aqui.
Obrigada, Montreal. Levo você comigo, dentro do peito. Como uma flor de dente-de-leão, na comovente fragilidade de sua vida breve. Ainda que aparentemente tenha desaparecido dos meus olhos, arrastada pelo tempo e pelo vento, a flor-cidade permanecerá viva nas lembranças que carrego e nas fotografias – registros de um tempo lindo que jamais se repetirá.