1920. Planícies de Alberta, Canadá.

Sete meses foi o tempo que a mãe de Pássaro Azul precisou para terminar o vestido. A neve chegou e se foi, as flores cobriram a planície e agora, somente com o sol de verão e as fortes chuvas, pôde concluir a roupa de lã vermelha, cor de sangue vivo, com duas fileiras de pequenos enfeites de porcelana em forma de gota. Quem olhasse de longe poderia confundi-las com fios de pérolas. Os olhos da mãe sorriram quando se demoraram sobre o peitilho do vestido bordado de miçangas brancas e canudinhos prateados. Quem, entre os Nakoda, teria vestido com tal beleza uma filha? A ocasião especial merecia roupas de gala.

Enquanto suas mãos teciam tranças nos longos cabelos de Pássaro Azul, o olhar da mãe por vezes se erguia em direção à relva ainda úmida de orvalho. As gotas eram minúsculos diamantes ao sol, o cheiro da terra se misturava ao do milho cozinhando e a silhueta das montanhas fazia desenhos no horizonte. A menina inclinou a cabeça e a mãe ajustou na testa a tiara rebordada de flores e pássaros.  Ao prender a pluma de águia na parte de trás da tiara, aproximou as narinas dos cabelos da filha e aspirou pela última vez o aroma familiar. Seus dedos ligeiramente trêmulos demoraram-se mais que o necessário nos fios sedosos e escuros.

Três horas depois, Pássaro Azul, a mãe e o pai chegaram à  construção  de pedra. Duas mulheres as esperavam. Vestiam-se de preto, da cabeça aos pés. Parecia que kayí, o corvo, havia se tornado gente – pensou a criança.

A primeira mulher, sorridente, tinha bochechas rosadas e gordas, que caíam ao lado da boca e se mexiam gostosamente quando ela falava. A outra, magra e empertigada, os contemplava com ar de satisfação, embora o azul metálico de seus olhos não traísse qualquer alegria.

O traço fino da boca e a mandíbula contraída fizeram o coração da mãe dar um pulo no peito. Pássaro Azul deu um passo à frente, com extremo cuidado para não sujar, na poça d’água, o mocassim bordado de flores e borboletas. Os olhos amendoados encontraram os da mãe e algo muito esquisito aconteceu: a garganta começou a doer à medida que o medo aumentava. Parecia que algo estava entalado dentro dela, impedindo a respiração, fazendo o coração parecer um tambor de festa.

Sentiu uns dedos gorduchos tocarem seus ombros e relaxou por alguns instantes. A dor na garganta diminuiu. A mulher de bochechas caídas a tomou pela mão e levou rapidamente para dentro do pensionato. Pássaro Azul sentiu a dor voltar. Quis gritar, mas aquela coisa atravessada na garganta a impedia. A mulher agora andava bem rápido e suas mãos se tornaram garras que esmagavam os pequenos dedos morenos. De repente, todo o ar do pulmão da criança escapou, juntou-se em duas palavras e venceu a distância:

– “Iii-na! Adê!”

Do lado de fora, os cavalos mexeram as orelhas e uma veia pulsou na testa do pai de Pássaro Azul. Um lamento escapou dos lábios da mãe: _

_ “Chunhuktchu! Filha!”.

_ “Iii-na! Adê! Mãe! Pai!”

Doze anos se passaram desde que Pássaro Azul pronunciou pela última vez as palavras de socorro.

Na cadeira desconfortável do Pensionato, ela cuidava da mulher que morria. Mantinha os olhos abertos enquanto as lembranças lhe chegavam suavemente. Aos 19 anos, já havia esquecido muitas palavras, o sabor da caça recém assada e o caminho para chegar ao cotovelo do rio.

De início não entendeu quando Sister Rosalynn – era esse o nome da mulher de bochechas rosadas – lhe retirou as roupas e as substituiu por uma camisola pálida e feia, sem cores nem vida. Talvez quisesse copiar o lindo vestido que a mãe preparara para Pássaro Azul chegar ao pensionato. Mas, ao tentar abordar o assunto, Ernestine, a vareta de lábios finos, a fez calar enfiando-lhe um chumaço de estopa na boca. A violência do gesto sangrou os lábios da criança e a tornou subitamente consciente de que as mulheres-corvo eram muito infelizes por não ter roupas tão ricas, sapatos tão finos e tiaras bordadas. As mulheres de preto sentiam inveja.

Teve certeza disso quando elas lhe cortaram os cabelos. Ao ver caírem ao chão as mechas que sua mãe penteava, entre canções e carícias, Pássaro Azul deduziu que as mulheres de capa escura não tinham cabelos e por isso puniam quem os tivesse.

A menina não demorou a compreender que falar resultava em castigos. Mal ensaiava as palavras no idioma dos Ĩyãħé Nakoda, bofetadas, beliscões e gritos surgiam. Passou a perambular pelos corredores, cabisbaixa e muda. As mulheres-corvo – havia muitas outras – apontavam coisas e diziam palavras incompreensíveis, num idioma desconhecido. Logo ela estava repetindo esses sons estranhos, que certamente eram palavras mágicas, pois quando se pronunciava uma delas, os adultos diminuíam os castigos.

À noite, antes de dormir, Pássaro Azul se perguntava o que havia acontecido às cores do mundo. Não entendia por que iii-na e adê a haviam deixado naquele lugar de cinzas e lágrimas. Talvez Wakã Taga, o Grande Deus, estivesse zangado com ela.

Pássaro Azul gostava de dormir. Quando sonhava, o mundo sem cores desaparecia. Voltava a ver as enormes montanhas recortadas contra o céu azul, os amarelos e lilases das flores na primavera, o laranja vivo das fogueiras que ardiam durante as celebrações, os bordados coloridos das tipis e das roupas de festa.

Muitas lembranças tinham se esvaído na ampulheta do tempo, mas Pássaro Azul ainda reconhecia quando uma tempestade se aproximava ou quando os gansos migratórios chegariam. No pensionato ninguém aprendia a contar o número de gansos do bando para saber se poderia retirar alguns dos seus ovos e incluí-los numa refeição, como iguaria muito especial. As mulheres-corvo eram muito ignorantes nesses assuntos.

Quando desabavam as grandes chuvas de verão, a menina recordava que o cervo logo sairia para as áreas abertas. Permanecer nas árvores significava que o som da chuva caindo nas folhas abafaria o ruído do predador que se aproximava. Todos – exceto as pessoas-corvo –  sabiam que essa era a hora de percorrer a floresta e matar o cervo. O povo de preto também apreciava a carne dos cervos, mas os matava na época errada, no meio da estação de acasalamento. “Logo não haverá mais cervos”, temia. E sentia uma profunda compaixão pelos bichos e pelos homens.

Pássaro Azul não notava qualquer respeito dos corvos humanos pela natureza. Recordava dos ancestrais ensinando a ela e aos outros meninos que, para ser um Ĩyãħé Nakoda digno, elas deveriam ser gratos ao animal que lhe fornecia comida, roupas, ferramentas, medicamentos, cordas, armas e enfeites. E a menina concluiu gravemente que aquele povo desprovido de cor também era muito ignorante, pois até crianças sabiam mais do que eles.

Enquanto os dedos de Pássaro Azul apertavam os da mulher moribunda, ela sorriu levemente. Acabara de lembrar que aquele povo tolo tinha apenas um nome para a lua. Nunca souberam que havia mais de vinte tipos de lua: a dos gansos, a das águias, a da época em que os cervos procuram parceiras. Lua de quando parece inverno mas o verão retorna, lua de quando tudo se torna verde e lua das folhas vermelhas…

Também não dominavam os segredos para prever o tempo. Jamais sabiam quando seriam atingidos por uma tempestade particularmente dura. Muito menos que era possível se proteger delas usando um rebanho de búfalos. Eram tão bobos que nem associavam as ondas de frio a estrelas excepcionalmente brilhantes no céu de inverno. 

Devagar, Pássaro Azul esquecia as canções e os nomes das coisas. Naquele lugar vazio de alegria ninguém conhecia seu nome. Chamavam-na Victoria, em homenagem a uma rainha rechonchuda e com olhos de vidro que, diziam, governara o mundo. A rainha já havia morrido – como morrem todas as gentes – e seu bisneto agora era o dono das vastas terras onde o sol nunca se punha. Mas como poderia governar o mundo se nem tinha um cocar imponente de penas de águia real? A menina ainda ouvia a voz do avô explicando que usar um daqueles cocares significava partilhar a sabedoria, o poder e a força dos grandes pássaros. Só homens honrados poderiam usá-los, pois cada pluma simbolizava um ato de bravura. Talvez o rei dos corvos não o usasse porque não era um guerreiro com histórias extraordinárias.

Durante muitos anos Pássaro Azul refletiu sobre o roubo da alegria no Pensionato. Sem o som dos tambores e das flautas, viu os risos desaparecerem dos rostos. Ela, que sempre reparava como as outras crianças carregavam faces de medo e horror, um dia surpreendeu-se ao ver, espelhados numa bandeja, seus próprios olhos encharcados de tristeza.

Particularmente sentiu pena daquela gente quando soube que haviam tentado matar Wakã Taga. Rosalynn lhe contara que o feriram muito, mas ele não morrera. Pássaro Azul o via, torturado, de braços abertos fixados por grandes pregos num pedaço de madeira, e sentia um grande amor nascer no seu coração. Nas noites de inverno, quando a neve se acumulava nas janelas e todos dormiam, ela tomava um pedaço de pele de ovelha e cobria o corpo ferido de Wakã Taga. Cantava para ele dormir: Taga-waka, chado inhan-gam… Jesus Christ wicha bay-ã.

Um gemido a tirou dos devaneios. Aproximou-se da cama onde Rosalynn arfava. Enxugou o suor que porejava na testa e levou um copo de água fresca aos lábios da enferma. “Beba, por favor”. A doente afastou o copo com um gesto e murmurou debilmente: “Obrigada, minha filha. Morro feliz, pequena Victoria, porque consegui assegurar o seu lugar no paraíso”. Apontou para o baú de madeira e pediu: “Dê-me a caixa que está no fundo”.

A moça levantou-se. Arrumou a saia comprida e espanou uma sujeira inexistente da blusa listrada de cinza e branco, abotoada até o pescoço. Abriu o baú, retirou a caixa e a entregou para a doente. A mulher tateou a fechadura. A caixinha abriu com um rangido.  “Guarde isso, minha filha. É o símbolo da sua vida pagã, antes de você ganhar o céu”. Mas Pássaro Azul já não ouvia. Seus olhos estavam cravados no pequeno mocassim amarelo, bordado de flores e borboletas. Sentia sob os dedos a maciez do couro, o forro costurado com capricho.

Por mágica, encantamento, sortilégio pôde ver de novo a movimentação febril do acampamento sendo levantado, as orações dos anciãos logo de manhãzinha, as festas do solstício de verão, as pedras fervendo dentro das panelas de couro e aquecendo o caldo, o barulho que os dentes faziam quando se cravavam nas suculentas e doces espigas de milho. Viu mais: o riso que brincava permanentemente nos olhos do pai e na boca da mãe.

Rosalynn morreu com um sorriso nos lábios, pacificada pelo dever cumprido. Pássaro Azul cerrou-lhe os olhos com delicadeza e saiu. Do lado de fora, o sol nascia, glorioso. Abriu os botões da blusa que lhe apertavam o pescoço e caminhou em direção às montanhas que se desenhavam no horizonte. Da ponta dos dedos pendia um par de mocassins amarelo.

No fim do dia, avistou o lago. A superfície calma reluzia, cercada pelas montanhas. Divisou ao longe a cabana em forma de cone, com abertura para o leste. Do alto se erguia um rolo de fumaça azulada. A tipi de seus pais, com o imenso totem em forma de coruja. Um dia ela também faria um totem. Nele esculpiria um homem que esteve preso no bico de um corvo e escapou, porque era mais que homem: era um urso negro, uma paciente tartaruga e um Ĩyãħé Nakoda. 

Esta é uma obra de ficção, baseada na história real das crianças Nakoda e de outras 633 etnias das chamadas First Nations (primeiras nações), um termo generalista que designa  os povos que viviam originalmente no atual território canadense. Além dos ameríndios, o Canadá tinha entre seus primeiros povos os Inuit e os Métis. Durante o período colonial, as crianças das primeiras nações foram retiradas de suas famílias e entregues a diversas instituições religiosas que as obrigavam a se adequar à religião cristã e aos hábitos europeus. Eram proibidas de falar o idioma de sua família e de participar de festas tradicionais e celebrações religiosas. Atualmente, 1,3 milhão de canadenses são descendentes das Primeiras Nações. O nome Pássaro Azul foi inspirado em uma moça Nakoda chamada Blue Bird. Todas as palavras usadas no texto foram transliteradas do idioma dos Nakoda

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A foto que ilustra esta crônica é da família Beaver (Sampson, Leah e o bebê Frances Louise), em 1906, no território Nakoda.