I’ve seen things you people wouldn’t believe. All those moments will be lost in time, like tears in rain. * Roy Batty, Blade Runner

Ton-don-doom. Station Place des Arts.

O sinal sonoro do metrô avisa que a partida é iminente.

O casal  sorri cúmplice. Ela veste uma saia florida, botas pesadas e um casaco bege. A bolsa cinza está um pouco desgastada. O rapaz, de jaqueta de couro e cabelo espetado fala com ela em mandarim. Os dois mantém os olhos fixos um no outro. O braço dela roça o dele e a moça arruma os óculos que deixam ver as pálpebras gordinhas.

No assento ao lado da porta, a velhinha muito magra ajusta a gola do agasalho preto com botões dourados. Os cabelos ondulados e curtos estão completamente brancos.  Os olhos na face ossuda estão cravados na mulher que está em pé do lado esquerdo. Aparenta ter uns 40 anos, cabelos bem curtos e platinados, minissaia jeans sobre a meia calça preta com desenhos à altura dos joelhos. Está de perfil e a ponta da saia aparece sob o casaco grosso preto e branco. Adivinho um ar severo e demoro os olhos na mochila pendurada em um dos ombros, ainda com a etiqueta da companhia aérea.

Ton-don-doom. Station Berri-Uqam. Connexions avec les lignes bleu, orange et jeune.

A idosa se levanta devagar. A mulher de minissaia abraça delicadamente a cintura da velhinha e a conduz porta afora.

Entram duas mulheres. A mais velha tem um ar cansado, sapatos gastos e carrega uma pesada sacola. Na cabeça traz um turbante azul e roupas de estampas africanas sob um casaco preto. Gotas de suor porejam na pele escura.

A mais jovem ajeita os fios dos cabelos alisados. Um fio de sombra branca sobre as pálpebras superiores faz as vezes de delineador e contrasta com a pele que se assemelha a ganache de chocolate. Puxa o celular da bolsa e envia mensagens sem se deixar atrapalhar pelas longas unhas pintadas de cor-de-rosa. O sobretudo é muito elegante e as botas de couro combinam com sua figura delgada e com o lenço que esvoaça.

Ton-don-doom. Station Sherbrooke.

O homem loiro saca um livrinho vermelho do bolso e começa a ler em voz alta, olhando na direção do rapaz de casaco preto, com a gola levantada. Logo guarda o livro novamente e passa as mãos no rosto. Os dedos muito brancos e finos esfregam demoradamente as têmporas. Ele se inquieta. Levanta-se nervosamente, caminha até o fim do vagão. O olhar de um idoso de jaqueta bege o segue.

Ton-don-doom. Station Mont-Royal.

Entram a moça muçulmana e uma amiga. Usa um hijab de delicada estampa e empurra o carrinho do bebê gorducho. Muito magra, conversa discretamente com a amiga. Não deve ter mais que 23 anos e uns olhos imensos, castanhos. As sobrancelhas bem delineadas e muito escuras contrastam com a pele clara. Franze um pouco o nariz longo e fino durante a conversa. A amiga é menos bonita. Um rosto comum. Agasalha o bebê adormecido. Dentes pequenos surgem quando ela sorri em agradecimento ao homem de boné e forte sotaque québécois que lhe oferece o lugar.

Ton-don-doom. Prochaine station: Laurier.

Um gigante entra. Um rosto esculpido a cinzel por algum Michelângelo divino. O tom da pele tem um brilho de noite sem estrelas. Usa um sobretudo caro e um terno idem. De repente, abaixa-se para ouvir a filhinha. Arruma a mochila dela com gestos entre a precisão e a carícia. A criança sorri o riso banguela de quem perdeu os dentes de leite.

Ton-don-doom: station Rosemont.

A moça de roupas pretas, jeans rasgados e olhos muito azuis senta-se na cadeira em frente. Rói as unhas e bebe um líquido escuro numa garrafinha. Inquietação é seu nome. Angústia o sobrenome. Os olhos vagam, perdidos, e encontram os meus. Desvio o olhar. Ela rói as unhas.

Ton-don-doom: station Beaubien.

Desço.

E todas as vidas prosseguem: as que ali estavam antes de minha entrada e as que seguirão após eu deixar o trem.

Pintura: Gare Saint-Lazare, de Claude Monet.

* Vi coisas que vocês não acreditariam. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.